quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Até o Osso - O Perdão

O filme “To the Bone” (“O Mínimo Para Viver”), produção original do Netflix, serviu de base para esses quatro derradeiros posts, que vão encerrar esse blog. Quem não conseguiu vê-lo saiba que teremos alguns spoilers nesse texto, mas apenas o estritamente necessário. Espero não estragar o filme e, pelo contrário, aguçar a vontade de vê-lo nos visitantes desse Blog.
A parte final desse filme fala de uma questão muito cara a esse escriba que vos tecla. Ellen, que é rebatizada de Eli pelo psiquiatra que a acompanha em sua internação, recebe todas as orientações e estímulos, positivos e negativos, para começar a comer e participar de sua recuperação. Após um período de melhora e esperança, ocorre uma situação traumática com uma das pacientes, que Eli presencia com Luke, seu amigo apaixonado. Isso desencadeia uma completa regressão: ela para de comer e claramente deprime. Deprime para valer. Finalmente, rompe com o seu tratamento e foge para a casa de sua mãe. Dr Beckham fala para a sua madrasta e irmã: “Muitas vezes uma paciente como Eli precisa ir até o limite do fundo do poço para escolher entre a Vida e a Morte” (não foi essa a fala, mas é essa a tradução spinelliana da mesma). Aí temos uma grande, grande questão.
Freud formulou muitas teorias, algumas circulares e forçadas, destinadas a referendar o seu apego quase religioso à sua teoria da Origem Sexual de todas as neuroses. Não vamos discutir isso agora. Mas Freud formulou também constructos grandiosos que não cansamos de comprovar com o avanço da Neurociência. Um deles é a Teoria do Conflito. Quando existe um conflito, uma tensão entre a vontade de prosseguir e a vontade de recuar, aí temos um sintoma e, posteriormente, uma doença. Eli passa o tempo todo na Via Crucis do Conflito e da Dúvida. Uma parte dela quer melhorar e embarcar no fluxo da vida, outra continua deslizando gradualmente para a morte. Freud também falou dessas Pulsões, de Eros e Tânatos disputando a nossa Alma. Todo dia. Jung descreveu esse processo como Tensão dos Opostos, o que está no post anterior. A Tensão dos Opostos, levada ao extremo, vai determinar, ou não, a Transformação. Isso é o que está contido na fala do Dr Beckham. Eli vai ter que descer mais profundamente no Vale das Sombras para decidir o caminho da Vida ou da Morte. Para isso, ela vai precisar da mais misteriosa das capacidades psíquicas, que é o Perdão.
Agora teremos o spoiler: Eli vai para o rancho onde sua mãe vive com a companheira. Elas praticam uma espécie de terapia esotérica com cavalos. A mãe de Eli é uma pessoa claramente frágil e despedaçada, que se ampara numa companheira particularmente dura e pouco sintonizada com a situação gravíssima que está diante de seu nariz. Na hora de dormir, ela finalmente pode falar a partir de seu coração com a menina. Acho essa a cena mais bonita e reveladora do filme. Ela descreve mais uma vez para a filha a Depressão Pós Parto grave que a afastou de seu bebê, na época de seu nascimento. Reconheceu que isso tinha um papel na Anorexia Nervosa de Eli e pedia perdão por isso. Dr Beckham alertou-a que estava perto de perder a sua filha. Na nossa Ciência Psiquiátrica, essa é a hora de internar, passar um tubo pelo nariz da paciente para alimentá-la na marra, ou enfiar nutrientes pelas suas veias até sair da situação de risco. Se fosse minha paciente, é o que eu faria, aqui entre nós. A mãe de Eli pede seu perdão e se oferece para dar a ela uma mamadeira de leite de arroz. A menina acha a proposta estranha, mas acaba aceitando depois da mãe pronunciar a frase mais impressionante do filme: “Se a sua opção for morrer, eu vou aceitar e respeitar, mas saiba que eu te amo muito”. Talvez essa seja a forma mais radical e profunda de amor: respeitar uma decisão dessas. Acolher o Mistério onde nossa mente não consegue penetrar. Respeitar um dos direitos mais estranhos que nosso livre arbítrio nos concede, que é o direito de acolher a própria morte. Espero que isso não seja entendido como uma defesa do Suicídio. Dedico minha vida e minha prática clínica a evitar suicídios. Não concordo e não aceito, mas posso compreender a capacidade humana de consentir com a própria morte. E entendo o amor desesperado daquela mãe que pode aceitar a escolha de sua filha em atravessar, ou não, aquele Limiar.
Essa é a grande questão que foi descrita acima. Podemos usar remédios, terapias comportamentais, hipnose, meditação, internação, medicação e soros intavenosos e toda a parafernália que os quase duzentos anos de Psiquiatria e Psicologia nos legaram. Mas todo tratamento busca, de uma maneira mais ou menos profunda, o sacramento do Perdão. E perdão nasce do Entendimento e da Compreensão. Não é gratuito e, sobretudo, não pode ser concedido por decreto.Nem por técnicas terapêuticas.
Perdão é concedido a quem o pede, como a mãe de Eli pede perdão por ter sido devastada por vários colapsos depressivos e isso ter afetado a vida de sua filha no limiar da vida adulta. Eli pede perdão por não conseguir superar o medo e se deixar engolir pela doença. As duas se abraçam, num grande gesto de Perdão de Si e do Outro. Se Eli vai finalmente se entregar para a Morte ou vai iniciar a sua jornada de cura, o leitor vai ter que ver o filme para descobrir. O que eu posso dizer é que passamos, muitas vezes, por essa Jornada de Transformação em nossa vida. Passamos pela Perda, resistimos ao calor que aquece a nossa Pedra, temos que encontrar a Letra que indica o caminho de volta, mas só atravessamos a crise pelo caminho do Perdão. Um beijo a todos. Obrigado por tudo.

5 comentários:

  1. No dia em que cheguei à conclusão que as pessoas são aquilo que conseguem ser e não o que querem ser, incluindo nós mesmos, claro, a vida ficou mais fácil. Só que a razão não dá conta de tudo, infelizmente ou ainda bem. Obrigada.

    ResponderExcluir
  2. Interessante você terminar falando do Perdão!
    Esta semana, o Papa na sua homilia, também fala do Perdão (textos diferentes, mas sentido muito semelhante). Muito Interessante esta sincronia!
    Muito obrigada, Spinelli.
    bjos,
    Lucia Andrade

    ResponderExcluir
  3. muito bom, Dr. Obrigado por todos esses textos...certamente, serão sorvidos ainda muitas outras vezes..abs

    ResponderExcluir
  4. Querido Spinelli,
    Parabéns por essa empreitada tão bem sucedida e muito obrigada pelos seus textos, que seguirão como tônico e inspiração nas segundas- feiras da vida.
    Beijos,
    Valdelis

    ResponderExcluir
  5. São aulas aqui. Eu leio e releio. Não me expressei antes mas sinto que tenha parado de escrever. Mantenha disponível, por favor... transforme em livro talvez? Aqui é como te escutasse mais porque nas sessões eu acabo falando muito apesar de gostar mais ainda de te ouvir. Obrigada, obrigada, obrigada!

    ResponderExcluir