domingo, 29 de abril de 2012

Maridos e Transtornos de Humor

Recebi nessa semana mais alguns encaminhamentos domésticos para tratamento. Um que está ficando cada vez mais frequente é de maridos ameaçados de abandono se não passarem pelo psiquiatra. Nessas consultas ouço a famosa e recorrente frase: “Nunca pensei que um dia viria parar aqui”. Levando em conta que há poucos séculos as pessoas eram queimadas em fogueiras ou encerradas em masmorras por apresentarem sintomas neurológicos ou psiquiátricos, não é de se estranhar o preconceito e a sensação de derrota ao se “precisar” de ajuda de um profissional de saúde mental. Sobretudo se o paciente for do sexo masculino. Homens tem um estranho mecanismo evolutivo de não pedirem ajuda. Um homem pode passar horas perdido no trânsito, mas, parar e pedir informações, nem pensar. Pode ser atacado por um predador a qualquer momento. Mas como o instinto de não pedir ajuda é sobrepujado pelo medo de ficar sozinho ou as consequências nefastas de uma greve de sexo, então lá vem os maridos com aquela cara de “o que estou fazendo aqui?”Não há semana em que os jornais, mais ou menos sérios, publicam matérias sobre os excessos de medicação e medicalização dos sentimentos humanos. A vovozinha está chorando porque ficou viúva após sessenta anos de casamento? Taca um Prozac nela, ora. Estudos e mais estudos dedicados a desmascarar a máfia psiquiátrica, esses mauricinhos engravatados distribuindo remédios desnecessários e cheios de efeitos colaterais. Aliás, uma forma de manifestação de hostilidades inconscientes contra o psiquiatra é trazer essas matérias impressas para serem discutidas na sessão. Metade da minha Tese de Mestrado foi sobre a Filosofia da Ciência da Psiquiatria, ou, em termos menos acadêmicos, que P... mesmo estamos fazendo? Portanto, esse debate me é muito agradável, sempre com aquela picuinha inconsciente com o papai, representado pelo psiquiatra-que-fica-me-medicando (vou sentir muita, muita falta do hífen na minha vida) e aonde-ele-quer-chegar? Não, não é agradável chegar à consulta e sair com uma prescrição. Muitos pagam a consulta, jogam a receita no lixo e saem pela vida com um monstro debaixo do travesseiro: os quadros subclínicos.Os quadros subclínicos são um debate surdo nas últimas décadas no establishment psiquiátrico. Um exemplo? Uma pessoa cronicamente mau humorada, é uma chata ou tem um Transtorno de Humor? E a Fadiga Crônica? Uma paciente que tem um humor deprimido constante, depois de ter se aposentado, a família se despedaçado e as limitações ortopédicas tirado a sua capacidade de movimentação, ela vai se animar com uns remedinhos?O fato é que um parâmetro seguro de que as alterações de humor estão demais é a rebelião das esposas. Elas podem descer do carro se o marido não pedir informação ou elas podem descer do casamento se o marido estiver chato demais. O cara chega no consultório com aquela expressão de “qual é a desse cara?” e saem com uma medicação em baixa dose. De quebra, ganham uma explicação sobre os estressores e os mecanismos que levam à exaustão uma parte valiosa de seu Cérebro, que é o Cérebro Emocional (termo utilizado para fins didáticos). Os que não jogam a prescrição fora e experimentam o tratamento por algumas semanas conseguem constatar uma melhora de disposição e de paciência. O cachorrinho de estimação não foge mais quando ele entra na sala. Ele consegue dar bom dia aos seus funcionários ou colegas antes de reclamar de alguma coisa. Ele passa a esperar pela velhinha atravessando a faixa de pedestres em uma eternidade. Ele dá até passagem para o motoboy sem medo de tomar um chute no retrovisor. No retorno, observa que está muito melhor, provavelmente por ter eliminado a lactose da dieta. E pergunta quando seu tratamento vai acabar.

sábado, 28 de abril de 2012

Coração de Fogo

Reencontrei um pequeno e queridíssimo livro. Engraçado os buracos negros que as coisas se enfiam, sobretudo quando queremos encontrá-las. O livrinho é de uma série chamada “Nome dos Deuses”, com várias personalidades sendo entrevistadas sobre a própria experiência mística. O livro que eu procurava é a entrevista de Jean-Yves Leloup. Estava no meu criado-mudo, debaixo de um mar de papéis e livros. Vou produzir um Diáloblog sobre ele.

Estava muito quieta e absorta em sua leitura. Nos últimos dias passava muito tempo em seu canto, lendo.
- Por que você lê assim?
- Assim, como?
- (...) Fica um tempão aí, no seu canto...
- Eu gosto, ora.
- Isso dá para perceber.
Levantou os olhos, arqueando as sobrancelhas.
- Você está querendo que eu pare, não é?
- Quero.
- Mas o que você quer fazer?
- Não sei.
- Então tá, eu paro de ler e ficamos aqui sem fazer nada.
Fez uma cara infeliz, sem notar a sutil acusação contida na frase.
- O que quer dizer esse título?
Por um momento, não percebeu que a pergunta se referia ao pequeno livro que tinha entre os dedos.
- “Se a minha casa pegasse fogo, eu salvaria o fogo”. Adoro esse título.
Olhou com aquela cara.
- Já sei. Você não entendeu.
Fechou os olhos, assentindo.
- Esse é um livro sobre uma entrevista de um amigo, Jean-Yves.
- Ele é seu amigo, mesmo?
- Todas essas pessoas daqui são minhas amigas do coração –falou isso apontando para os livros.
Torceu o nariz, pouco convencida.
- O meu amigo aqui é um homem de Deus.
- É um padre?
- É mais do que um padre. É um buscador. Não tem sossego...
- E gosta muito de fogo?
- Você quer saber desse título, não é?
Balançou a cabeça.
- Ele foi tirado de uma outra entrevista, de um amigo de Jean-Yves. Perguntaram para ele: “Se a sua casa pegasse fogo, o que você salvaria?”. Ele respondeu: “O fogo”. Jean Yves falou que ele salvaria o fogo de Pentecostes.
- O que é isso?
- Quando Jesus foi embora, de vez, deixou para os seus amigos o Espírito Santo. Ele desceu sobre eles como línguas de fogo. Você sabe o que isso significa?
- Não.
- Eu também não sei. O que eu acho é que esse é o fogo de nossa vida. Você já viu que tem gente com fogo e gente apagada?
Concordou com a cabeça.
- Pois é. Não deixe o seu fogo se apagar, menina. Isso é o que quer dizer esse título. Não deixe o seu fogo se acabar, de jeito nenhum.
Passaram uns segundos dentro do silêncio.
- Por que as pessoas perdem o fogo?
- Perdem porque deixam de acreditar.
- Deixam de acreditar?
- Tem medo de acreditar. É mais fácil desistir do que tentar. É sempre mais fácil duvidar do fogo.
- Você é religiosa?
Coçou a cabeça antes de responder.
- Não saio daqui para ir para nenhum templo ou Igreja, querida. Mas deixo o fogo me queimar.
- Todo dia?
- Todo dia.
Sorriu com os olhos.

domingo, 22 de abril de 2012

A Dialética da Duração

Há uma frase do escritor James Joyce que é muito citada: “A História é um pesadelo do qual eu tento acordar”. Sempre achei que a sua tradução está errada. O artista não tenta acordar da História. Tenta, antes, escapar da prisão do tempo. Sidarta Gautama, o Buda, dizia que o começo de todo sofrimento de nossa condição humana deriva da ânsia, da eterna sensação de vazio que nos impele e tortura, o tempo todo. Pois a ânsia pode ser derivada de nossa compreensão limitada do tempo.
Um dos trabalhos do terapeuta é a recuperação de lembranças. Particularmente das lembranças que produzem um estrago permanente. Não é à toa que muitas psicoterapias buscam uma arqueologia de nosso sistema de crenças e dos sistemas de medos que determinam, mais do que o desejável, nosso comportamento e nossa busca. Como isso se manifesta? Lembro de um caso antigo, onde uma menina era bastante pressionada por um medo irracional de seus pais. Ela era rebelde, já tinha aprontado algumas, mas nada justificava tanto medo. Conversei com os pais que me revelaram uma história trágica e oculta de todos, de um avô que cometera um crime, algumas décadas antes. Se não me engano, ele matou a própria avó da paciente, o que era um segredo de Estado na família. Os cientistas poderiam debochar muito disso, mas o fato é que esse ato assassino ficou gravado como medo nos pais, que estranhamente projetavam o medo da repetição da tragédia em sua filha. O terapeuta é o arqueólogo que vai desenterrar essas memórias e esses medos que muitas vezes pautam o comportamento e o mito fundador de uma família.
Podemos dizer, então, que uma forma de sofrimento humano deriva da transmissão contínua desses medos e dessas mágoas que passam de geração em geração. Outro dia, ouvi essa frase, traduzida do Inglês: “Trabalhe como se você não precisasse do dinheiro; Ame como se você nunca tivesse sido machucado e dance como se não tivesse ninguém olhando”. Parece piada, mas essa pequena frase resume as três formas de sofrimento que temos com a passagem do tempo: trabalhamos, gostando ou não, com a percepção que precisamos da grana. O dinheiro traz a percepção do medo de ficarmos sem ele. O nosso medo do futuro. Lembramos também das dores, das experiências que nos machucaram. Perdemos a capacidade de amar, pois já sofremos decepções. E dançamos com medo do ridículo.
Sabemos da nossa finitude e de que o nosso tempo é finito. Temos medo da passagem do tempo e do que ele possa trazer. Tentamos criar salvaguardas, seguros, poupanças. Gastamos muito tempo com a antecipação do devir e do que ele possa trazer. Temos medo das dores reais ou imaginárias de nosso passado, como fantasmas que aparecem para nos assombrar. Perdemos, entre esses dois medos, a experiência da duração, o único lugar onde a vida se passa. Estou escrevendo na frente da TV. O Corinthians está perdendo da Ponte Preta, a torcida roendo as unhas com a passagem do tempo. Ninguém consegue aproveitar o passe bem dado, o chute colocado, a duração do jogo. Alguém torce para o tempo passar devagar, outros rezam para que ele corra. Essa é a cilada que a nossa mente intencional nos propõe: queremos apressar ou brecar o tempo, ele se comporta sempre ao contrário de nossa vontade. Não conheço quase ninguém que goza da passagem do tempo e de sua duração.
Hoje vi uma criança tomando um sorvete muito lentamente. Ela gozava o melhor dos tempos, o tempo que deixa de existir, como se estivesse congelado.

sábado, 21 de abril de 2012

Imagens do Incosciente

Foi nas últimas décadas do século XIX que o neurologista Sigmund Freud aprendeu com um neurologista francês, Dr Charcot, que usando uma nova técnica, chamada Hipnose, as mulheres diagnosticadas com uma Paralisia Histérica voltava a se movimentar espontaneamente , sem ter consciência do ato. Foi Freud que imaginou que aquele sintoma seria gerado por uma tensão, um conflito inconsciente não resolvido, gerando uma espécie de colapso e uma paralisia sem base neurológica. Foi esse achado que criou no senso comum a idéia que haveriam sintomas “físicos” e sintomas “psicológicos”, os últimos seriam uma espécie de fantasma na máquina que poderiam se manifestar, assim, do nada.
Muitos anos e muitas pesquisas vieram nesse século que nos separa das histéricas de Charcot e Freud vai sendo classificado como ultrapassado e suas teorias tratadas como um resíduo da época em que a Neurociência engatinhava. Pois ontem me lembrei do bom e velho tio Sigmund, quando usei o velho movimento ocular horizontal, o mesmo que Freud usava para induzir um estado hipnótico ou de transe em seus pacientes. Uma cliente não conseguia entender uma Fobia relativamente rara, um medo de minhocas, que se renovou quando mexia em um vaso. Pois fizemos uma visualização usando o movimento ocular, e fomos voltando em sua linha do tempo, até que surgiu uma imagem aterrorizante. Uma menina de pouco mais de cinco anos, ela, olhando para o seu irmão no banheiro. Para quem está pensando que vamos recuperar alguma cena de abuso sexual, felizmente, não é o caso. O menino estava vomitando e colocando solitárias pela boca e nariz. A paciente se contorcia de nojo e aflição, como se estivesse vendo a cena com o horror de uma criança de cinco anos.
Freud chamaria essa imagem de “Cena Primária”. Uma imagem que define um sistema, uma associação irracional entre a solitária, o banheiro e as minhocas. Esse medo acompanhou e tolheu a sua vida por décadas, sem nenhuma pista para poder identificar a sua fonte, nenhuma lógica interna em uma mulher adulta com medo de minhocas. Um freudiano mais recente identificaria uma repressão de sua sexualidade e as minhocas, uma imagem fálica. A minha paciente seria uma histérica moderna segundo esse ponto de vista, e seu medo representaria a repressão e o fascínio pelo Falo/Minhoca. Um neurocientista apontaria a hiperatividade das áreas límbicas responsáveis pelo processamento do medo gerando um medo irracional e incontrolável de uma criatura inofensiva, embora um pouco pegajosa. Algumas medicações com ação nessas áreas e tudo estaria resolvido.
Décadas e décadas de encrencas entre os dois tipos de profissionais, Décadas . Pois uma técnica muito simples, baseada no movimento dos olhos, e vamos cavocando cada vez mais fundo nas redes neurais, onde estão algumas cenas bobas para um adulto, mas perfeitamente aterrorizantes para uma criança, como um irmão querido expelindo lombrigas. Ao chegarmos nessas cenas, podemos entendê-las, transformar as imagens do medo. É ou não é uma diversão?

quarta-feira, 18 de abril de 2012

O Amor em Tempos de Facebook

Aquele ditado "Longe dos olhos, longe do coração", ficou completamente obsoleto em tempos de Facebook. Hoje você pode acompanhar em tempo real todas as peripécias amorosas de seu ex. Isso acrescenta alguns mililitros de lágrimas aos nossos divãs, pois as pessoas podem experimentar uma dupla ou uma tripla rejeição, tudo isso mediante um click. Sabe aquele cara que te fez sofrer, apareceu e desapareceu de sua vida umas trinta vezes e, ao ouvir um dá-ou-desce salta fora com aquelas frases clichê, tipo "Não é você, sou eu", ou "Não consigo me ligar a ninguém, não consigo me entregar"? Pois o cara fica embaçando a vida de uma mulher bonita, interessante e com questões de autoestima por meses e vai embora dizendo que não sabe amar. Duas semanas e várias caixas de lenço de papel e de chocolate depois, a moça resolve dar uma rápida e fatal espiada no Facebook do cara, só para tentar detectar algum sinal de tristeza pela quase relação encerrada. Lá está o Mister "Não consigo amar ninguém" com a sua nova namorada, cheio de posts repletos de arrulhos de amor. Nossa querida obsessiva amorosa vai entrar no Facebook da tal namorada, onde tem infinitos posts de amor e um "Relacionamento Sério" cravado na tela. Muitas vezes nosso candidato a Romeu estava já saindo com a atual pombinha enquanto enrolava a pombinha anterior. Isso é que é humilhação.
Estamos na era da genômica. Daqui a alguns anos, os pacientes vão preencher a ficha de admissão apenas colocando o dedo no scaner, onde vai aparecer todos os dados dele, inclusive o seu genoma. O médico já vai saber quais as doenças hereditárias que podem estar desenhadas e qual o perfil de medicamento mais adequado ao paciente. Pelo menos é isso que as pessoas fantasiam, um determinismo genético absoluto. Isso é, claro, uma bobagem. Um estudo que eu li mostra que o genoma pode prever muito pouco do que vai acontecer com o paciente, pois a interação entre genes e meio ambiente é que é a alma do negócio. Conversar com o paciente não vai sair de moda, felizmente, embora seja prática em desuso em alguns consultórios. Mas esse não é o assunto do post.
O que seria realmente legal seria a Genômica estudar a compatibilidade genética dos candidatos a namorados. Vivo pensando em formas de ficar rico no mole, então podemos captar investidores para esse projeto: vamos fazer um site de encontros em que as pessoas coloquem o rosto dos pais, ou das figuras parentais e dos últimos parceiros. Colhemos um gota de sangue para examinar a compatibilidade genética dos casais e marcamos encontro, baseados em características físicas e cheiros, gostos e genes comuns. No livro (que eu adoro) "O Analista de Bagé", Luís Fernando Veríssimo imagina um churrasco de final de ano dos pacientes do analista de Bagé. A pelada, por exemplo, não vai ser entre casados e solteiros, mas entre sádicos e masoquistas, que aí ninguém reclama. Podemos parear em nossos site de encontro essas "compatibilidades", então.
Tem um cliente meu, engenheiro, que soltou em uma sessão: "A vida é um mistério, não uma linha de montagem". Pois os casais se encontram, e desencontram, dentro desse campo de mistério. Mas quando alguém chora na sessão se perguntando por que o amado e a amada nunca deu certo com eles e se amarrou com a primeira ou o primeiro que apareceu, postando imediamente seu amor nas redes sociais, eu respondo, na maior cara de pau: "É uma questão de compatibilidade genética".

domingo, 15 de abril de 2012

Marco Spinelli em Crise

Agora entendo a insistência com que o cartunista Angeli, da Folha de São Paulo pintava a si mesmo derretendo na frente da prancheta na série “Angeli em Crise”. As crises criativas não são incomuns na vida de alguém que tem que produzir uma tira de jornal engraçada, todo dia. Eu não tenho a mesma pressão que ele, mas já sei o que é ficar na frente desse teclado sem nenhuma idéia do que escrever no blog de hoje.Daí, o título acima.
Podia falar de futebol e do rebaixamento da Lusinha, para grande consternação de minha cachorrinha, Chiara, que apesar do nome italiano é tida nessa casa como torcedora da Portuguesa. Ela é um pouco burrinha, achamos que seria mais simpático ela torcer pela Lusinha. Poderia falar sobre as cachorrinhas, o post sobre a querida e saudosa Bunny foi o mais lido na história do blog. Nada de Neurociência, Psiquiatria Biológica ou Psicologia Analítica. O amor de um homem pela cachorrinha e a dor de sua partida foi o tema do ano.
Pois quando não tenho nenhum tema na cabeça para esse blog, começo a pegar as minhas anotações de aulas, como do Simpósio que comentei ontem. Vejo um estudo bacana sobre Exclusão e Doença Mental. Há um grande aumento da incidência de doenças mentais, inclusive as mais graves, que são os transtornos psicóticos, em pessoas que se sentem cronicamente excluídas. O estudo fala da “Experiência de Ser Diferente”, o que pode após alguns anos gerar sintomas esquizofrênicos. Quando aquele rapaz invadiu a escola no Rio de Janeiro e matou as crianças, não foram poucos os colegas que se apressaram em chamá-lo de Esquizofrênico nas reportagens. A sua mãe biológica tinha um transtorno psiquiátrico, ele teve dificuldades de adaptação e socialização desde a adolescência e sofrera muito bullying na escola porque “era diferente”. Jean Charles, mineiro assassinado por policiais ingleses, também teve esse comportamento persecutório quando viu que os policiais se aproximavam dele porque viram que ele era “diferente”. A maior estranheza gerada por esses estudos é que a Psiquiatria tenta, há décadas, descobrir as causas da Esquizofrenia. Traços Genéticos, Traumas de Parto, Desnutrição e até Nascimento no Inverno, quando a gestante e o bebê são mais suscetíveis à infecções virais, tudo isso é pesquisado exaustivamente há décadas. Se a base da doença é tão biológica, por que faz tanta diferença o isolamento e o estresse social?
Entendemos que temos uma sociedade mais tolerante e menos sectária, que as pessoas são mais estimuladas a fazerem parte ou serem incluídas. Basta ouvir algumas bandas de rap ou hip hop brasileiras para perceber a experiência da exclusão social e, principalmente, da exclusão do paraíso do hiperconsumo. Falta de oportunidades, de perspectivas, de estímulos. Escrevi bastante nesse blog sobre o Transtorno Obsessivo Amoroso, que tem como traço comum a sensação de muitas pessoas, sobretudo mulheres, de estarem excluídas dos relacionamentos amorosos, perdidas na selva dos relacionamentos expressos e casuais. Talvez a nossa sociedade se caracterize, mais do que qualquer outra época histórica, nos grandes agrupamentos humanos onde as pessoas se sintam cada vez mais sós e excluídas. Vou me lançar candidato a alguma coisa para estabelecer micropolíticas de inclusão. O estresse de ficar fora, ou o medo permanente dele, pode estar na raiz de todos os nossos problemas sociais. Votem em mim, para qualquer coisa.

sábado, 14 de abril de 2012

Ciência e Consciência

Estive num evento há três semanas, da Lilly Neuroscience Academy, com algumas apresentações bem legais. Infelizmente, as mais legais foram logo as primeiras, com o resto do evento com o "mais do mesmo" que caracteriza os congressos e simpósios. Vou falar um pouco dessas idéias nos próximos posts.
O Dr Jim van Os, psiquiatra holandês, começou a sua apresentação com alguns slides arrasa quarteirão. Colocou que o nosso Conhecimento é uma mistura de Fatos Científcos com as nossas Crenças. No meio dessas duas instâncias, está a Moda. Pasmem os leitores que a Ciência também tem as suas Fashion Weeks, com idéias que entram e saem da Moda. Já falei sobre isso em outro post. Não existe a tal Objetividade Científica. O cientista enxerga o que está determinado pelo seu sistema de crenças, querendo ou não. Se um cientista fizer um estudo para provar os poderes curadores da oração, vai encontrar resultados positivos. Se desenhar o experimento para comprovar a crença dos céticos, também vai gerar resultados condizentes. Por isso que gosto, na minha prática clínica, de duas atitudes diante do que estou vendo: um é a Epoché da Fenomenologia e outro é o Falsificacionismo de Karl Popper. Calma, que vou explicar esses palavrões.
No início do século vinte, E. Husserl descreveu a Fenomenologia, um primórdio de Filosofia da Ciència. O fenomenologista é o sujeito que tenta descrever e penetrar no fenmeno em profundidade, para atingir a sua essência. A "epoché" da Fenomenologia é a capacidade do observador abandonar tudo em que acredita, deixar em suspenso tudo o que já viu a respeito e simplesmente penetrar no fenômeno que está na sua frente. É uma tentativa de recuperar o olhar mágico da criança, que vê em tudo encantamento e novidade. Jesus dizia que se não recuperarmos a visão das crianças, não vamos entrar no Reino. Esse olhar sem preconceitos permite que o observador perceba o inesperado, o comportamento exatamente diferente de um fenômeno do que era o razoável, a média. Vivemos no império das médias e das medianas, o que desemboca na mediocridade. Devemos olhar tudo como novidade. Tem um jeito de você matar um médico, ou qualquer profissional: é ele pensar que já viu tudo ou, pior, que o mundo cabe em suas crenças.
Lembro de um momento crucial na minha vida, quando, há vinte anos, dividi uma aula com um grande psicanalista junguiano. Ele era e de alguma forma, ainda o é, talvez o nome mais importante dessa linha no Brasil. Nunca me esqueço da decepção e da solidão de assistir a sua aula. Um moleque de vinte e sete anos já conseguia ver a vaidade, a falta de embasamento e os ataques bobocas que ele fez à Psiquiatria Biológica (eu conseguia e consigo fazer ataques bem melhores). Naquele dia eu percebi que, dali para frente, estava por minha conta, pelo menos no especto teórico, mas essa é outra história. Das várias cagadas que o Grande Junguiano proferiu, uma delas foi atacar o filósofo Karl Popper como grande expoente da filosofia e materialismo científico. Ele nunca leu o sujeito, mas precisava de um inimigo. Popper formulou o Falsificacionismo, que, a grosso modo, descreve que um fato científico é verdadeiro apenas enquanto outro fato não vem contrariá-lo. Um exemplo clássico é o aforisma: "Todos os cisnes são brancos" é uma verdade científica até alguém aparecer com um cisne negro. O cientista deve testar e duvidar de tudo o que acredita, sempre. Acho que era esse o espírito da apresentação do colega holandês: duvide sempre, de tudo. Quem se agarra a um conjunto de verdades absolutas vira uma caricatura de si mesmo. Nossos diagnósticos, crenças, estratégias são válidas apenas e tão somente enquanto não aparecer algo melhor e mais abrangente para entendermos o que estamos vendo. É um pouco angustiante, mas, se a gente souber fazer, é bem divertido. O Grande Junguiano poderia se beneficiar da filosofia de Popper, já que propunha várias teorias e visões provenientes de seu próprio umbigo. Mas aqui entre nós, não tenho mais nenhuma mágoa do Grande Junguiano. Ele é bom terapeuta e, sobretudo, um apaixonado pela sua prática. Um abraço para ele.
Esse post pode resumido, então: olhe tudo com olhos de principiante e, sobretudo, duvide sempre de tudo o que você acredita. Fé, para mim, é isso.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Comentários sobre Comentários

Vou comentar os comentários. Achei os textos do feriado meio fraquinhos, mas, surpresa - geraram um monte de comentários. Que legal. Quem tem amigos não morre pagão.
Para começar, um comentário dá conta da concordância do leitor com a fala do psiquiatra das estrelas, Dr Drew, feito no Reality Show - "Celebrity Rehab" para o ator Eric Roberts (irmão da Julia Roberts). Ele falou para o sujeito: Você me parece um cara legal que vira um babaca quando usa drogas. Eu discordo completamente da frase. Concordo com as gravatas e as camisas do Dr Drew, embora sejam um visual um tanto mauricinho. E discordo completamente da frase. Eric Roberts descreve-se como um cara chato que quando usa Maconha e Álcool vira um sujeito legal, engraçado, com raciocínio e tiradas rápidas. Então, nesse caso, a ordem dos fatores altera o produto. Eric se sente um babaca quando está "careta" e se acha um cara legal quando embalado pelas substâncias, as drogas. Existe uma questão importante para se olhar nesses sentimentos de inadequação e baixa autoestima quando ele não está sob efeito das substâncias. Isso deve encobrir um quadro de Ansiedade Social (antiga Fobia Social) e mesmo um Quadro Depressivo, com uso secundário de Maconha e ÁLcool. O que isso quer dizer? Isso quer dizer que o uso de substância é para aliviar os sintomas de ansiedade e depressão que estão no miolo do caso. Se isso não for tratado, o resto também não vai melhorar.
O comentário também fala da carreira de Eric, muito produtiva no começo e hoje despontando para o anonimato. Será que o fato da Julia Roberts, em início de carreira, ser conhecida como a irmã do Eric e, hoje, ele é o irmão da Julia, teve influência em sua decadência? Pode ser, mas isso não apareceu no programa, pelo menos até onde eu assisti, porque mesmo a minha tolerância para programas trash tem que ter os seus limites. Eu me concentro da frase do Dr Drew porque ela é um clichê no tratamento de dependentes químicos, tipo "Você é o médico que a droga transforma em um monstro". O dependente sabe que aquele babaca que destrói tudo sob efeito das drogas também faz parte de sua Psique. Não adianta criar estigmas. Essa ferida precisa ser tratada a integrada. Frases clichê não ajudam nesse processo.
Outros comentários são sobre o sonho de Jung, descrito em uma cena do filme de David Cronenberg, "Um Método Perigoso". Para quem se interessar, eu sugiro dar um pulo nesses posts, onde eu falo sobre o filme. No sonho de Jung, ele está numa viagem e tem um barqueiro triste, que alguém observa que não está lá, já morreu, mas não consegue morrer direito. Lú observou que o barqueiro pode ser uma alusão a uma figura da Mitologia Grega, Caronte, aquele que faz a travessia do rio que nos separa do Reino dos Mortos. Ótima lembrança. Freud achou que o barqueiro morto e vivo era uma referência aos sentimentos de Jung com relação a ele e à Psicanálise nascente. Jung ficou emputecido com a leitura, que achou parcial e reducionista. Não acho que estivesse errada, igualmente; o sonho também descrevia a situação de afastamento e crise que culminou com o rompimento com Freud. Mas a imagem de Caronte, o barqueiro, também é muito bonita. Os terapeutas e as terapias, tem a função de Caronte. Os pacientes são levados ao mundo das sombras, o Inconsciente, aonde tem algumas coisas mal enterradas ou que precisam ser reavivadas. O terapeuta cobra a passagem de ida e a de volta. O trajeto é longo e algumas vezes doloroso. Mas no final da travessia, podemos deixar de viver no limbo, como mortos-vivos.
De qualquer forma, meu estilo meio empolado às vezes inibe que as pessoas postem comentários, imaginando que eles pareçam bobos. Mas vocês devem notar que eles podem gerar novas reflexões, novos diálogos e ângulos que o post não tinha abordado. Obrigado pelos comentários, que vão gerar mais comentários.

domingo, 8 de abril de 2012

De Páscoa e Mistério

Vejam que eu passei incólume pelos feriados de Páscoa sem ficar distribuindo leituras junguianas a torto e a direito. Fico um pouco irritado com a programação da TV a Cabo, que tira do baú os filmes de Natal, a história do nascimento de Jesus e várias versões de Papai Noel. As cotações e as procuras de Ovos de Páscoa, Colombas e o preço do bacalhau, tudo pela hora da morte, diria a minha avó. De Páscoa mesmo, pouco se fala.
Outro dia estava vendo um programa de Stand Up, comédia em que o contador de histórias encaixa algumas piadas sobre a vida cotidiana. Havia um rapaz que encaixou uma piada sobre a notícia que haviam encontrado a tumba onde Jesus fora enterrado. Podemos assistir a filmes, documentários e reportagens onde busca-se o tal do túmulo, o tal do corpo, para provar, cientificamente, a falsidade da Ressurreição e, portanto, de todo o Cristianismo. Não há prova nem da própria existência do Nazareno, embora alguns historiadores da época tenham boas alusões a um cara como Jesus. Mas não há evidência concreta, e lá se vão as infindáveis discussões sobre o Sudário. Ficamos, de novo, espremidos entre o Real e o Simbólico.
Há um filme de um cineasta canadense, Denis Arcand, mais conhecido pelas “As Invasões Bárbaras”: o filme se chama “Jesus de Montreal” e conta a história de um grupo de teatro que está preparando a encenação da Paixão de Cristo, como assistimos às pencas nessa época. O ator que vai fazer o papel de Jesus passa o filme inteiro assombrado pela responsabilidade e pelo conflito de sua convicção materialista, a verdadeira religião do século passado. Como chegar na expressão verdadeira da voz de Cristo, como traduzí-la para nossos tempos brutos? No final do filme, o ator consegue desempenhar lindamente o papel de Jesus, como se o mesmo estivesse encarnado nele, que é o que os grandes atores fazem, eles encarnam o personagem. A encenação da Paixão é feita lindamente, os atores saem para comemorar, o rapaz que fizera o papel de Jesus sofre um acidente e entra em morte cerebral. O cineasta mostra, aí, o Mistério da Ressurreição, que hoje comemoramos. Os órgãos do jovem ator são doados e o filme mostra as pessoas renascendo com o resultado daquela tragédia. Uma vida sacrificada que salvou várias outras. Esse é o Mistério da Páscoa.

sábado, 7 de abril de 2012

Psiquiatria de Aquário

• Já que esse blog, como muitos outros, às vezes tem uma característica confessional, vou abrir mais um segredo para o grande público: às vezes assisto “Celebrity Rehab”. Sim. Essa é a verdade horrível. Para quem não sabe, e a maioria não sabe, esse é um Reality Show americano sobre uma série de micro celebridades americanas que perderam o caminho do sucesso e acharam o caminho dos tabloides pelo uso de drogas e escândalos seguidos. Eles aceitam uma internação numa clínica de Reabilitação, tudo sob a vigilância estreita das câmeras. Há um psiquiatra que comanda o trabalho na clínica, Dr Drew, que é um dos motivos para eu assistir a esse programa. Eu me sinto um psiquiatra maravilhoso perto do Dr Drew. Não costumo usar aquela gravatas maravilhosas, tom sobre tom com as camisas, igualmente maravilhosas, mas, de resto, sou um verdadeiro gênio perto do cara. Vou dar um exemplo, para não parecer uma necessidade absoluta de afirmação desse autor: um dos internados é o ator (?) Eric Roberts. Não consigo lembrar de nenhum filme para servir de referência de seu trabalho. Havia um com Sylvester Stallone, “The Judge”, em que ele fazia o papel de um mafioso que estava sendo seguido pelo mocinho. O filme é dos anos 90. Eric Roberts teve um episódio cerebral após o uso de Cocaína que lhe atrapalhou a fala. Já era um ator ruim antes disso, depois estava simplesmente acabado. Na entrevista, descreveu uso crônico e abusivo de Maconha, depois seguida de Cocaína. Relata que sob efeito das drogas sente-se alegre, espirituoso, a alegria da festa. Sem as substâncias, descreve-se como um chato, mau humorado e sem nenhuma das grandes tiradas que o álcool e a maconha lhe despertam. Na entrevista, Dr Drew me sai com uma frase mais ou menos assim: “Parece que há um grande cara aí que vira um babaca quando usa drogas”. Só esta frase já poderia encerrar o tratamento. O cara relatou exatamente o contrário: sem o efeito das drogas, aparece um sujeito tenso, paranoico, sem graça. Sintomas evidentes de uma Fobia Social, com uso secundário de Maconha, Álcool e outras drogas para mitigar os seus sintomas. Um ator com Fobia Social? Pode parecer estranho, mas não é incomum que as pessoas mesmo procurem essa profissão para enfrentar a própria timidez e em casos mais graves, a Fobia da exposição e do ridículo em público. Na hora em que o médico inverte a ordem dos sintomas, deixa o paciente no escuro quanto à origem de seus sintomas.
Não quero transformar esse espaço em lugar para desancar o colega, que, com as suas camisas bonitas e gravatas bárbaras, dá a cara para bater nesse programa. Ele é capaz de uma escuta delicada e tenta orientar os pacientes sobre as fases da desintoxicação. Não tem a menor noção da complexidade da dinâmica dos pacientes e menos ainda, do grupo. No episódio de hoje, um titica que eu nunca vi mais gordo começou a provocar uma atriz, dizendo que ela é viciada em Cirurgia Plástica. Ela foi reclamar com a equipe, que se solidarizou com ela. O grupo permitiu o bullying sem nenhuma intervenção. Eu já fiquei com vontade de perguntar se a mamãe dele andou namorando algum cirurgião malvado. Ou o que o grupo se propunha a funcionar como grupo para tentar dar suporte a essas atuações. Dr Drew limitou-se a lembrar que não pode haver agressões físicas nas dependências da clínica. Boa lembrança.
Já escrevi milhares e falei milhares de vezes, mas vou repetir: em vez de animar essa briga de comadres, de Dr Freud versus Prozac, ou Neurociência versus Psicanálise, ou Dr Jung versus Dr Freud, devemos procurar pelas confluências, pelas abordagens integradas e, sobretudo, pela compreensibilidade dos sintomas, para os tratamentos não parecerem um vôo cego entre escalas diagnósticas e frases feitas dos terapeutas. E tenho dito.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

O Sonho de Jung

Para os poucos, e bons que acompanham essas mal traçadas, vou ser mais técnico nesse post, então se ficar chato ou incompreensível, continuem navegando.
Há uma passagem no filme de David Cronenberg, que já comentei em outro post, “Um Método Perigoso”, em que Jung está viajando com Freud para a América e conta para ele, no deck do navio um sonho interessante: “Jung estava fazendo uma viagem, na fronteira entre Áustria e Suiça. As bagagens estavam presas na fronteira e havia um barqueiro se movimentando. Era um homem triste e alguém comenta que ele não estava realmente lá, mas era um homem que já havia morrido, mas não sabia como morrer direito”. Freud interpretou o sonho como uma alusão à relação deles. A fronteira entre Suiça e Áustria era a relação entre eles, já que Freud era austríaco e Jung, suíço. Para ele, o barqueiro morto-vivo era uma alusão à opinião de Jung sobre ele, alguém que já estava superado. Mencionou também que o sonho expressava a hostilidade inconsciente de Jung,o filho, contra Freud, o pai. Jung ficou perturbado com essa interpretação e, na minha opinião, com toda razão. O rompimento entre eles estava a caminho e Freud tinha uma certa fixação na estrutura arquetípica do Grande Pai sendo destituído pelos filhos. No começo da relação com Jung pensou que ele seria o seu Príncipe consorte, o continuador da senda psicanalítica por ele criada. Com o tempo, Jung passou a discordar de vários pontos de sua teoria, até o que era uma grande amizade caminhou para a rivalidade e o rompimento. A briga persiste até hoje, um século depois do quiproquó. Mas não é sobre isso que eu quero escrever.
As diferentes interpretações marcam as diferenças entre a interpretação redutora e a amplificação simbólica. Jung tentava sempre uma amplificação dos conteúdos dos sonhos para além dos esquemas interpretativos da teoria, psicanalítica ou não. Vou me arriscar nesse sonho. Jung explorou as várias fronteiras da Psique: a fronteira biológica, as mitologias, e, por que não dizer, as fronteiras da espiritualidade. Não há nenhuma alusão do sonho ao barqueiro como figura paterna, Freud ou qualquer outra figura. As malas presas na aduana era realmente uma alusão ao momento que Jung estava passando, tentando transpor as fronteiras de seu pensamento. O barqueiro morto-vivo era uma alusão a várias experiências que Jung teve da fronteira entre a Psique inconsciente e a espiritualidade, o que lhe valeu até hoje a classificação de místico, romântico, religioso e outros “xingamentos” no campo da Psicologia.
O barqueiro que não consegue morrer representa as coisas que não deixamos morrer em nossa vida, o que nos impede de transpor as fronteiras de nossas neuroses. Mas representa também a fronteira que Jung descreveu, mas não entrou, a fronteira do que chamamos de Espiritualidade. Quando tratamos de nossos pacientes e de suas dores, podemos afetar a própria relação com as mágoas e as dores que carregamos, os mortos vivos de nossa tristeza. Isso afeta as coisas que devem e podem, acabar.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Os Três Princípios e Você

Após a postagem do último texto, recebi algumas indicações fora do blog de que alguns leitores não entenderam p...nenhuma do que estava escrito. Brahma, Vishnu, Shiva, como assim? O que uma mitologia milenar como as velhas histórias hindus podem interferir na minha maneira de ver o mundo? Bom, vamos tentar explicar de novo.
Recapitulando: Brahma é o princípio da Criação absoluta; Vishnu transforma essa Criação Absoluta em Coisa, é o princípio da Consolidação; Shiva é o princípio da Transformação, removendo, destruindo o velho para dar origem ao novo. Esses princípios são manifestos em toda a Natureza e em nosso dia a dia. Por exemplo, no sangue que corre em nossas veias e artérias. A Medula Óssea tem a ver com o princípio da Criação/Brahma: ele produz as células multipotentes, que podem se transformar em todos os maravilhosos componentes celulares de nosso sangue, glóbulos vermelhos, brancos, plaquetas. É exatamente o princípio das Células-Tronco: são células de potencial absoluto, que podem se transformar em qualquer tipo de células, abrindo imensas possibilidades para a Medicina. A Medula Óssea, que é diferente da Medula Espinhal, produz as células de forma constante, despejando-as na circulação. Vishnu é o princípio da consolidação, que se manifesta no sangue, dentro dos vasos. É lá que as células vão se diferenciar e amadurecer, tornando-se uma pequena parte de uma gigantesca orquestra. Quando o seu tempo chega, as células antigas que perderam a sua função e seu uso são removidas da circulação através de Shiva, o Baço. Há uma seleção natural de todas as células que passam por ele, que retém e elimina as células fora de ordem.
Se alguma dessas funções é aumentada ou diminuída, graves problemas ocorrem. Em nosso organismo celular, ou em nosso organismo psíquico, ou no organismo social. Excesso ou falta de qualquer um dos princípios causam desequilíbrios e doenças.
Uma leitora desse blog, Sônia, fez uma paralelo respeitoso com a Trindade Cristã, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. O Pai é o princípio da Criação Absoluta, o Filho torna manifesta a maravilhosa criação e a conexão com o Pai, mas o Espírito Santo não tem a função arrasa quarteirão de Shiva. O Espírito Santo faz a síntese, a manifestação invisível da união do Pai e do Filho. A função de Shiva é vista em nossa cultura como o Maligno, aquele que vem destruir tudo, sem nenhuma compaixão. Jung escreveu um livro impressionante sobre esse aspecto da divindade e da vida, o “Resposta a Jó”. Jó é um personagem bíblico que experimenta na pele o aspecto Shiva da vida: da noite para o dia, Jó perde os seus filhos, a sua fortuna e depois a sua saúde, e passa todo o livro de Jó lamentando o Absurdo e tentando entendê-lo. Fala-se muito da paciência de Jó, mas o fato é que ele passa a sua busca toda bastante emputecido. Mas não vou falar dele nesse post. Jung escreveu sobre a perplexidade de um homem justo que vê a sua vida devastada pela tragédia. Esse é um aspecto de nossa relação com a vida e com Shiva. O fato de não reconhecermos o aspecto Shiva da vida que provoca as profundas crises de fé em muita gente. Como Deus pôde permitir a morte de milhares de pessoas em um terremoto? O terremoto é um aspecto, uma faceta do Princípio representado por Shiva. Pensamos que podemos contê-lo, mas não podemos. Conta a história que quando um dos cientistas que trabalhou na confecção da bomba atômica, se não me engano Oppenheimer viu um teste nuclear, balbuciou aterrorizado que agora ele era Shiva, o deus da Destruição. Mas isso é uma injustiça com Shiva. Ele não vem para destruir, mas para Transformar.
Espero não ter aumentado a confusão.

domingo, 1 de abril de 2012

Os Três Princípios

Como as pessoas podem notar nesse blog, eu tenho lá meus heróis, meus amigos nessa trajetória meio solitária de pensamento. Um deles é o mitólogo Joseph (“Joe”) Campbell, que ficou mais conhecido do público após a realização do “Poder do Mito”, uma série de entrevistas nos estúdios de George Lucas sobre a obra colossal desse homem. Tem uma história engraçada da vida dele, que não deixava de dar a cara a tapa sempre que chamado para uma entrevista. Pois foi falar sobre Mitologia em um programa de rádio, com um desses locutores meio burros e fundamentalistas que não entendem nada do assunto mas querem saber mais do que o entrevistado. O sujeito perguntou a ele o que era Mitologia, Campbell respondeu que era um corpo de histórias ancestrais que refletiam a nossa vida como metáforas. O cara interrompeu e falou que não eram metáforas, eram histórias mentirosas. O resto da entrevista foi o boçal falando que eram mentiras, Campbell respondendo que eram metáforas. Deixa eu colocar a minha mão nessa cumbuca: O Nascimento de Jesus de uma Virgem é uma mentira ou uma metáfora?
Durante muito tempo eu tentei e ainda tento entender o que provoca a doença e determinados comportamentos das pessoas. Campbell me ajudou muito descrevendo a trindade hindú: Brahma, Vishnu, Shiva. Brahma é o deus de toda criação. Tudo sai dele. Brahma representa a infinita possibilidade, a somatória de potenciais que existem em todos os átomos do Universo. Quando falamos de um Deus Onipotente, é disso que estamos falando. A Física Moderna chamaria Brahma de Vácuo Quântico, o (não) lugar das possibilidades infinitas.
Vishnu me interessa particularmente. Vishnu é o deus da consolidação. Ele retira de Brahma a criação e a transforma em coisa feita, estabelecida. Gosto dele. É o deus do Real. Tanta gente vive no reino de Brahma, contando sempre com as possibilidades infinitas, enquanto que Vishnu nos aponta a realidade construída com um tijolo encima do outro, todo dia. Mas Vishnu é chato. Detesta ser ignorado. Se você tem o hábito de ignorar as evidências, passar por cima da realidade e inventar um mundo só seu, com certeza vai arrumar encrenca com Vishnu. Mas na hora do castigo, não será ele que vai trazê-lo, mas seu irmão, Shiva. Shiva é o cara que vem arrebentar com tudo, quando os ciclos terminam, os pecados se acumulam, o equilíbrio precisa ser reestabelecido. Por isso que, em nossa Mitologia Cristã, Shiva é confundido com o Maligno. Parece que vem para punir, castigar, dividir. Não. Esse aí é o ser humano e sua infinita estupidez. Shiva vem restabelecer o equilíbrio e encerrar os ciclos.
Sempre tentei entender as psicopatologias a partir de uma estrutura tripartite, muito baseada em Lacan: Estrutura Psicótica, Perversa e Neurótica. Isso sempre me ajudou muito. A estrutura psicótica é como uma psique dominada por Brahma: tudo é produzido incessantemente, os bons e os maus conteúdos, sem a força de Vishnu. O Ego, sem esse princípio organizador, não consegue se constituir. Vai sendo engolido pelas imagens sem conseguir organizá-las. Nas estruturas Perversas, temos mais uma vez problemas com Vishnu: o Ego quer ter acesso ao gozo e ao Poder de Brahma sem fazer esforço. Os dependentes químicos tentam essa operação: o gozo absoluto, induzido pela droga, sem a necessidade de operar no Real, sem necessidade de esforço nenhum. Frequentemente, são assolados por Shiva, que vem arrebentando com tudo. Lembro das Torres Gêmeas desabando há uma década, aquele era um aviso de Shiva para uma sociedade que esqueceu de considerar o Real. Finalmente, temos a estrutura neurótica, a nossa. Os neuróticos tem várias questões, mas sempre tentam domar Shiva. Planejamos, fazemos seguro, antecipamos o futuro para evitar, valha-me Deus, os ataques de Shiva. Os neuróticos são fissurados por Vishnu: preocupam-se com o dia de amanhã, com os erros do passado, com as coisas seguras e protegidas. Dificilmente aproveitam da criatividade infinita de Brahma e dos sacrifícios necessários exigidos por Shiva.
O Pai, o Filho e o Espírito Santo também falam desses princípios. Mas é melhor parar por aqui, senão vamos cutucar em calos arquetípicos do Mito Cristão.