domingo, 27 de outubro de 2013

O Sorriso do Self

Está aparecendo, de maneira tímida mas consistente, dentro do horizonte árido dos Congressos de Psiquiatria, uma tendência a incluir estudos sobre técnicas de Meditação como formas de tratamento dos quadros e doenças psiquiátricas. As evidências da literatura estão se avolumando e os congressos, financiados e mantidos em grande parte pela Indústria Farmacêutica, acusam suavemente essas evidências na parte final das aulas.Falamos dos medicamentos e ah, a propósito, Meditação do tipo Mindfullness também ajuda os pacientes. Assim como quem não quer nada.
Do ponto de vista puramente concreto, podemos localizar com margem de erro pequena que parar durante menos de meia hora pelo menos duas vezes ao dia para prestar atenção na respiração e silenciar nossos aflitos diálogos interiores já produz, em si, uma melhora, usando a droga mais eficaz e barata para melhorar o metabolismo e o funcionamento de nossas células nervosas: o Oxigênio. Uma respiração mais profunda, consciente e usando mais o Diafragma e menos a musculatura das costelas já produz, em si, melhora na produção de neurotransmissores e endorfinas, como uma boa corrida ou alguns minutos numa sauna. Os alvéolos se abrem, a troca gasosa se otimiza e o Cérebro recebe uma cota generosa de Oxigênio, além da sensação de calma e plenitude que acompanha essa “droga” e a respiração profunda. Um neurocientista também observaria que as áreas do Subcortex desenhadas para processar o medo, que estão sempre ativadas em nossa vida moderna, seja quando necessário seja quando não necessário, são subitamente bombardeadas pela mensagem e a imagem de tranquilidade e Não Medo. Algumas meditações sugerem a imagem de um sorriso percorrendo os órgãos e as nossas emoções. Podemos observar nas imagens e esculturas orientais que representam a expressão impassível e o sorriso quase imperceptível dos yogues e meditadores. A expressão de paz impassível é perturbadora para quem vive em nosso ritmo, ou disritmo.
Jung descreveu entre as suas estruturas inconscientes o Arquétipo do Self. Nossas traduções brasileiras chamam o Self de Si Mesmo. A tradução não parece grande coisa. Self não parece a tradução de algo em si, mas do reflexo do próprio Ser que se esconde de nosso Ego medroso. Self é o reflexo do mundo ou da divindade que habita de um jeito profundo nosso Ser Psíquico. Por isso que eu chamo o Self de Self, não de Si Mesmo. Self é o nosso centro, ou o Velho Sábio que aparece em nossos sonhos apontando o caminho.
Imagino que os estados mais profundos de Meditação permitem à nossa Psique o descolamento dos pensamentos, preocupações e ruminações infinitas de nossa Mente Pequena, amplificando, em cada Inspiração/Expiração os limites de nosso Ser. Vamos chegando perto, roçando, lambendo a Mente Grande que está lá, mas não a alcançamos.
Isso dificilmente vai aparecer na tela de uma Ressonância Magnética, então, tecnicamente, não existe.

sábado, 26 de outubro de 2013

DNA e Psique

Há poucos meses tive um post deste blog traduzido e colocado em uma rede junguiana pela Luciana. Como o assunto era sobre Neurociência, veio um gringo me espinafrar que eu era mais um pseudo junguiano me vendendo para a Ciência Materialista. Adorei o ataque e o respondi em outra postagem, mas o debate acabou por ali. Ontem fui assistir um curso aqui no Congresso Brasileiro, em Curitiba, e me senti exatamente como o gringo que havia me espinafrado. Havia um proeminente e simpático psiquiatra junguiano que falaria sobre Psicoterapia e Ativação/Desativação de populações genéticas através do trabalho analítico. Que tema legal. O curso foi bacana e bem avaliado pelo aluno que vos escreve essas mal tecladas linhas. Mas o último da espécie, o último dos moicanos junguianos, além de mim, é claro, levou uma sapatada na minha avaliação. Não que isso vá fazer grande diferença.
Vou desenvolver a minha crítica em algumas postagens, para não ficar a coisa no terreno da birra. É muito difícil fazer uma transposição de Jung para a Ciência Empírica. O livro mais concreto que ele escreveu, “Tipos Psicológicos”, serve até hoje de base para testagens e avaliações de capacidades e limitações do perfil de funcionários, na Psicologia Organizacional, avaliados por escalas como MBTI. Esse foi um livro transposto para a nossa vida diária. Nem todos os conceitos do velho são assim.
Arquétipos são um conceito incorporado na Cultura, assim como termos como Complexos, Extrovertido, Introvertido e assim por diante. O meu colega fez um paralelo entre os Arquétipos e o nosso DNA. Jung também fez uma aproximação, como se os Arquétipos fossem uma espécie de Genoma Psíquico. A ideia do Pai, da Mãe, do Herói, da Divindade Benéfica e a Diabólica, tudo isso se repete em todas as culturas e mitologias. O colega afirmou que os tais arquétipos são representados pelos nossos genes. Errado, cara pálida. Errado. Arquétipos são a Ideia que vai ativar essa ou aquela população genética. Quando no meio de um processo terapêutico, uma esposa infeliz, oprimida por um marido dominador e narcisista, resolve enfrentá-lo e mudar a sua vida, está desativando as populações genéticas do Medo e da Submissão Aprendida para ativar as redes neurais de Indignação e Confronto, que ainda assim serão carregadas de medo. O Arquétipo não está no gene, como o que vai determinar a cor dos olhos. O Arquétipo é um campo informacional que pode ou não ser ativado por nossos campos psíquicos. Ele está muito mais próximos dos campos morfogenéticos de Rupert Sheldrake do que dos microscópios e das pipetas. Eles influenciam na expressão dos genes, não são o DNA nem os RNAs mensageiros.
Conheço bem essa aventura de tentar aproximar Carl Jung da Ciência Biológica. A gente fica frequentemente perdido no meio do caminho, mesmo. Mas vamos continuar tentando, nós os moicanos aqui no Congresso.

domingo, 20 de outubro de 2013

Penélope, a Tecedeira

Há uma passagem, se não me engano no segundo filme da trilogia “Matrix”, quando Neo, o personagem vivido por Keanu Reeves, vai falar com a melhor personagem da série, que é a vidente chamada Oráculo. Ele está tendo um sonho recorrente que a sua companheira, Trinity, está trocando tiros com os perseguidores. Ela leva um tiro no flanco e cai de um prédio, em queda livre. O sonho termina. Neo pergunta se Trinity vai ou não morrer, se aquele é um sonho premonitório. Oráculo olha para ele com uma expressão que faz com que saiba a resposta. Neo já decidiu, antes de nascer, o que vai acontecer e está lá para entender as razões de sua escolha. Dizem os kardecistas que a nossa Alma já escolhe antes de encarnar quais as dificuldades e os aprendizados que terá nessa vida. A passagem do filme lembra bastante essa ideia. Será que escolhemos as dificuldades que vamos passar e qual aprendizado terá nossa Alma Imortal?
Já escrevi em outro post sobre uma das minhas personagens preferidas de uma outra saga: a “Odisseia”. A personagem é a esposa de Ulisses, Penélope. Vou falar sobre ela de novo.
Como as sagas de herói, naquela época e nos dias de hoje, o destaque sempre foi o herói brilhante, valente, sacando a sua espada para enfrentar os monstros e os inimigos. Penélope aparece no início da sua jornada, quando seu marido está prestes a partir para a guerra. Penélope espera pelo marido por vinte anos. Os pretendentes consideram que seu marido está morto, o trono está vago e a bela viúva deve escolher um deles. Eles comem, bebem e dissipam as riquezas da casa de Ulisses, desrespeitando o seu lar. Ulisses terá uma longuíssima jornada cheia de dores e provações para voltar para casa. Penélope, pelo contrário, não vai para lugar nenhum. Essa é, justamente, a sua maior e incrível virtude. A mãe de Ulisses se deixa morrer de tristeza e seu pai, Laerte, retira-se do reino para levar uma vida de camponês. De um jeito ou de outro, desistem, fenecem, não conseguem sobreviver à longa espera. Penélope segura a onda. Cria o filho, Telêmaco, sozinha. Espera quando ninguém mais esperaria. Sente, em algum lugar de seu ser, que Ulisses não está morto. Astuta, ela alega que vai escolher o novo marido depois que terminar a mortalha de seu sogro, Laerte, que já está idoso. Ela tece o manto durante o dia e o desfaz à noite. Como ninguém quer desagradá-la, esperam por um tempo ilimitado pelo fim da peça. Euricléia, a fiel governanta de Penélope, cuida dos recursos, para não deixar que toda a riqueza seja dissipada.
Já escrevi no último post que muita gente acha que a Mitologia seja uma história da Carochinha ou livros para fazer as crianças dormirem. Somos, na verdade, participantes desse drama, como farsa ou tragédia, em nossas vidas e divãs. O executivo que espera, pacientemente, por uma oportunidade, gastando todas as suas economias enquanto aguarda, resiliente, que as propostas indecentes virem uma verdadeira chance. A mulher que, em nome do fim do amor, abandona um casamento e uma situação confortável e se lança numa vida difícil, com um ex marido hostil e uma pensão apertada. Será que, como Neo, acabamos escolhendo os caminhos mais difíceis em algum lugar de nosso Inconsciente?
Penélope representa o tecido da espera, mesmo quando não há mais nada a esperar. Continuamos tecendo, tecendo e esperando que a sorte vire. O poeta dizia que quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Penélope mostra a maior da coragem esperando e tecendo. Custe o que custar.

domingo, 13 de outubro de 2013

Cada Vida, Um Mistério

Campbell disse em uma de suas inúmeras entrevistas que os personagens da Mitologia estavam naquele exato momento em alguma estação de metrô, esperando o próximo vagão. Isso quer dizer que todos nós, sem excessão, vivemos dentro de histórias, de mitologias pessoais, como os personagens das velhas epopeias.
As pessoas em sua maioria, terapeutas inclusive, costumam achar que as velhas histórias da Mitologia não passam de histórias da Carochinha, feitas na aurora dos tempos, quando não havia TV a Cabo e os homens se divertiam inventando lorotas em torno da fogueira. Outro dia estava vendo o documentário sobre os seis títulos brasileiros do São Paulo, o “Soberano”. Careca descreveu o épico gol de empate na prorrogação contra o Guarani, na final do Brasileiro de 86. Para ele, Pita subiu no terceiro andar e desviou a bola epicamente, ela quicou na entrada da pequena área, ele encheu o pé como se não houvesse medo nem amanhã, levando a decisão para os pênaltis, vencida pelo tricolor. Wagner Basílio, um dos piores beques que já vestiram o manto sagrado tricolor, participou diretamente da vitória: foi ele que deu o chutão que acabou na cabeça de Pita e no chutaço de Careca. Mas não é dele que vou falar. Vendo o documentário, posso afirmar que esse Pita que subiu no terceiro andar e deu um passe magistral só existe na mitologia pessoal do grande Careca. Pita subiu todo torto, mal raspou a cabeça na bola e os deuses do futebol, que naquela noite sorriam para o São Paulo, fizeram a bola cair bem ao feitio do gênio da camisa 9 ( se fosse o Luís Fabiano, já teria sido expulso ou estaria machucado, pois o rapaz é pouco afeito aos momentos em que o time precisa dele. e bactéria chamada Affinococcus acaba por acometê-lo. Mas essa é outra história).
Apesar do exagero da narrativa mitológica, como acima demonstrado, não há nenhuma vida que não seja percorrida, todo dia, pelos mitos. Tenho mencionado muito isso nos últimos posts. Sobretudo no tema da Jornada Arquetípica, a que começa com um pequeno evento, um erro, chamado por mim de Erro Fundamental, que arremessa o candidato a herói em seu caminho, em sua peregrinação por essa vida estranha. Uma das coisas que me ajuda a acordar e continuar atendendo, estudando, atendendo, estudando, é essa certeza de que cada vida tem o seu Mistério. Mesmo as vidas trágicas, ou malogradas, ou as pessoas que se agarram a seus medos para não se moverem em nenhuma direção, ainda assim, essa vida tem o seu Mistério e não cabe nem ao médico nem ao terapeuta julgar aonde esse mistério vai dar. O terapeuta deve, antes de mais nada, ser aquele que está ali e lá fica, mesmo quando a maioria das pessoas já teriam desistido ou saído correndo dali.
Uma moça tinha acabado de terminar um casamento que não deveria ter ocorrido. Uma menina mimada como tantas que existem por aí, pequenas ninfas perdidas pelo Facebook e Youtubes, vivendo na inconsciência patrocinada por seus pais cheios de grana mas mendicantes de ideias. Ela resolveu fazer uma cirurgia plástica para celebrar a nova fase de sua vida. O procedimento não deu certo, mudou seu rosto, ela detestou. Foi em outro cara, ficou pior. Em desespero, queria ir para a mesa de novo e aí a coisa ficou realmente complicada, porque os médicos começaram a farejar o perigo. Operar a moça de novo era sinônimo de encrenca. Fisioterapias, tratamentos estéticos, medicamentos e cremes, nada traria de volta o seu rosto antigo. Contei para ela do Erro Fundamental, da ganância do último saque que lançou Ulisses no mar e o fez atrasar em dez anos a sua volta para casa. Esse erro é terrível, as consequências, no caso dela, mais terríveis ainda, mas aquilo também seria uma oportunidade de aprender a esperar, a cuidar de sua saúde estética tanto quanto de sua saúde mental. Pela primeira vez na vida, ela teria a chance de iniciar uma jornada, pois quem tem um desejo, tem um caminho. Ela não teria o seu rosto antigo de volta, mas talvez encontrasse um rosto ainda mais bonito. Ela me olhou com descrença, prometeu pensar no que eu falei. A sua mãe ligou no dia seguinte cancelando o seu retorno. Ela nunca mais voltou e deve continuar a sua peregrinação de cirurgião em cirurgião, procurando pelo rosto que não existe. Ou que talvez nunca tenha existido. Cada vida, um Mistério.

domingo, 6 de outubro de 2013

A Verdadeira Face

Está para estrear a segunda temporada de “Sessão de Terapia” na TV a Cabo. Já mencionei que gosto mais da versão americana dessa série, em outro post. Lá, a série se chama “In Treatment” (em tradução livre, “Em Tratamento”). O nome também é melhor, pois dá uma ideia da característica de trabalho progressivo que representa uma psicoterapia. Para um mundo que quer tudo na velocidade de um click, o processo de psicoterapia pode ser um dos últimos redutos da lentidão. O processo é longo e doloroso e os resultados, incertos. Segundo a Psiquiatria vigente, é um bate papo muito caro sem base científica. Mas não é esse o assunto desse post.
Há uma cena em “In Treatment” em que Alex, piloto da Força Aérea Americana, jovem arrogante e com algumas dúvidas sobre a sua vida e sexualidade, resolve confrontar e “desmascarar” o terapeuta. Ele descobre que Paul, o psicoterapeuta vivido por Gabriel Byrne, está sendo traído por sua mulher, a sua filha está de caso com um delinquente que deveria ajudar, e o próprio terapeuta está meio apaixonado por uma cliente que Alex está, como poderia dizer sem chocar, está “pegando”. No meio de todo aquele vomitório, Alex pergunta a Paul quantas cabeças ele ainda vai ferrar para encontrar o que está procurando? A cena termina com Paul catando o seu paciente pelos colarinhos, manobra terapêutica muito pouco ortodoxa, embora algumas vezes necessária (Estou brincando. Ou não estou?).
A parte boa dessa cena tão dramática quanto inverossímil é que Alex reconhece que o Terapeuta é mais uma pessoa na luta, na busca profunda por conforto, amor e, sobretudo, significado. Ele pode ser um companheiro de viagem, mas não um guia no safári do Inconsciente. Terapeutas tem assuntos pessoais que não conseguem resolver, crises conjugais e dificuldades como todo mundo. O que é bom que um psicoterapeuta saiba é que ele é um buscador de significados para si, para o Outro e para a vida. As pessoas ficam sempre fantasiando como deve ser horrível ficar o dia inteiro sentado ouvindo problemas e, algumas vezes, os desaforos, dos Alex da vida. Para quem fala sobre essa fantasia eu quase sempre respondo que meu único paciente realmente difícil é o Marco Spinelli. Sujeitinho chato e repetitivo, além de pretensioso. E o pior é que ele nem me deixa tratá-lo.
Estamos todos de passagem por essa vida. As correntes terapêuticas dizem que estamos à procura de liberdade sexual, espontaneidade, poder, grana, amor e cura de nossa eterna sensação de que algo está faltando (não necessariamente nessa ordem). Um junguiano acrescentaria que estamos em busca de Significado e, se tudo der certo, de Sentido.
Já mencionei em outro post o microconto de Borges (Jorge Luis Borges, escritor argentino) em que ele descreve um artista que passou toda a sua vida pintando, esculpindo, expressando o que atravessasse seus dedos e sua alma, com a sua arte. Quando ele morreu, foi dada pelo Criador a oportunidade de vislumbrar de cima toda a sua obra espalhada pelo planeta. Quando o artista olhou com atenção, viu que toda a sua obra, reunida e olhada de cima, tinha o contorno de seu rosto. Os terapeutas, como o Paul, não estão dispensados dessa busca, nem sabem como encontrar os contornos de nossa face verdadeira, sem nossos medos e mesquinharias de praxe. Paul está nessa busca,e esse é o maior presente, a maior dádiva que tem para oferecer para quem senta no sofá à sua frente. Ele não sabe disso claramente, mas nada vai ajudar a cura de outras feridas quanto a honestidade e a coragem de cuidar de suas próprias dores e saber que, nessa vida, somos todos peregrinos.