domingo, 8 de outubro de 2017

Até o Osso - Jornada Noturna

Jung escreveu em algum lugar de sua imensa obra que a imagem de Cristo na cruz representa de maneira única a experiência humana. A tensão de opostos, o claro e o escuro, a santidade e o pecado, a pressão da vida invisível e a nossa necessidade de sobreviver, criar, viver no mundo material. A parte vertical da Cruz representa nossa pulsão de desenvolvimento espiritual, para cima ou para baixo. A parte horizontal é nossa vida material, como a flecha do Tempo.
A Tensão dos Opostos está em todos nossos sintomas, nossos impasses e medos. Uma forma particularmente dura onde essa tensão se manifesta é na Dúvida. Uma dúvida com D maiúsculo por conta do seu efeito em quem está preso dentro dela. Sempre penso que os exorcistas gritando com as meninas possuídas por demônios estão tentando o que se tenta quando estamos atolados na Dúvida e na Treva: a sensação de duvidar de tudo e de nada poder desatolar o que está atolado. Saia dessa Dúvida, encontre o Caminho. Esse deve ser o grito dos exorcistas.
No filme que serviu de base aos últimos posts desse blog, “O Mínimo para Viver”, disponível no Netflix, a personagem principal, Ellen, padece de uma doença gravíssima, a Anorexia Nervosa e pula de internação em internação sem conseguir ganhar peso. A Anorexia Nervosa talvez seja o transtorno psiquiátrico mais letal, seja por suicídio ou por complicações relacionadas à inanição. Eu vi uma paciente com esse quadro morrer com uma esquisitíssima infecção fúngica generalizada. A moça via com ódio e depois indiferença a nossa tentativa desesperada de alimentá-la, sem sucesso. Lembrei dela ao ver a saga da personagem. Ellen sabe que precisa comer, mas não consegue se mexer. Está paralisada no meio da Grande Dúvida. Paralisada com medo da comida. Comer significa algo pior do que morrer, que é enfrentar o Medo paralisante.
O filme mostra Ellen internada numa clínica, com pacientes anoréxicos e uma obesa. A grande Dúvida se manifesta em todas as tentativas de burlar o tratamento que todas as pacientes cometem: a vizinha de quarto vomita na sacola; Ellen faz flexões na cama e corre pela escada. O Cérebro Racional entende as tentativas da equipe e do psiquiatra panaca de ajudá-la, mas algo está bloqueado na Cruz. Ela não consegue se mover na direção da melhora. Só consegue resistir e, resistindo, emagrece ainda mais. Seu psiquiatra diz que ela precisa se mover, ela simplesmente não consegue.
“ Baby, baby/ Não adianta chamar/Quando alguém está perdido/ Procurando se encontrar”. É a segunda vez que eu cito essa música de Rita Lee. Esse é um ponto em que todo mundo, todo mundo pergunta ao médico e se pergunta: como posso ajudar? As tentativas de ajuda muitas vezes pioram a situação.
Eu chamo essa fase de A Letra porque me lembra a cena de Indiana Jones andando sobre as letras que compõem o Caminho. As letras são do nome de Deus, Iaveh, e ele cai no precipício se pisar na letra errada. Esse é o caminho delicado para sair da crise, ou da situação difícil. Pisar nas letras, sem poder dar um passo em falso. Tentar apressar não funciona, tentar resolver na porrada, menos ainda. Como ajudar? Não arredando pé de estar ao lado de quem está perdido, procurando se encontrar. Essa é uma dádiva, ter alguém que não tira os olhos de você. No caso de Ellen, um interno é apaixonado por ela, Luke. Ele é o anjo que não tira os olhos dela e tenta guiá-la ao caminho de volta. Numa sessão de terapia familiar, Ellen fala: “Lamento ter deixado de ser uma pessoa e ter virado uma doença”. Essa é uma batalha de todo dia: fazer o paciente deixar de ser uma doença e voltar a ser humano. Deixar de ser um paciente e passar a ser um agente da própria cura. Para isso, ela precisa acreditar. Até Jesus quando curava dizia: “A sua fé te curou”. A fé é o salto sobre a Grande Dúvida. Pode ser uma dádiva, mas é no mais das vezes uma Prática. Uma prática e uma conquista, que vem através da experiência. Ou através da caminhada no escuro. Campbell a chamou de Jornada Noturna. É um terrível e preciso nome para essa fase do processo. Na Jornada Noturna, só se sabe que temos que prosseguir, mesmo sem saber porquê. Ou para onde. Diria o poeta: “Navegar é preciso/Viver não é preciso”. Acho que sei do que ele estava falando.
O psiquiatra fala para Ellen: “As coisas ruins vão acontecer e não há nada que você possa fazer para evitá-las. Mas você vai precisar prosseguir e construir a sua vida. Não adianta tentar controlar tudo”. Ela entende (e muita gente entende assim) que ele não está nem aí para seu sofrimento é um louco tentando levá-la para lugar algum. Isso não é uma experiência incomum para um curador, ser entendido como um louco indiferente e sádico. Já passei por isso um par de vezes, pode-se assim dizer. O curador quer curar. Precisa que o paciente acredite e deixe de ser paciente, mas agente da própria cura.
A Jornada é longa e pior, não sabemos quando acaba. Só sabemos que navegar é preciso.

2 comentários:

  1. Muito lindo e tocante seu texto, Spinelli!!
    Ótimo!
    Lucia Andrade

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  2. puxa, Dr., sendo repetitivo, esse fim de blog está impagável..que presente...falando em Indiana Jones, a última prova é da fé, né...se não me engano, ele precisa colocar o pé no precipício vazio..e então a ponte se faz...e se não me engano tb, ele só acredita pois o pai o incentiva (será o papel do curador?!)

    abs,

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