quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Até o Osso - O Perdão

O filme “To the Bone” (“O Mínimo Para Viver”), produção original do Netflix, serviu de base para esses quatro derradeiros posts, que vão encerrar esse blog. Quem não conseguiu vê-lo saiba que teremos alguns spoilers nesse texto, mas apenas o estritamente necessário. Espero não estragar o filme e, pelo contrário, aguçar a vontade de vê-lo nos visitantes desse Blog.
A parte final desse filme fala de uma questão muito cara a esse escriba que vos tecla. Ellen, que é rebatizada de Eli pelo psiquiatra que a acompanha em sua internação, recebe todas as orientações e estímulos, positivos e negativos, para começar a comer e participar de sua recuperação. Após um período de melhora e esperança, ocorre uma situação traumática com uma das pacientes, que Eli presencia com Luke, seu amigo apaixonado. Isso desencadeia uma completa regressão: ela para de comer e claramente deprime. Deprime para valer. Finalmente, rompe com o seu tratamento e foge para a casa de sua mãe. Dr Beckham fala para a sua madrasta e irmã: “Muitas vezes uma paciente como Eli precisa ir até o limite do fundo do poço para escolher entre a Vida e a Morte” (não foi essa a fala, mas é essa a tradução spinelliana da mesma). Aí temos uma grande, grande questão.
Freud formulou muitas teorias, algumas circulares e forçadas, destinadas a referendar o seu apego quase religioso à sua teoria da Origem Sexual de todas as neuroses. Não vamos discutir isso agora. Mas Freud formulou também constructos grandiosos que não cansamos de comprovar com o avanço da Neurociência. Um deles é a Teoria do Conflito. Quando existe um conflito, uma tensão entre a vontade de prosseguir e a vontade de recuar, aí temos um sintoma e, posteriormente, uma doença. Eli passa o tempo todo na Via Crucis do Conflito e da Dúvida. Uma parte dela quer melhorar e embarcar no fluxo da vida, outra continua deslizando gradualmente para a morte. Freud também falou dessas Pulsões, de Eros e Tânatos disputando a nossa Alma. Todo dia. Jung descreveu esse processo como Tensão dos Opostos, o que está no post anterior. A Tensão dos Opostos, levada ao extremo, vai determinar, ou não, a Transformação. Isso é o que está contido na fala do Dr Beckham. Eli vai ter que descer mais profundamente no Vale das Sombras para decidir o caminho da Vida ou da Morte. Para isso, ela vai precisar da mais misteriosa das capacidades psíquicas, que é o Perdão.
Agora teremos o spoiler: Eli vai para o rancho onde sua mãe vive com a companheira. Elas praticam uma espécie de terapia esotérica com cavalos. A mãe de Eli é uma pessoa claramente frágil e despedaçada, que se ampara numa companheira particularmente dura e pouco sintonizada com a situação gravíssima que está diante de seu nariz. Na hora de dormir, ela finalmente pode falar a partir de seu coração com a menina. Acho essa a cena mais bonita e reveladora do filme. Ela descreve mais uma vez para a filha a Depressão Pós Parto grave que a afastou de seu bebê, na época de seu nascimento. Reconheceu que isso tinha um papel na Anorexia Nervosa de Eli e pedia perdão por isso. Dr Beckham alertou-a que estava perto de perder a sua filha. Na nossa Ciência Psiquiátrica, essa é a hora de internar, passar um tubo pelo nariz da paciente para alimentá-la na marra, ou enfiar nutrientes pelas suas veias até sair da situação de risco. Se fosse minha paciente, é o que eu faria, aqui entre nós. A mãe de Eli pede seu perdão e se oferece para dar a ela uma mamadeira de leite de arroz. A menina acha a proposta estranha, mas acaba aceitando depois da mãe pronunciar a frase mais impressionante do filme: “Se a sua opção for morrer, eu vou aceitar e respeitar, mas saiba que eu te amo muito”. Talvez essa seja a forma mais radical e profunda de amor: respeitar uma decisão dessas. Acolher o Mistério onde nossa mente não consegue penetrar. Respeitar um dos direitos mais estranhos que nosso livre arbítrio nos concede, que é o direito de acolher a própria morte. Espero que isso não seja entendido como uma defesa do Suicídio. Dedico minha vida e minha prática clínica a evitar suicídios. Não concordo e não aceito, mas posso compreender a capacidade humana de consentir com a própria morte. E entendo o amor desesperado daquela mãe que pode aceitar a escolha de sua filha em atravessar, ou não, aquele Limiar.
Essa é a grande questão que foi descrita acima. Podemos usar remédios, terapias comportamentais, hipnose, meditação, internação, medicação e soros intavenosos e toda a parafernália que os quase duzentos anos de Psiquiatria e Psicologia nos legaram. Mas todo tratamento busca, de uma maneira mais ou menos profunda, o sacramento do Perdão. E perdão nasce do Entendimento e da Compreensão. Não é gratuito e, sobretudo, não pode ser concedido por decreto.Nem por técnicas terapêuticas.
Perdão é concedido a quem o pede, como a mãe de Eli pede perdão por ter sido devastada por vários colapsos depressivos e isso ter afetado a vida de sua filha no limiar da vida adulta. Eli pede perdão por não conseguir superar o medo e se deixar engolir pela doença. As duas se abraçam, num grande gesto de Perdão de Si e do Outro. Se Eli vai finalmente se entregar para a Morte ou vai iniciar a sua jornada de cura, o leitor vai ter que ver o filme para descobrir. O que eu posso dizer é que passamos, muitas vezes, por essa Jornada de Transformação em nossa vida. Passamos pela Perda, resistimos ao calor que aquece a nossa Pedra, temos que encontrar a Letra que indica o caminho de volta, mas só atravessamos a crise pelo caminho do Perdão. Um beijo a todos. Obrigado por tudo.

domingo, 8 de outubro de 2017

Até o Osso - Jornada Noturna

Jung escreveu em algum lugar de sua imensa obra que a imagem de Cristo na cruz representa de maneira única a experiência humana. A tensão de opostos, o claro e o escuro, a santidade e o pecado, a pressão da vida invisível e a nossa necessidade de sobreviver, criar, viver no mundo material. A parte vertical da Cruz representa nossa pulsão de desenvolvimento espiritual, para cima ou para baixo. A parte horizontal é nossa vida material, como a flecha do Tempo.
A Tensão dos Opostos está em todos nossos sintomas, nossos impasses e medos. Uma forma particularmente dura onde essa tensão se manifesta é na Dúvida. Uma dúvida com D maiúsculo por conta do seu efeito em quem está preso dentro dela. Sempre penso que os exorcistas gritando com as meninas possuídas por demônios estão tentando o que se tenta quando estamos atolados na Dúvida e na Treva: a sensação de duvidar de tudo e de nada poder desatolar o que está atolado. Saia dessa Dúvida, encontre o Caminho. Esse deve ser o grito dos exorcistas.
No filme que serviu de base aos últimos posts desse blog, “O Mínimo para Viver”, disponível no Netflix, a personagem principal, Ellen, padece de uma doença gravíssima, a Anorexia Nervosa e pula de internação em internação sem conseguir ganhar peso. A Anorexia Nervosa talvez seja o transtorno psiquiátrico mais letal, seja por suicídio ou por complicações relacionadas à inanição. Eu vi uma paciente com esse quadro morrer com uma esquisitíssima infecção fúngica generalizada. A moça via com ódio e depois indiferença a nossa tentativa desesperada de alimentá-la, sem sucesso. Lembrei dela ao ver a saga da personagem. Ellen sabe que precisa comer, mas não consegue se mexer. Está paralisada no meio da Grande Dúvida. Paralisada com medo da comida. Comer significa algo pior do que morrer, que é enfrentar o Medo paralisante.
O filme mostra Ellen internada numa clínica, com pacientes anoréxicos e uma obesa. A grande Dúvida se manifesta em todas as tentativas de burlar o tratamento que todas as pacientes cometem: a vizinha de quarto vomita na sacola; Ellen faz flexões na cama e corre pela escada. O Cérebro Racional entende as tentativas da equipe e do psiquiatra panaca de ajudá-la, mas algo está bloqueado na Cruz. Ela não consegue se mover na direção da melhora. Só consegue resistir e, resistindo, emagrece ainda mais. Seu psiquiatra diz que ela precisa se mover, ela simplesmente não consegue.
“ Baby, baby/ Não adianta chamar/Quando alguém está perdido/ Procurando se encontrar”. É a segunda vez que eu cito essa música de Rita Lee. Esse é um ponto em que todo mundo, todo mundo pergunta ao médico e se pergunta: como posso ajudar? As tentativas de ajuda muitas vezes pioram a situação.
Eu chamo essa fase de A Letra porque me lembra a cena de Indiana Jones andando sobre as letras que compõem o Caminho. As letras são do nome de Deus, Iaveh, e ele cai no precipício se pisar na letra errada. Esse é o caminho delicado para sair da crise, ou da situação difícil. Pisar nas letras, sem poder dar um passo em falso. Tentar apressar não funciona, tentar resolver na porrada, menos ainda. Como ajudar? Não arredando pé de estar ao lado de quem está perdido, procurando se encontrar. Essa é uma dádiva, ter alguém que não tira os olhos de você. No caso de Ellen, um interno é apaixonado por ela, Luke. Ele é o anjo que não tira os olhos dela e tenta guiá-la ao caminho de volta. Numa sessão de terapia familiar, Ellen fala: “Lamento ter deixado de ser uma pessoa e ter virado uma doença”. Essa é uma batalha de todo dia: fazer o paciente deixar de ser uma doença e voltar a ser humano. Deixar de ser um paciente e passar a ser um agente da própria cura. Para isso, ela precisa acreditar. Até Jesus quando curava dizia: “A sua fé te curou”. A fé é o salto sobre a Grande Dúvida. Pode ser uma dádiva, mas é no mais das vezes uma Prática. Uma prática e uma conquista, que vem através da experiência. Ou através da caminhada no escuro. Campbell a chamou de Jornada Noturna. É um terrível e preciso nome para essa fase do processo. Na Jornada Noturna, só se sabe que temos que prosseguir, mesmo sem saber porquê. Ou para onde. Diria o poeta: “Navegar é preciso/Viver não é preciso”. Acho que sei do que ele estava falando.
O psiquiatra fala para Ellen: “As coisas ruins vão acontecer e não há nada que você possa fazer para evitá-las. Mas você vai precisar prosseguir e construir a sua vida. Não adianta tentar controlar tudo”. Ela entende (e muita gente entende assim) que ele não está nem aí para seu sofrimento é um louco tentando levá-la para lugar algum. Isso não é uma experiência incomum para um curador, ser entendido como um louco indiferente e sádico. Já passei por isso um par de vezes, pode-se assim dizer. O curador quer curar. Precisa que o paciente acredite e deixe de ser paciente, mas agente da própria cura.
A Jornada é longa e pior, não sabemos quando acaba. Só sabemos que navegar é preciso.

sábado, 23 de setembro de 2017

Até o Osso - A Pedra

Para quem não leu o último post, uma rápida atualização: 1 - Faltam mais três posts para esse blog terminar; 2 - Estamos falando das fases de uma Transformação Psíquica, usando como base o filme do Netflix - “To the Bone” , traduzido (?) como “O Mínimo para Viver”. As fases da Transformação foram chamados por esse escriba de : 1 - A Perda; 2 - A Pedra; 3 - A Letra; 4 - O Perdão. Na verdade, gostei dos Pês que iniciam e da sonoridade das palavras. Os sons e os trocadilhos. Mas não é disso que vou falar.
A Perda inicia a jornada. Pode ser uma perda boa. Quando nasce um filho, você perde tudo o que foi a sua vida antes disso. Nada será como antes. É uma ótima perda. Existe uma porcentagem de pais tendo Depressão Pós Parto. Será que somos uma geração pilhada demais? Depois de 612 posts desse blog, podemos concluir que sim. Somos. O fato que a Perda seria melhor chamada de “Ponto de Mutação”, “Ponto de Virada”. Algo assim. No caso do filme “To the Bone”, Ellen faz um blog ou posta nas redes sociais seus desenhos e sua cultura anoréxica. Sim, existem grupos de Cultura Anoréxica, onde se partilha qual o melhor caminho para a morte por inanição. Ellen posta seus desenhos e fala sobre o que sabe, que é o Desespero e o mergulho na Dor. Vivemos uma civilização tão Apolínea em sua obsessão pelo correto, o simétrico, o design perfeito para a sua vida e o Photoshop magnífico para seu perfil no Instagram, não é? Ellen mostra o seu caminho de dor e de visceralidade, na mutilação do próprio corpo que não consegue evitar. Ellen é Dioniso despedaçado. É o espelho invertido de nossa sociedade obesa. Uma de suas fãs se suicida, e deixa o bilhete dedicando o ato a ela, sua musa. Ellen descamba na Anorexia, entra e sai de clínicas e fica pulando entre as casas dos pais separados. Ela não sabe, mas esse é o Ponto de Virada.
Uma família despedaçada, se engalfinhando na terapia familiar. Um pai ocupado demais correndo atrás de dinheiro. Ananké berrando entre as refeições (se o leitor quiser saber sobre Ananké, favor ler o post anterior). Descer ao Inferno é mais fácil que voltar. Para voltar, a Pedra. Ela vai achar o caminho ou se perder de vez.
No treinamento dos feiticeiros e xamãs mexicanos, uma das passagens da iniciação era viver ou trabalhar com o Tirano. Chefes, cônjuges, figuras parentais, tudo serve para treinar esse núcleo indestrutível que precisamos criar internamente, quando vivemos sob pressão. Os xamãs passam por provas inacreditáveis e vibram quando encontram um bom Tirano para treinar a resistência ao sofrimento. Ficariam felizes hoje com a vida no Mundo Corporativo. Temos muito tiranos por lá.
Enquanto a Pedra não se forma, estamos sempre dilacerados pelas dúvidas, os medos, os fracassos. A Internação de Ellen na Clínica Limiar tem essa característica de trabalhar, a todo custo, a Pedra. Ellen tem horror de engordar. Se comer, imagina que vai ficar gorda, e mais gorda e mais gorda até explodir. Ela tem pavor de comer. Pavor das calorias. Para tomar as decisões, para enfrentar o medo aterrorizante, ela precisa tolerar a frustração, o medo, as inevitáveis decepções que todo dia a vida joga em sua cara. Para passar o limiar, é preciso ter um núcleo forte. Resiliente. Essa é a Matéria Prima da Pedra Filosofal. Quem não cria a Pedra Interior, passa a vida escorregando em um Ego de gelatina. Por isso é importante passar pelo crivo da vida. E muitos se perdem no caminho.
Na Perda e na Pedra, Ellen sente a dureza da caminhada. O calor da prova, e vai ser provada quase todo dia. Ela e as outras meninas internadas tentam a todo custo fugir da Comida, que significa Engordar. Engordar significa crescer. Todas sabem que Ananké, a deusa da Necessidade, manda que comam, que voltem para a Vida, que enfrente o Medo terrível de perder o controle.
Terapeutas passam o dia moldando as pedras, ou vendo as pedras se fortalecerem muito, muito devagar. São muitas tentativas e muitos erros para se ganhar consistência. E consciência. Vivemos numa época em que ninguém mais quer bater o creme de leite até ele virar manteiga.
O filme mostra o papel da equipe, mostrando os nervos expostos do Real: a balança, as refeições, a necessidade de encontrar a vida onde ela se perdeu, em meio aos vômitos e os laxantes. Acho que perdemos, como sociedade, a capacidade de dar esperança para essas crianças durante a jornada. Não tem nada mais cruel nesse filme do que o retrato dos pais, egoístas, autocentrados e, acima de tudo, autocomplacentes. Talvez esse narcisismo primário que deixe os jovens à deriva.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Até o Osso

Numa das cenas iniciais do filme do Netflix “To the Bone” (“traduzido” lamentavelmente em “O Mínimo para Viver”) a madrasta de Ellen, a personagem principal desse filme novamente polêmico, mostra o corpo desnutrido e caquético de sua enteada com o celular e pergunta: você acha isso realmente bonito?
Desta vez, a polêmica do Netflix é com a Anorexia Nervosa, Em Thirteen Reasons Why, a polêmica era sobre suicídio em adolescentes. Podemos reunir todo o material do gênero e criar um grupo, sobre Relatos de um Amadurecimento Difícil. Álcool, Drogas, Bullying, Skin-Cutting, Violência e Suicídio, são muitos os Mata Burros que obstruem o caminho do jovens, que há tempos espelham nossos tempos revoltos.
A madrasta de Ellen é um personagem bem interessante, pelo estereótipo de madrasta perua e sem noção, que parece estar empurrando a enteada para a morte. Com o decorrer do filme dá para perceber que ela é a única figura parental que persiste no tratamento e enfrentamento do inferno pessoal que Ellen está passando. Ela que trás um bolo inacreditável. com hamburguer de açúcar escrito : “Coma Ellen”. Dois erros brutais. Na Anorexia, o objetivo nunca é a beleza em si, a magreza é um valor absoluto. Uma pessoa portadora desse Transtorno Alimentar não consegue enxergar como está o seu corpo, muito menos atribuir alguma beleza àquele corpo de prisioneiro do Holocausto.O que está em questão é o medo, o horror de ganhar peso. O medo carregado de terror de ver o corpo mudando e ganhando forma. Portanto, mostrar o espelho e perguntar se acha aquilo bonito é duplamente errado na Anorexia Nervosa: a pessoa não enxerga a magreza e não quer ser bela ou desejável, apenas quer evitar o ganho de peso mesmo que à custa da própria vida. Um bolo escrito (“Coma Ellen”) vai apenas criando um nojo e uma repulsa progressiva por qualquer tipo de comida. Num trecho do filme, Ellen menciona que morre de fome e sonha com comida a maior parte de tempo. Mas morre de medo do ato de comer.
Na Internet e na blogosfera existem grupos de apoio para Anorexia Nervosa. A questão é os Pro Anas, grupos que defendem e estimulam o comportamento de restrição alimentar, magreza extrema e uso de medicamentos para reduzir o peso. Ellen tem um desses blogs, o que acaba criando um problema. Uma de suas “seguidoras” morre, e seus pais enviam e publicam as fotos do que restou de seu corpo. A dificuldade de inserção de Ellen, sua tendência autodestrutiva se exacerbam depois desse evento. Não ganha mais peso e vive sendo expulsa das clínicas e dos tratamentos.
Ananké é a deusa grega da Necessidade. Não sei se alguém percebe, mas ela aparece na Bíblia bem cedo. E eu sei que Bíblia não é um tratado de Mitologia Grega. Pois logo no Genesis, quando Elohim expulsa Adão e Eva dos Jardins do Eden, ele profere as tarefas, ou os castigos: “Eva, parirás em dor”; “Adão, ganharás o pão com o suor de teu rosto”. Aí está Ananké. Ou a boa e velha Realidade. Toda a criação da vida envolve a dor. E ganhar o pão é uma tarefa bem complexa desde que deixamos o Eden. Trabalhar, se formar, produzir, consumir. Nasça, estude, cresça, consuma, morra. Essas são as leis da deusa Ananké. Elas pareciam mais simples no tempo de meus pais. Parecem mais difíceis no tempo de meus filhos. Eu sei que Ananké anda fazendo a festa nesse tempo de transição de Economia, de mundo, de Consciência. Muita gente está sentindo o descolamento e a falta de encaixe nas leis de Mercado. Sim, as leis de mercado são o lugar de Ananké.
Ellen parou a faculdade, não tem amigos e seu blog foi encerrado pela morte horrível de uma seguidora. A sua mãe é uma Bipolar em constante enfrentamento de quadros depressivos e seu pai trabalha o tempo todo e não aparece no filme. Mas é sempre um personagem das conversas. “Seu pai queria ter vindo, mas teve uma reunião importante”; “houve um imprevisto e seu pai não vai voltar”; “Você sabe, alguém tem que pagar as contas”.
A mãe destroçada e o pai obcecado pelo trabalho deixam Ellen nas mãos de Susan, moderna madrasta dos contos de fada. Susan não para de falar. Não entende nada do que está acontecendo e lembra a Ellen que ela não tem para onde ir. Ananké? Sim, ela mesma.
Ananké é a deusa da passagem estreita. Angústia e a sensação de aperto na garganta deriva de Ananké. Como escrevi no último post, nossa vida é como uma sequência de estações e transições. As transições estão cada vez mais difíceis e muitos jovens estão morrendo para fugir da passagem apertada do Real. Os terapeutas trabalham freneticamente nessas transições. Como o psiquiatra de Ellen, que vai receber as chicotadas de sua língua irônica.
Acho que o filme começa com a Perda: Ellen perde seu único contato com o mundo. Como diria Rita Lee: “Não adianta chamar/ Quando alguém está perdido, procurando se encontrar”. Ellen está perdida. O filme vai descrever a sua jornada em meio à Escuridão. Vamos falar sobre isso nos próximos e derradeiros posts.



sábado, 9 de setembro de 2017

Se o Grão Não Morre

Esse Blog chegou na semana passada ao post de número 610. Como já anunciado em Julho deste ano, ele vai ser encerrado agora em Outubro, e o autor dessas mal tecladas linhas vai se dedicar a outros projetos. Vamos encerrá-lo então com 615 posts, número que soma 12, o mesmo de seguidores do Blog. Apesar das manifestações de desespero e inconformismo de ao menos 2 dos seguidores, vamos dar cabo desse projeto. O projeto de dar cabo do Blog. Bem, vocês me entenderam. Vamos ao post de hoje. O 611 :
Um amigo foi a um churrasco onde dois “inteligentinhos” (termo cunhado/explorado por Luiz Felipe Pondé) diziam do futuro do planeta ser de um Paraíso Terrestre onde todos serão Socialistas e Vegetarianos. Uma visão anterior ao Neolítico, onde os proto humanos eram caçadores e coletores e não havia hierarquia, chefias ou curtidas em Facebooks pré históricos. A carne era um artigo de luxo e aparecia muito raramente em meio à exploração de frutas, raízes e grãos. De fato, todos eram “socialistas” antes do termo ser imaginado, e a Raça Humana sobreviveu muito mais pela sua capacidade de colaboração do que de genes egoístas competindo entre si. Com a Revolução do Neolítico, a terra passou a ser cultivada, nasceu a Agricultura, e, com ela, o trabalho, os papéis sociais e as hierarquias foram se complexificando. Homens passaram a explorar outros homens e os perdedores da disputa eram feitos de escravos, enquanto que uma casta de Homens Deus exigiam e faziam sacrifícios de jovens e de animais para que a terra continuasse frutificando em boas colheitas (hoje em dia eles guardam milhões em apartamentos, mas essa é outra história). O sonho igualitário acabou, com a estratificação de funções e responsabilidades. Acabou o paraíso sem hierarquia, que não existe nem nos mosteiros budistas, mas resiste na cabeça de marxistas e professores de Sociologia. As crianças não passam fome em Cuba, dizem, mas se quiserem se desenvolver e pertencer ao mundo, vão ter que subir no bote e atravessar o mar quando crescerem. Mas não é esse o assunto do post.
Junto com a Agricultura, veio a Mitologia fundada em deuses agrícolas. Não é à toa que Jesus é morto e desmembrado simbolicamente, desce às profundezas da terra e ressuscita no Terceiro Dia. A Morte e a Ressurreição são as forças intrínsecas da Vida, em seu Eterno Ciclo de Transformação. Sempre que o homem tenta dominar essa força da vida, grandes tragédias ocorrem, como podemos ver nos noticiários. O fato é que a Morte como condição geradora da Vida chegou à Mitologia através do salto tecnológico que foi dominar o Grão, de onde surgiam novos frutos e alimento. A vida se dá na morte do Grão.
Talvez dessa mudança cultural do Neolítico e o domínio de tecnologias ainda mais avançadas, da Fala e da Escrita, que surgiu o que Jung chamou de Arquétipos: o Céu, a Terra, o Dia, a Noite, a Mãe, o Pai, o Herói, a Criança Divina. Tudo o que o homem via e em seu assombro pintava nas paredes foi fundando uma Mitologia, em que as forças inerentes à Vida e à Morte foram virando Deuses que protegiam ou se enfureciam com os humanos. As trapaças da sorte e do azar passaram a ser regidos por deuses de formato e afetos muito parecidos com os dramas de nosso desenvolvimento. Os Mitos hoje viraram as celebridades e suas histórias glamurosas e tragicamente humanas. Marte e Afrodite se deitam nas páginas dos tablóides ou nos sites de fofocas.
A vida humana nasce na Primavera, onde o grão finalmente floresce ou se manifesta. Os primeiros setênios de nossa vida são dedicados a formar a nossa estrutura como planta psíquica. Erros de formação e feridas nesta fase vão nos acompanhar em toda a vida como virtude ou doença. A fase Heróica ou de maturidade, que coincide com os anos de adulto jovem até a meia idade, seria o Verão: chuva, reprodução e calor interno e externo. Na meia idade e maturescência seria o Outono, onde se perde o vigor e o calor da juventude, mas, se tudo der certo, vem o ganho da serenidade e das temperaturas amenas. Em alguns casos, a Sabedoria que pode conduzir os jovens e proteger as crianças. O Inverno vem com a perda de algumas funções e do calor de outras fases. Jung dizia que às perdas do Corpo corresponde uma grande expansão energética da Psique. Como cantou Caetano, o homem velho deixa a vida e morte para trás. O Inverno é um período de interiorização e contemplação da vida e do mundo. Ou de dor e infortúnio, como vemos em muita gente.
Um bom trabalho terapêutico é seguir e traduzir para as pessoas as diversas fases da vida, onde, como o Grão, morremos e ressuscitamos muitas vezes. Nos próximos quatro posts vou falar sobre essas fases, que se repetem em nossas vidas e estações: A Perda, a Pedra, a Letra e o Perdão. Vou usar um filme que está no Netflix, que muito curti: “To the Bone” ou “O Mínimo Para Viver” como base para as diferentes fases de nossa vida e do processo de Transformação. Isso pode dar origem a outros Blogs e outras falas no Futuro.

domingo, 3 de setembro de 2017

As Pedras nas Mãos

Um caso que esteve e está nos jornais de hoje e da semana é situação repetitiva de homens sendo presos em transporte público após ataques sexuais a mulheres. A situação causou escândalo quando os agressores foram soltos pelos juízes sob alegação de que era um Ato Libidinoso, não um Estupro. Os juízes foram execrados e espinafrados pela mídia, que sugeriu que a brandura da deliberação se deu porque o objeto da agressão sexual não era irmã ou filha dos juízes. Não sei sobre o caso do Rio de Janeiro, mas vou colocar a minha colher no caso do rapaz de São Paulo, Diego de Novais, preso novamente neste final de semana por repetir o mesmo ato, na mesma região (entre a Avenida Paulista e Brigadeiro), tendo sido dominado pelos passageiros e levado para a Delegacia e para as manchetes de jornal.
A moderna Neurociência foi inaugurada em meados do Século Dezenove, quando um operário chamado Phineas Gage sofreu um acidente de trabalho, na construção de uma ferrovia em Vermont, EUA. Uma carga de explosivo fez entrar uma barra de ferro abaixo de sua bochecha, destruindo sua órbita ocular e saindo pelo Crânio. A barra de ferro atravessou massa encefálica da região Frontal de seu Cérebro. Para assombro dos médicos e colegas, Phineas Gage sobreviveu ao acidente praticamente sem sequelas e pode, depois do período de convalescença, voltar ao trabalho. Mas nunca mais foi o mesmo: passou a ser desatento, desrespeitoso às ordens e à chefia. Passou a beber demais e a perder empregos. Não obedecia mais comandos nem aceitava conselhos. Terminou a vida como atração de circo, o homem que sobreviveu à uma barra de ferro na cabeça. Seu caso elucidou o papel do Córtex Orbitofrontal no controle de impulsos e organização de cognição e de comportamento. O seu Crânio e a barra de ferro são hoje peças de museu.
Diego de Novais é nosso Phineas Gage trágico e tupiniquim. Mais de um século depois ele sofre com a mesma ausência de tratamento e recursos que Phineas sofreu há um século e meio atrás. A sua tragédia não se dá por falta de conhecimento científico, mas pela conjunção de uma família pobre e com extrema privação social e cultural e a dificuldade de estabelecer e manter esses casos em tratamento. Diego sofreu um acidente com história de TBI (Traumatic Brain Injury), lesão cerebral por trauma. Ficou quinze dias internado no Hospital das Clínicas, passou por duas cirurgias e saiu praticamente ileso, como Phineas Gage. Como Phineas, nunca mais foi o mesmo: não parou em emprego, tornou-se isolado socialmente e quieto. Três anos depois do acidente, começou a ter o comportamento sexual abusivo/impulsivo. Já teve muitas passagens e BOs por repetir o ato impulsivo de se masturbar se esfregando em mulheres dentro de coletivos. A característica orgânica de seu comportamento se mostra na repetição pueril do ato, sem controle da ação e previsão de consequências, mesmo com a repercussão que teve nessa semana. Ouvi uma entrevista de seu pai na rádio e fiquei tocado por aquele senhor, evidentemente muito simples e semianalfabeto, dizendo que esperava que seu filho recebesse tratamento para poder entender o que tinha feito e pedir desculpas às mulheres atacadas. Lamento dizer que isso não vai acontecer. O que o tratamento pode fazer é reduzir a sua impulsividade e ensinar a modular os impulsos, mas, depois de onze anos do acidente, o rapaz já perdeu muito de sua reserva cognitiva. Ele não vai entender a complexidade da situação ou o sentimento das vítimas.
O problema se deu pela conjunção do despreparo e dificuldade de entendimento de sua família para a busca de ajuda e a falta de recursos de nossa Saúde Pública. Some-se o fato que Diego tem um quadro clínico que está na franja, na exata interface entre a Psiquiatria e a Neurologia. O seu quadro é psiquiátrico, de perda de capacidade cognitiva e transtorno de controle de impulsos e comportamento sexual impróprio, mas a lesão que provocou o quadro foi neurológica. O quadro pode ficar pinguepongueando entre as especialidades, sem alguém que o assuma. Quem deve assumir o caso, na minha opinião, é o Psiquiatra, que deve estar aparelhado para entender e medicar o rapaz. Isso acontece, em nossa Saúde Pública? Melhor não perguntar.
O caso todo mobiliza uma imensa compaixão: compaixão até pelo juiz, que opera no meio de nossa desgraceira social e não pode encarcerar alguém que se masturba no ônibus, pois não temos mais onde alocar gente que comete crimes muito piores. Compaixão pela família e pelo rapaz, um excelente candidato a ser espancado e morto na rua ou na cadeia, agora que sua foto está em todos os jornais. Compaixão até pela Imprensa, tomada por justa fúria feminista diante das agressões sexuais que mulheres sofrem em coletivos diariamente, mas pinta como monstro um deficiente.
Vivemos um período de notícias e fatos transmitidos em tempo real que subtraem nossa capacidade de reflexão e entendimento. A falta de entendimento é a origem dessa e de outras tragédias de nossa Saúde Pública.

domingo, 27 de agosto de 2017

Millennials

O paleontólogo Jay Gould descreve a evolução das espécies em períodos longos de estabilidade, até a eclosão de uma catástrofe, quando muitas espécies desaparecem, mas há um salto de criação na natureza, com a formação de novas espécies que evoluem muito mais rápido do que se esperaria por mecanismos darwinianos. Isso abole a evolução cega e aleatória proposta por Darwin: existe uma inteligência evolutiva, um vetor invisível no processo. Traduzido em termos atuais, quem se reinventa, evolui e prospera, quem estaciona, perece. A tal história do ideograma chinês para Crise, onde perigo e oportunidades estão no mesmo símbolo, se aplica. A transição é o momento de maior perigo. Uns crescem, outros sucumbem. É um período de perda e de oportunidade.
Muito tem se falado sobre os milennials, a geração nascida no entorno da virada do século. Como eles são diferentes e desadaptados ao nosso Hipercapitalismo. Respeitam pouco a autoridade, não tem paciência com os processos e querem resultados e gratificação rápida. Pelo ângulo de visão dos tiozinhos, como eu, são mimados pela geração de pais que aderiram à infantolatria, a adoração das crianças e da infância como território mágico de prazer e ausência de frustração. Criamos então uma geração de mimados e idólatras, que se acham pelo simples fato de estarem no mundo? Tudo deve ser resolvido em cliques e recorta e cola, sem demandar esforço ou reflexão? O Princípio do Prazer se sobrepõe ao Princípio de Realidade, ou a Realidade, como entendemos, deixa de ter o primado da Existência?
E se essa geração vem para fundar outros jeitos de estar no mundo? A Era Digital criou uma crise gigantesca no mundo. Nada ficou intocado. Profissões deixam de existir, nichos de mercado desaparecem, os velhos sistemas de controle se tornam mais intensos e fascistóides. Vivemos a ditadura da superfície, perdendo o que nos torna humanos, que é a capacidade de reflexão?
Os milennials não se adaptam a empresas tradicionais, com horários fixos e chefes engravatados. Buscam os processos mais rápidos e fluidos, as microintervenções e a criação de grupos operativos horizontalizados. É a decadência da Imago Paterna, ou a glorificação definitiva de um único Pai, como um profeta dos novos tempos. No filme Steve Jobs, esse paradoxo é exposto em DRs intermináveis sobre essa metáfora paterna. Steve Jobs está lançando o iMac, e é tratado como um deus e profeta pela sua legião de fãs, mas é confrontado nos bastidores por sua filha, Lisa, para quem foi um pai ausente e autoritário. Essa dualidade é muito bem exposta, entre o profeta da Era Digital e o Pai odiado por filha e comandados. Um engenheiro chave de sua revolução digital fala isso com todas as letras: sempre te odiei, a o que Steve responde que isso é uma pena, pois sempre gostei muito de você. O Millennial ama o profeta e odeia o Pai que lhe força a crescer.
Se a nossa vida é uma jornada, onde períodos de estabilidade são seguidos por violentas crises de mudança e transformação, os terapeutas tem sido chamados cada vez mais para ajudar esses millennials a fazer a sua transição. Alguns amigos e colegas tem pedido a nossa ajuda para olhar por seus filhotes a fazer essa caminhada entre uma vida protegida da infância e da adolescência para um mercado selvagem na vida adulta. O meu mestrado foi em Psiquiatria da Adolescência, o que é segredo, porque pessoalmente acho um pé no saco as mães chorosas e os pais omissos dos adolescentes disfuncionais. Sempre atendi mais adultos e idosos. O fato é que acabei me ferrando, vinte anos depois do Mestrado, pois a Adolescência se deslocou para o período entre os vinte e os trinta anos da galera. Eles são os atuais adolescentes, que exprimem em carne viva as dores do mundo. Eu sobrevivo ao meu “castigo” tentando entender a sua mensagem, o que eles estão percebendo nesses novos e acelerados tempos que as velhas fórmulas e os velhos entendimentos arquetípicos não dão mais conta. Ajudo os filhos dos outros e rezo para que ajudem meus filhos nessa travessia cheia de perigos, mas que é mais difícil, ou impossível, para quem se acovarda ou foge à luta.
Os millennials podem trazer um mundo mais colaborativo, menos consumista, mais ligado no tempo do Hiper Presente e menos alienado de valores e propósito. Em vez de censurar e torcer o nariz, é melhor acender os ouvidos e os olhos para o que está vindo. Porque estamos numa crise evolutiva daquelas. As pessoas entre dezoito e vinte e cinco anos são um grupo de risco nessa crise. A Psiquiatria e os economistas estão demorando a enxergar essa situação. Pais, terapeutas, lideres, empresas, devem parar de chorar as pitangas e tentar ajudar essa turma a nadar até encontrar terra firme. Ou meio firme.