sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

A Obra em Negro

A velha senhora se ajeitou na cadeira, como se preparando para uma batalha intelectual. A menina olhava para ela, muito séria mas também divertida, pois conseguiu o que queria, continuar a conversa.
- Agora eu vou começar a falar e você vai escutar, tá bom, mocinha? Vou falar dessa folha que você surrupiou das minhas anotações, sua aplicação ao tratamento das doenças e depois eu vou embora, que Edward está me esperando.(Para quem não leu o último post, Edward é o gato da senhora). Estamos combinadas?
Levantou a mão. A senhora bufou.
- Fale.
- Posso fazer perguntas?
- Claro que pode.
- O que significa surrupiou?
- (Risos) Você pegou a minha anotação sem que eu percebesse, certo? Isso é surrupiar, afanar, passar a mão no que não é seu... Entendeu?
Assentiu com a cabeça.
- Então vamos lá. Qual o significado de trazer para um simpósio esse conhecimento milenar gerado por homens simples, que, ao nosso ver, ficavam tateando no escuro as ligações e as propriedades das diferentes substâncias químicas? Para a Ciência Moderna, a religião que está em voga em nossos dias, aqueles escritos em latim não tem nada a acrescentar ao que foi descoberto desde a Tabela Periódica, quando os homens aprenderam a conhecer e manipular as substâncias e os elementos químicos. Os alquimistas continuariam perdidos no esquecimento de seus livros empoeirados se um psiquiatra suíço, chamado Carl Jung, não tivesse descoberto um valor oculto naqueles trabalhos. Para esse senhor, os alquimistas, na sua busca pela Pedra Filosofal e o Elixir da Longa Vida, acabaram descobrindo a maneira intrínseca que faz funcionar a natureza da matéria e da psique humana. Você está entendendo o que estou falando?
Balançou a cabeça, num “mais ou menos” ressabiado. A senhora não se impacientou.
- Os alquimistas eram pessoas que, desde a China Antiga e do Egito procuravam, através de experiências em seus laboratórios, entender e conhecer as propriedades da matéria. Eles queriam fabricar remédios e extrair das plantas e das substâncias químicas uma forma de curar doenças e deter o processo de envelhecimento.
Levantou a mão.
- Pode fazer a pergunta sem levantar a mão.
- O que os Alquimistas queriam descobrir é a mesma coisa que a Medicina e a Farmacologia modernas tentam fazer, que é controlar as doenças e prolongar a vida, certo?
Olhou para a menina com espanto, e teve que aturar aquela cara de “estou sempre te surpreendendo”.
- Muito bem, mocinha. Você levantou uma bela de uma lebre. Os alquimistas procuravam pelo que o homem procura desde que desceu das árvores: conhecer e dominar as forças da Vida e da Morte. Vou anotar essa sua ideia para a minha próxima aula. Só tem uma boa diferença: a Ciência procura por formas de atuar diretamente na matéria, mofificando-a. Os alquimistas procuravam pelo conhecimento do Oculto, o que não aparece na experiência.
- Os alquimistas procuravam por Bob.
- Exatamente! Os alquimistas procuravam pela ordem profunda que existe na matéria e, quer saber, no envelhecimento, na doença e na morte. Tanto que a primeira fase da Obra, do Opus Alquímico sempre tinha a ver com a morte. Mas você está me fazendo correr muito com a aula. Deixe-me voltar ao ponto da minha anotação...(Folheando as anotações)...Deixe-me ver... Ah, aqui está: o que Jung descobriu é que muito o que aqueles escritos antigos descreviam era a mesma coisa que ele via, todo dia, no seu consultório. A obra alquímica e o desenvolvimento psíquico tinham muitas coisas em comum.
A menina olhava com cara de paisagem.
- Vou te dar um exemplo. Uma pessoa chega para tratamento. Está deprimida. Perdeu o emprego, ou o casamento, ou teve uma decepção muito profunda com a vida. Tudo parece morto naquela depressão. Nada parece ter significado mais para aquela pessoa. O alquimista, isso é, o terapeuta, começa ficando perto daquele sofrimento.
Os seus olhos se acenderam.
- Ficando perto como?
- Simplesmente ficando perto do sofrimento sem opor resistência. Muitas vezes, o que estava morto fica ainda mais morto. As pessoas ficam muito assustadas quando alguém está nessa situação. Gritam: você precisa reagir! Você não está se ajudando! Seja uma pessoa positiva! E aí? Aí, nada. A imobilidade vai durar o tempo que durar. O terapeuta fica lá, do lado, esperando pela hora que a coisa vai começar a gerar energia. O terapeuta, como os alquimistas, precisa ser paciente. Esperar a hora certa para atacar, para arrancar a pessoa da imobilidade. Senão, nada acontece: pode entupir o sujeito de remédios, pode fritar a cabeça com choques e pulsos magnéticos, pode passar vinte e oito filmes de autoajuda, nada vai fazer o que está parado voltar a andar enquanto a energia não vier de dentro.
A menina falou com voz quase imperceptível:
- Isso é como uma quimio?
A senhora voltou-se para ela, em espanto.
- Perdão, querida, o que você falou?
- A quimioterapia não é exatamente assim? A pessoa fica cansada, parece que passou um caminhão por cima, não quer fazer nada e, de repente, acorda melhor, começa a ter vontade de sair, de ver o sol, de comer pudim... É assim, não é?
- Querida, como é que você sabe disso?
- Não se preocupe. Eu sei. Volte para a sua aula.
Obedeceu.
- Essa é a fase inicial da Obra, querida. A Obra em Negro. Os alquimistas sabiam que, para o novo surgir, é preciso que o velho antes. Por isso as células morrem, as fases da vida mudam e o que tem que acabar, acaba.
A menina abaixou os olhos, digerindo tudo aquilo. Nos seus olhos, havia uma estranha compreensão.
- Ao contrário do que as pessoas pensam, meu bem, a morte é só um começo.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Jung Para Crianças: o Opus e a Cura

A velha senhora começou a juntar as suas coisas.
- O que foi?
- (Guardando o seu material numa pasta) Acho que está na hora dessa senhora fora de moda ir embora.
- O que?
- (Olhou para a menina, com uma ternura um pouco tristonha) Acho que já te contei muitas histórias e está na hora de você voltar a brincar com suas amiguinhas e está na hora de eu tomar o meu chazinho da tarde com meu gato, Edward.
- (Risos) Como é o nome do teu gato?
- Edward (Risos). É um velho senhor, muito respeitável e que sempre me parece estar usando um cachecol xadrez, com um ar assim, meio britânico, meio escocês... É um gato realmente muito distinto e educado.
- Eu gostaria muito de tomar um chá com Edward.
Olhou para ela com uma cara de “É mesmo?”. E voltou a arrumar as suas coisas.
- Não sei se a sua mãe gostaria de saber que você está tomando chá com uma velhinha gordinha e um gato gordão. Ainda mais ouvindo essas ideias antigas e meio chatas.
Olhou para ela com aquele ar de menina sabida.
- Só que você não pode ir embora assim desse jeito.
- Ah, é? E por que eu não poderia?
- Porque você prometeu dar a sua aula para mim.
- (Coçando a cabeça) E como eu vou dar essa aula para você, garota?
- Do mesmo jeito que já está dando.
Balançou a cabeça.
- Vamos deixar para outro dia, ok?
- (Cruzou os braços, com ar de menina esperta) Você sabe muito bem que não vai haver outro dia.
- (Suspirou) Minha querida, eu já sou velhinha, eu sei. Sempre tem um outro dia.
Pegou uma parte de suas anotações.
- Fala sobre isso aqui.
- Isso aqui o que?
- Isso aqui que está escrito.
Finalmente, ela sorriu e parou de tentar se esquivar.
- Você não quer que eu vá embora, não é, peste?
Fez uma cara de “Por favor”.
A senhora olhou para a anotação. Fez uma careta, como se fosse particularmente difícil ensinar aquilo para uma menina que devia estar com suas bonecas.
- Como é que eu vou falar disso, menina?
- Não sei, se vira.
Olhou boquiaberta.
- É isso que meu pai me fala quando eu não consigo fazer a lição.
- Diga para o seu pai que isso não é muito educado.
- Eu digo.
- Bem, vou me virar. Esse papel é sobre A Obra (falou desse jeito mesmo, em maiúsculas).
- (A menina imitou seu ar solene) A Obra.
- Exato. A Obra. O Opus.
- E o que é isso?
- Essa é a grande questão, mocinha. A Obra é tudo o que você quer trazer, do mundo do Invisível, para o mundo do Visível. Por exemplo...
- A Cura.
Olhou, com espanto.
- Como é?
- Eu sempre te surpreendo, não é mesmo? (Fez uma pose) É porque eu sou uma menina tão esperta...
- (Arrumou-se na cadeira e falou suavemente) E uma vez que você é uma menina tããoo esperta, vou aproveitar esse exemplo, que é realmente muito bom. A Cura pode ser uma obra alquímica. Um sonho que você quer realizar, uma coisa que quer fazer, tudo isso é uma Obra. Pelo menos, é uma pequena Obra.
- Achar a cura quando alguém está doente é uma Obra.
Voltou-se para a menina, séria.
- Você conhece alguém que precise dessa Cura, meu bem?
- Todo dia, meu benzão. A minha mãe é médica, ela fala com gente doente o tempo todo. Mas ela não acha que a cura é uma Obra.
- O que ela acha?
- Ela acha que a Cura se baseia em protocolos clínicos, fortemente baseados em evidências.
Fez muita força para conter o riso.
- E onde você ouviu isso, menina?
- Eu ouço isso o tempo todo. Pode acreditar.
- E ainda assim você quer aprender sobre Cura?
- Claro que eu quero.
Sentou de novo na cadeira.
- Ok. Você venceu. Batata frita.
- O que?
- Nada não. É uma música antiga.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Jung para Crianças: Bob e o Self

De repente, uma questão atravessou os seus olhos. Ficou matutando essa ideia e a velha senhora quase interrompeu o processo perguntando o que se passava em sua cabeça.
- Posso te perguntar uma coisa?
- Claro que pode.
- Por que essas coisas que você estuda estão fora de moda?
Sorriu com um traço quase imperceptível de tristeza nos olhos.
- Você está vendo essa parte aqui do programa?
- Esse é o evento?
- É. Pelo menos é uma parte dele. Essa parte está cheia de pessoas falando de doenças.
- Doenças?
- Doenças. Doenças difíceis de tratar, como alguns tipos de doença oncológica. Você sabe o que é uma doença oncológica?
- Não.
- As doenças oncológicas são também chamadas de Câncer. Você já ouviu falar em Câncer?
Assentiu com a cabeça.
- As pessoas estão tentando entender essas doenças há séculos. Tentam arrancar, irradiar, bombardear essas doenças para deixá-las sob controle, para não deixar que essas células matem as boas células de nosso corpo.
- O que isso tem a ver com o que você estuda?
- Tem tudo a ver com o que eu estudo. Mas muita gente aqui nesse simpósio não acredita nisso. Muita gente não quer nem ouvir falar nisso, para dizer a verdade. Elas só querem saber qual é a última novidade para tratar as doenças, como fabricar nanorrobôs, anticorpos monoclonais, manipulação de genes, para combater essas doenças. Elas só esquecem de uma coisa.
Ela continuava muito atenta.
- Todo dia essas células malucas são produzidas. Como se saíssem com defeito. Esse defeito pode crescer e virar uma doença.
- Essas células doentes podem virar um Câncer – falou com um ar de enfado, como quem pergunta: “Tá pensando que eu sou uma criancinha?”.
- Muito bem, querida.
- A minha mãe já me explicou.
- Que legal.
- A minha mãe é uma das pessoas que deve achar o que você fala uma bobagem.
Não pôde conter o riso. A menina também.
- Agora me fala uma coisa.
A senhora enxugou algumas lágrimas de riso.
- Pois não.
- O que tem a ver a tal da Alquimia com o tratamento de Câncer?
Caiu na risada, de novo.
- Pois é, essa é a pergunta que todos me fazem. A menina que digitou o programa também deve ter pensado a mesma coisa, tanto que não colocou a aula no curso... Deixe-me ver...Como eu posso te explicar?
Coçou a cabeça.
- Você já viu um formigueiro?
Uma pergunta cabível diante de uma menina criada em apartamento.
- Já vi, sim. (Respondeu com aquela cara de “Tá pensando o que?”).
- Então... Você já se perguntou como que uma cidade tão complexa quanto um formigueiro mantém sempre aquele nível de organização?
- Elas são programadas geneticamente para cada função.
Olhou com uma expressão de espanto.
- É só assistir os desenhos, ok? O que tem a ver Alquimia e Formigueiros?
- As formigas se mantém organizadas. Complexamente organizadas. Elas tem um sistema de sinalização e comunicação para se orientarem, mas isso não dá para explicar esse nível de organização. Tem que haver algumas coisa a mais.
A menina não desgrudava os olhos.
- Tem que haver uma forma invisível de organização. Como um centro. Como um maestro invisível dizendo quando e como cada peça tem que se encaixar e cada folha vai ser guardada. Eu chamo essa ordem invisível de Bob.
- Como é que é?
- Na falta de outro nome, eu chamo essa ordem de Bob. Bob está sempre lá organizando tudo.
- Estou ouvindo.
- Imagine que Bob pode ser uma ordem que faz as células de seu corpo funcionarem. Como no caso do formigueiro, cada célula é programada geneticamente para desempenhar as sua funções, uma faz uma enzima, a outra absorve água, a outra percebe a cor vermelha.
Assentiu.
- Imagina que a célula doente sai do controle de Bob. Tudo vira uma bagunça. Bob chama a polícia, as células brancas, programadas geneticamente para colocar ordem na casa. Era disso que eu queria te falar: para tratar essas doenças, é preciso fazer a orquestra funcionar de novo. É importante fazer a energia circular de novo. Era isso que os Alquimistas faziam.
- Quê?
- Os alquimistas faziam a energia circular na matéria. A energia que estava parada.
- (Deu um pulo na cadeira). Peraí, peraí...O que isso tem a ver com o Bob?
Sorriu, triunfante.
- Agora você está começando a entender. A sua mãe tem uma filha muito esperta.
- Obrigada. Eu acho...
- Os alquimistas tentavam, mesmo sem perceber, fazer contato com o Bob. Fazendo contato com o Bob, poderiam achar a Pedra e curar as doenças.
- Não estou entendendo nada.
- Calma, eu explico: a doença acontece quando Bob não consegue mais organizar o formigueiro, digo, as células. Elas param de se entender e um grupo de bagunceiras saem pelo corpo comendo tudo e destruindo tudo.
- Esse é o Câncer.
- Isso. Os tratamentos tentam dar um pau nessas bagunceiras para que o corpo consiga se reorganizar e controlar a bagunça.
- O tratamento serve para dar um tempo para Bob reassumir o controle.
- Exatamente.
- Esse é um trabalho alquímico?
- Caramba. Você entendeu perfeitamente.
- E o tal do Bob é invisível.
- O tal do Bob é invisível.
- Sendo invisível, ninguém acredita nele.
- Muita gente não acredita nele.
- Estou começando a entender por que te deixaram fora do curso.
(Risos).

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Jung para Crianças (Grandes): por que a Alquimia?

Estava pensativa, meio com vergonha de perguntar. Mas a curiosidade foi maior.
- As pessoas desse evento não vão te deixar falar?
- (Sorrindo) Pelo visto, não.
- Mas você não vai ficar brava?
Pensou um pouco antes de responder.
- Na minha idade a gente economiza braveza, meu bem.
Olhou com a sua mesma cara de “como assim?”.
- Com o tempo, a gente escolhe quando e como brigar. Não vale a pena se aborrecer com a dificuldade que não é sua. As pessoas fazem as coisas sempre na base da correria, acaba dando tudo errado.
Pensou muito antes de falar.
- O meu avô é velho e briga com todo mundo, o tempo todo.
- (Risos) Eu diria que não é todo mundo que aprende com a idade, meu bem. Não é todo mundo. Mas seu avô deve ser uma boa pessoa.
- Não é não.
- Bem, ele deve ter lá os seus motivos.
Parou de falar, fazendo uma careta ao lembrar do seu avô rabugento. Mas logo mudou o assunto.
- Você não quer dar aula para mim?
Coçou a cabeça.
- Mas esse assunto não é chato para você?
- Não sei. Quando você explica não parece chato.
- Pôxa, muito obrigada.
- De nada.
- O que você quer perguntar?
- Por que a Alquimia?
Coçou a cabeça, de novo.
- Começou com uma pergunta difícil, heim? Deixa eu ver... Eu te falei um pouco de Alquimia, não foi?
- Foi.
- Há muitos séculos que esses sábios se enfiavam nos laboratórios para fazer experiências. Eles tentavam encontrar uma pedra.
- Uma pedra?
- Sim. Uma pedra chamada Pedra Filosofal.
- Passavam a vida toda tentando encontrar a tal da pedra?
- Aí é que tá uma coisa difícil de explicar: teoricamente eles procuravam por uma Pedra que pudesse curar as doenças e transformar qualquer material, sobretudo o material mais sujo, mais podre, em ouro. Até hoje as pessoas acham que eles eram uns simplórios brincando de comidinha. Você gosta de brincar de comidinha?
- Gosto.
- Então. As pessoas acham que eles eram crianças brincando de laboratório. Foi só muito tempo depois que um psiquiatra que eu gosto, chamado Jung, descobriu que aqueles escritos não falavam só de experiências sem método. Ele descobriu que os Alquimistas estavam procurando por uma pedra que não estava nas panelas, mas dentro das pessoas. Você entendeu?
- Não.
- Pois é. Não é só você que não entende. Muita gente não entende.
- Então me explica.
- Explico. Dentro daqui (apontou para o seu peito) tem um diamante escondido. O diamante é a pedra mais preciosa que existe no mundo. É também indestrutível, nada pode quebrar o diamante. Só que ele nasce meio escondido e com o tempo vai ficando mais escondido ainda. As pessoas passam por decepções, perdas, medos e isso vai deixando o diamante cheio de sujeira e de sangue. Com o tempo, as pessoas duvidam que exista essa pedra dentro dela, acha que o mundo é essa luta mesmo, que não adianta olhar para dentro. Por isso que o pessoal do evento esqueceu de nossa mesa redonda.
Olhou com aquela cara, de novo.
- As pessoas começam a duvidar que exista algo mais profundo, algo que não é visível. Por isso ficam com raiva quando alguém fala sobre isso.
- A moça não colocou vocês de propósito, então?
- Acho que não. (Divagando). Acho que não. Mas é estranho a organização errar justo com quem vai falar do Eu profundo. É como se isso não merecesse muita atenção, mesmo.
Pensou um pouco antes de afirmar:
- Ninguém acredita em Alquimia.
- Quase ninguém, querida. Quase ninguém.
- Você acredita?
- (Suspiro) Acredito que tem um Eu Profundo e que ele participa de nossa vida, a gente querendo ou não. Acredito que esse Eu quer se revelar em nossa vida e que precisamos limpar muita sujeira para chegar nele. Acredito que a Pedra Filosofal é parte desse processo de busca profunda de uma Psique cada vez mais límpida, cada vez mais pura.
- O que é psíquia?
- Ah, desculpe. Me entusiasmei. Psique é tudo o que vive em sua mente, e também fora dela. Tudo o que você pensa e tudo o que pensa dentro de você. Parece difícil de entender, mas não é. Psique é tudo o que faz você ficar ouvindo essa velha senhora, quando ninguém mais quer fazê-lo. Psique é tudo o que fica aparecendo nos seus sonhos e nos seus pensamentos.
- A Pedra Filosofal está nessa tal de psiquia?
- (Olhou espantada) Pois você acabou de entender o que a maioria das pessoas não entendem, querida. A Pedra Filosofal, o diamante da alma, está dentro da gente. Os alquimistas passavam anos na frente do fogo, queimando, dissolvendo, limpando, sujando, para tentar polir, purificar, revelar a Pedra.
- É isso que você faz?
- É isso que eu faço.
- Você é uma alquimista, então.
Coçou a cabeça.
- Sabe que eu nunca tinha pensado nisso?

sábado, 12 de janeiro de 2013

Jung para Crianças: o Visível e o Invisível

O cenário é um salão de jogos de um hotel, com alguns videogames antiquados que as crianças usam meio que por falta de opção. São poucas crianças e elas são observadas por uma velha senhora que tenta passar despercebida no canto da sala, perto da porta de saída. As crianças brincam sem percebê-la e ela não parece se importar com isso. Finalmente, uma menina acaba por notá-la e se aproxima, hesitante. A senhora está com os olhos baixos, lendo uma espécie de programa de curso e demora a levantar os olhos para não assustá-la ou desencorajá-la. Finalmente, depois dessa lenta aproximação, os olhares se cruzam, num “oi” silencioso. A menina acaba por quebrar o silêncio.
- Você é daqui?
- Daqui, aonde? – respondeu com olhos risonhos.
- Daqui, ué...
- Da sala de jogos?
- É.
- Não sou, não. Estou aqui no evento.
- A minha mãe também está nesse tal de evento.
A senhora sorriu uma espécie de “ok” e voltou a baixar os olhos.
- Você veio dar aula?
- Acho que sim. Vim dar uma aula e assistir outras aulas. É isso que a gente faz nos eventos.
- Mas você não é velha?
Dessa vez ela realmente levantou os olhos, fazendo força para segurar o riso.
- A gente pode continuar assistindo aula depois que fica velha, meu bem.
A menina não se deu por vencida.
- E você veio dar aula do que?
- Vim falar sobre Alquimia.
Olhou com uma cara de “o que é isso?”.
- Alquimia é uma coisa que gente muito, muito antiga, fazia no passado. Eram pessoas muito sábias que passaram uma grande parte de sua vida no laboratório, para descobrir coisas.
- Que coisas?
Limpou a garganta para responder. As perguntas estavam ficando difíceis.
- Essas pessoas ficavam escondidas nos laboratórios para tentar encontrar remédios, e substâncias para curar as doenças das pessoas e deixá-las sempre jovens.
Pensou um pouco antes de responder.
- Isso a minha mãe tem no banheiro.
- O que a sua mãe tem no banheiro?
- Ela tem uns remédios e uns cremes para não ficar velha. É isso que eles faziam?
Teve que fazer força, de novo, para não rir.
- De certa forma, sim. Eles queriam encontrar uma espécie de suco, de elixir, para curar todas as doenças e fazer o tempo parar dentro das células. E olha que eles nem sabia que existiam as células.
- Eu sei o que são células (tomou um ar de menina sabida): as células são os tijolinhos que se juntam para formar os tecidos, como a nossa pele.
- Muito bem!
- O meu pai me ensinou o que são células.
- Parabéns para você e seu pai.
- Mas quando você vai dar aula?
- (Suspirando) Acho que daqui a algumas horas.
- Você não sabe se vai dar aula?
- Não.
- Por que?
- Porque eu acho que eles esqueceram de me colocar no programa do evento.
- Como assim?
- Eles me mandaram um programa inicial, eu preparei a aula, cheguei aqui no hotel, a aula não estava mais. Acho que foi um erro da menina que mandou o programa para a gráfica. As pessoas da minha mesa redonda também ficaram de fora. Algumas já ficaram bravas e foram embora, inclusive.
- E você não ficou brava?
- (Coçando a cabeça) Como você já notou, eu estou um pouco velha. Já aprendi a enxergar a dificuldade de outro jeito.
- Como assim?
- Quando acontece alguma coisa assim eu me pergunto: onde isso vai me levar? O que vai acontecer agora? O que eu vou aprender com isso?
- Você aprende?
Olhou para ela com ar travesso.
- Eu sou velha mas estou sempre aprendendo, viu, sua folgada? Não quero nunca parar de aprender.
- E o que v ocê está aprendendo agora?
- Estou aprendendo a conversar com você. Estou aprendendo a esperar o que vai acontecer e a ter mais e mais paciência. Isso era uma coisa muito importante para os alquimistas: esperar, compreender, aprender com os erros. Essas coisas que estão fora de moda.
- Você está fora de moda?
Pensou mais longamente antes de responder.
- Para muita gente, eu estou fora de moda. Sim senhora. Mas ainda tem muita gente que quer aprender como usar o fogão.
- Que fogão?
- O fogão dos alquimistas.
- Eles cozinhavam?
- E como...
- O que eles cozinhavam?
- Cozinhavam coisas do mundo invisível para trazer o invisível para o mundo visível.
Fez uma cara de nada entender, uma espécie de careta engraçada.
- Eu sei que você não entendeu, mas não se preocupe. Aqui nesse evento, quase ninguém acredita no invisível.
- Eu tenho um amigo invisível.
- (Flexionou a sobrancelha) É mesmo?
Baixou os olhos, como se estivesse dito algo impróprio.
- Pois isso é muito bom. Você já está mais preparada para a minha aula que muita gente por aqui. Eles não acreditam em nada que não apareça em seus aparelhos.
- Você acredita no meu amigo?
- Claro que acredito.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Blogstórias - A Flor e o Tempo

Foi depois de muito tempo que ele finalmente entendeu, ou achou que entendeu. Lembrou de uma história antiga, que ouviu numa palestra de um monge budista. Depois de atingir a iluminação, o príncipe Sidarta atingiu o estado de iluminação. Um estado chamado de estado de Buda. Foi o fim de uma longa busca e de um mergulho em profundezas psíquicas nunca antes exploradas. Mas o jovem Buda não achava possível transmitir o que havia aprendido. Não havia palavras humanas que pudessem traduzir a beleza e a imensidão que ele havia presenciado. Foi preciso um coro de iluminados que implorassem para ele ao menos tentar transmitir um pouco do que vislumbrara. Foi essa história que lhe ocorreu em meio a mais uma madrugada quente e insone. Depois de atingir a iluminação, Sidarta reuniu os seus discípulos para fazer a sua exposição. A sua apresentação foi bastante sucinta e até hoje nunca igualada: apanhou uma flor e fez com ela um movimento suave, quase infinito. Foi como se o tempo tivesse parado enquanto a flor se movia em sua mão. Diz a lenda que só um dos discípulos, cujo nome me foge, atingiu a iluminação diante dessa exposição.
Ele sempre achou essa história uma daquelas charadas zen sem resposta. Talvez Sidarta tivesse descoberto o Existencialismo, vinte e cinco séculos antes. A existência precede a essência. A existência da flor é algo absoluto e se justifica por si. Os terapeutas existencialistas de vinte e cinco séculos depois devem ter aproveitado essa cena, para repetirem, como um mantra: “Uma rosa é uma rosa é uma rosa”. E assim por diante. A rosa existe e só. Não há rosa significante, só uma rosa existente. Os psicanalistas discordam, mas esse não foi o tema de sua compreensão. A questão não é a rosa, nunca foi a rosa. A questão é o movimento, extremamente lento, que tornou a flor infinita. Sidarta atingiu um tempo fora do tempo, desdobrou o tempo, apenas movendo a flor.
Foi essa a sensação de profunda compreensão que o atingiu como um raio. Ele entendeu que o movimento da flor, em sua infinita consciência, conectava quem compreendesse com um tempo fora do tempo, onde a consciência poderia se expandir e se espreguiçar, para fora das preocupações do dia a dia, da infinita mesquinhez de nossos pensamentos. Depois disso, sempre que ele quer soltar uma frase agressiva, ou destratar a sua esposa com seu infinito mau humor de marido, ou quando tem uma tarefa chatérrima que ele gostaria de adiar ao dia de São Nunca, ele faz um movimento com a sua flor imaginária e se sente desprendido do maldito tiquetaque do tempo. Finalmente, a partir dessa nova percepção, ele começou a se aproximar da ideia da compaixão. Compaixão não é sentir pena, nem sentir a dor que o Outro sente. Compaixão é entrar nessa outra frequência e observar o correcorre dos homens formiga, sempre indo para lugar nenhum.

sábado, 5 de janeiro de 2013

Coagulatio

Vou adiar por um dia o início das férias desse blog. Ainda não decidi como serão os textos nesse período de "férias" desses escritos em primeira pessoa. Agradeço muito as mensagens de final de ano e recomendo a quem interessar dar uma olhada no setor de Comentários desse blog, onde há contribuições e dúvidas bem legais para se ver.
Um desses comentários eu vou responder nesse post. É sobre um termo em latim que eu usei justamente para desejar um bom ano de forma junguiana e alquímica. O termo é Coagulatio, o que levantou essa lebre. Vamos por partes, então.
O psiquiatra suiço C.G.Jung passou por uma série dolorosa de rompimentos em sua trajetória. Primeiro, rompeu com o maior centro de Psiquiatria de sua época, onde teve experiências e contatos que deram origem a suas mais importantes teorias. Quando ele aderiu ao movimento nascente da psicanálise freudiana, foi se distanciando dos psiquiatras tradicionais até se desligar do mestre Bleuler. Após ser recebido como um príncipe herdeiro por Freud, Jung foi discordando de forma cada vez mais contundente do pai da Psicanálise, o que o levou a tomar mais um contundente pé na bunda, dessa vez da patota aboletada em torno de Freud. Jung teve o que hoje seria diagnosticado como um quadro depressivo, passando muito tempo só, em sua torre, estudando, desenhando, rabiscando o que viria a ser a sua obra nas décadas que se seguiram. Nesse período, ele foi muito ajudado por Tony Wolff, uma paciente que virou aluna, amante e terapeuta de Jung. Com a ajuda de Tony, Jung sedimentou a sua Psicologia Arquetípica. O que não se esperava é que Jung, ao começar a estudar a Alquimia Medieval, acabaria por ser abandonado pela própria Tony Wolff, que achava que esse estudo iria acabar por desacreditá-lo de vez. Tony continuou com Jung até a sua morte, mas nunca aderiu ao babado alquímico. Até hoje Jung é classificado como um místico, um esotérico, o que em circuitos científicos ou acadêmicos é um xingamento muito grave. O estudo de Mitologia e Religião comparada e da Alquimia acabaram por deixá-lo ainda mais só.
Nos dias de hoje, meio século após a morte de Jung, sabemos que seu estudo e coragem trouxeram à luz a riqueza psicológica profunda dos escritos alquímicos. O processo de Individuação, o núcleo de todo trabalho terapêutico junguiano, foi finalmente descrito e estabelecido nesses estudos da Alquimia. Nos comentários do blog, há uma alusão às fases do Opus Alquímico, à Pedra Filosofal e ao título desse post, Coagulatio. São temas que dão um livro para cada um deles, portanto vou me deter no Solve et Coagula dos alquimistas. o que isso significa, para a obra alquímica e para o trabalho de psicoterapia?
O Dissolve e Coagula era um procedimento padrão nos laboratórios dos velhos alquimistas. Isso representava o trabalho de separar as impurezas da matéria prima, as sujeiras e as contaminações desse material para encontrar a matéria pura, a Pedra, o Lapis Alchemicum, com o poder de transformar tudo à sua volta. Para isso, a matéria seria tratada com paciência infinita até atingir essa pureza absoluta. Quando eu leio o tratado Budista do Sutra do Diamante, lembro da obra alquímica. Através da meditação e do trabalho de purificação interna profunda, cria-se um núcleo psíquico indestrutível, como um diamante. É muito parecido com a Pedra Filosofal e a busca do Ouro indestrutível, um tesouro interior.
No trabalho psicoterápico, somos herdeiros dos velhos alquimistas, dissolvendo as dores, as decepções, as feridas das psiques em suas jornadas individuantes. O trabalho do psicoterapeuta, ou do psiquiatra na busca da melhora das depressões, das angústias e do profundo sentimento de solidão que uma pessoa experimenta quando quer se diferenciar e crescer passa por vários momentos de Solutio, momentos em que toda a energia parece ter desaparecido. Recentemente eu comparei o filme "As Aventuras de Pi" com essa jornada arquetípica, onde as adversidades vão criando uma capacidade quase ilimitada de resistir e sobreviver no personagem principal. Essa jornada é interior, não apenas uma aventura de filme edificante.
O Coagulatio é a operação de consolidação desse núcleo de nossa consciência e do Inconsciente, de transformar o Imanifesto em Manifesto, o Potencial em Realização. Quando eu desejo para uma pessoa um ano de Coagulatio, isso significa que imagino que tudo o que foi trabalhado, purificado, transformado com sangue, suor e lágrimas vai começar a se manifestar na vida da pessoa como algo visível. Uma confiança maior na própria alma como guia e na própria capacidade de colocar no mundo o que ainda está por vir. Portanto, um ano de Coagulatio para todos os leitores desse blog.