sábado, 31 de dezembro de 2016

O Ano Que Vai Nascer

Mark Epstein é psiquiatra e psicanalista e tem uma série de livros que fazem uma aproximação dessas duas matérias com o Budismo. Ele não chega a ser um monge, eu imagino, mas faz uma reflexão profunda sobre os pontos em que esses braços de conhecimento se encontram e se desencontram. Gosto muito de seus livros. Quem acompanha esse blog tem ideia do meu esforço de aproximar essas práticas nos posts e vida.
No seu último publicado no Brasil, “Aberto ao Desejo” , Mark, que é um ótimo contador de “causos” relata uma observação de um Lama que ministrava um workshop nos Estados Unidos. O carequinha tibetano observou que ficava impressionado como as crianças eram amadas e valorizadas na América. Em sua terra as crianças tomavam suas palmadas e eram deixadas com a sua frustração e que se virassem chorando pelos cantos. As crianças americanas tinham atenção, diálogo, mas, estranhamente, quando cresciam passavam a enfrentar ou ter muitos problemas com seus pais. Mark ficou com uma coceira danada para responder mas é um homem muito discreto e preferiu conversar com o monge depois da apresentação. Avisou sua assessoria que, se ninguém se dispusesse, ele poderia tentar explicar aquele aparente paradoxo. A explicação foi encantadora: ao contrário dos tibetanos, os americanos não acreditam que os filhos tem um potencial que os pais podem ou não ajudar a desenvolver. Muitos acreditam que os filhos são um reflexo dos pais, que devem orientá-los, fazer um investimento maciço para que tenham a melhor formação, as melhores lembranças, a infância mais feliz (enquanto digito isso, lembro da personagem Alegria, do “Divertidamente”). Tudo isso sobrecarrega a relação com muitas cobranças, e as cobranças são geradas pelas expectativas. Autocobranças e cobranças do Outro, pode-se dizer. Talvez esse seja o mapa do nosso inferno ocidental: as expectativas. E as cobranças que se seguem. Não é incomum que isso vire uma cascata de mágoas, atritos e desencontros entre casais, famílias e grupos de amigos. Deus está no que É, o Diabo prefere estacionar no que Deveria Ser. O lama entendeu perfeitamente como esse ciclo gera sofrimento e engorda as contas bancárias de terapeutas e advogados, não necessariamente nessa ordem. E nós, entendemos?
Os gregos formularam um conceito muito caro aos junguianos, a Enteléquia. O nome é esquisito e o conceito não tão fácil de entender. Quem entra no meu WhatsApp vê uma foto minha com minha cachorrinha quando era uma bebezinha. O que me impressiona na foto, que eu perdi as outras daquele dia, é que o olhar dela continua exatamente o mesmo. Hoje, três anos depois, ela não é tão sapeca e agitada, mas o seu jeito claro e franco de olhar continua igual. Isso é Enteléquia: a gente vem ao mundo com uma estrutura psíquica que vai se manter ou expandir se tudo der certo. Tem gente que realiza seu potencial vivendo em condições muito adversas, tem gente que parece que veio ao mundo a passeio, mas esse caminho de desenvolvimento não pode ser parido pelos pais. Todo dia recebo no consultório pais e filhos às turras porque imaginavam que o caminho deveria ter sido diferente. De uma vez por todas: o caminho é de responsabilidade do caminhante. Os pais fornecem bússola (quebrada ou não), calçado, um mapa aproximado e por preencher e muita torcida. O resto, é da responsabilidade do caminhante.
No final de ano ficamos torturados pelas mesmas artimanhas do que Deveria Ser. No próximo ano vou dar uma guinada na carreira, vou começar regime, vou parar de fumar ou comer glúten. Como com os filhos e projetos, talvez seja uma boa hora de escutar 2017 em vez de vomitar nele tudo que queremos que ele seja. Não deve ser um ano tão horrível quanto esse que se encerra, mas pode ser um ano de reconstrução, de busca e de realização de nossos micro potenciais. O que é certo é que não devemos torturar o Ano Novo com expectativas e check lists de metas que ele, exaustivamente, tenha que cumprir desde a sua largada.
Deixe 2017 ser 2017. Apenas isso.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Ritmo da Cura

Uma das imagens que ficaram na minha cabeça no Congresso da Associação Brasileira de Sono foi uma Polissonografia de um paciente com um quadro ansioso grave, em que o Sono de Ondas Lentas foi quase completamente substituído por uma frequência muito alta. Traduzindo para o Português, o paciente dormia, mas seu Cérebro funcionava como acordado. Isso explica aquelas queixas das pessoas que aparentemente dormem a noite inteira e acordam dizendo que não dormiram absolutamente nada. Para seu Cérebro, foi como se estivessem acordadas quase o tempo todo.
A Psiquiatria acaba levando a fama de estar a serviço da Indústria Farmacêutica, enfiando remédios com ação no Sistema Nervoso Central em todo mundo que escorregar perto dos consultórios. As comadres hoje não trocam mais receitas de bolo, nem de perus de Natal, mas qual o melhor ansiolítico ou qual antidepressivo engorda ou não. Qual o psiquiatra é mais bacana e qual consultório é decorado pelos caras da moda. As salas de chat e os grupos de Facebook relatam as experiências com novos medicamentos. Viver sem um antidepressivo está completamente out. Como eu falei acima, os psiquiatras e a Indústria levam a fama, e fazem jus a ela até certo ponto. Mas estamos em um mundo em que Donald Trump é presidente dos Estados Unidos, todos os referendos pedidos democraticamente às populações deram resultados bizarros: a Inglaterra deixa a Comunidade Europeia, a Colômbia rejeita o acordo de paz com as Farc, premiês caem após as consultas. No Brasil, famílias de engalfinham nos grupos de WhatsApp por conta de Dilmas e Temers. Como já foi falado muitas vezes nesse blog, o mundo está fora de frequência, deixando todo mundo um pouco louco. A Civilização está inflamada e acelerada, e a Psiquiatria corre atrás do prejuízo. As pessoas estão cansadas, angustiadas, fora de prumo.
Aqui no Brasil a medida da insanidade coletiva foi representada pela morte estúpida de 71 pessoas no auge de suas vidas pela ação estúpida e irresponsável de um piloto e dono de empresa de aviões comerciais, a LaMia. Chamar a empresa de A Minha não era mesmo bom sinal. O avião espatifado na serra, há poucos quilômetros de Medelin foi um tapa na cara nossa, que vivemos brigando com o tempo e os relógios. Fazer rápido é melhor do que fazer bem. Os corpos espalhados na serra são a bofetada, pois todo mundo sentiu que poderia estar naquele avião.
A Medicina está timidamente estudando a Cronobiologia, para tentar o que as Medicinas orientais sabem há milênios, que é a necessidade de reencontrar os ritmos e as frequências da vida e da cura. Uma pista muito clara estava naquela polissonografia e seu ritmo frenético: a frequência perdida é das ondas alfa, as ondas lentas. Não é à toa que assistimos ao boom de cursos de Meditação, aulas de Yoga e Relaxamento. Tudo é uma busca coletiva pelo ritmo mais lento e harmônico, mais próximo da Natureza ou da vibração e ritmo intrínseco da vida. Um estado de Atenção Plena e Relaxada, que deixa o Cérebro com ondas mais lentas e o Coração com frequências mais simétricas e equilibradas. Se isso virar uma prática e uma pesquisa profunda, garanto que o consumo de psicotrópicos vai cair muito. Vejo todo dia nos meus consultórios que o trabalho com os ritmos internos e externos economiza muita medicação e encurta tratamentos. Buscar um ritmo diferente muda todo o jogo e salva vidas. Estamos caminhando para uma Medicina dos Ritmos e da Vida. Espero.

domingo, 18 de dezembro de 2016

O Espelho de Eco

Muito se fala sobre Narciso. A psicanálise tornou-o uma figura central, gerando o termo Narcisismo. O meu babado mesmo é com Eco e com Nêmesis nessa história. Sim, eu sei. Parece um início meio maluco de post. Mas vamos contar a história.
A mitologia conta a história dessa Ninfa chamada Eco. Era dessas mocinhas que falam o tempo todo e não toleram o ruído do próprio silêncio. Onde estava Eco, a conversa não parava. Sobretudo o barulho de sua voz. Zeus, que não era bobo nem nada, começou a aproximar a ninfa de sua esposa, Hera, para distraí-la enquanto dava suas escapadas. Hera descobriu, como sempre, o ardil de seu marido. E castigou a pobre Ninfa, tirando-lhe a capacidade de iniciar a conversa. Eco só poderia responder se alguém lhe dirigisse a palavra. Estava inaugurada a Psicanálise, e não é à toa que o primeiro paciente era um Narciso.
Eco teve que engolir esse desaforo, pois fora a mais poderosa das deusas que lhe deu essa condição. Não sabia que seu infortúnio estava apenas começando. Foi passeando pelos bosques da Mitologia que Eco se apaixonou perdidamente por um rapaz mais belo que os deuses. Sim, ele mesmo, Narciso. Eco fez o impossível para atrair a atenção dele, mas não conseguia usar a sua voz. Os seus gritos ficavam abafados, como em nossos piores pesadelos. Narciso era meio pop star e não dava atenção para os apelos das fãs. Eco feneceu em sua tristeza, até morrer. As ninfas foram a Nêmesis, a deusa temida por restabelecer as medidas e o equilíbrio das coisas. Nêmesis pronunciou que Narciso iria também viver um amor impossível. Sabemos qual foi. Narciso apaixonou-se pela sua imagem refletida no lago, e ficou tão absorvido por esse amor que também definhou e morreu. O final do mito é belíssimo, como é a poética dos mitos: Narciso tornou-se uma flor muito bela e Eco passou a morar nas cavernas, ecoando as vozes das pessoas.
Muito se fala sobre a nossa época de excessos e de narcisismos enlouquecidos, mas nosso tempo de hipermídia é o tempo de Eco. É ensurdecedor o barulho nas mídias sociais e antissociais. Todos querem ser ouvidos. Uma grande avenida da cidade ou uma escola podem ser invadidas por vinte gatos pingados protestando contra PEC dos Gastos ou contra a máfia das merendas. A PEC é aprovada e as merendas continuam ruins, e os trabalhadores se atrasam no congestionamento e os alunos perdem as suas aulas e fecham o ano com metade da matéria que precisavam aprender. Ou menos.
As redes sociais gritam, os grupos de WhatsApp gritam, tudo viraliza como um blábláblá vazio. Esse é o paradoxo de Eco: quanto mais fala, mais vazia é a sua fala. Hera parece cruel, como a vida também parece, mas tenta ensinar Eco a fazer algo impossível em nosso tempo, que é ouvir antes de falar. Ou tolerar o próprio silêncio. Eco não aprende com a primeira lição, e isso não é bom, nem na Mitologia, nem na vida. Eco precisa, de qualquer forma, ser vista. Chamar atenção sobre si. Precisa ter mais likes, mais visualizações e retweets. Só quando ela é vista, ou ouvida, ou obriga o Outro a ouví-la e a reconhecê-la, só nessa situação que Eco sente que existe. Sou vista, logo Existo. O Outro pode ser tão cego quanto Narciso. Eco pode morrer buscando o olhar que não vai estar lá. Caetano disse que Narciso acha feio o que não é espelho. Eco só se enxerga no espelho dos olhos do Outro. Ou acha que é lá que vai se achar.
Nêmesis parece o Juízo Final em pessoa, mas promove uma transformação delicada das duas situações: Eco para de se procurar nos olhos dos outros e para de falar pelos cotovelos. Ela passa a espelhar a voz do Outro, para que ele possa se ouvir. A dor, o sofrimento da busca infrutífera termina quando Eco vira a Receptividade e a Escuta. Ela pode, enfim superar o próprio narcisismo e devolver para quem busca o reconhecimento tão esperado. Se parar de buscar a fama e o reconhecimento, pode começa a ver, realmente, o que antes não via. Ou ouvir, pela primeira vez, a beleza de sua voz.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Um Pouco de Paciência

“Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma/ Até quando o corpo pede um pouco mais de alma/ A vida não para…”. Os poetas, como Lenine nesses versos, conseguem perceber antes e melhor o que acontece com o tempo. O nosso tempo e nossa temporalidade. Nosso corpo pede um pouco mais de alma num tempo em que a alma está fora de moda. Somos cabeças sem corpo, e corpos sem alma. A vida não para e corre, corre entre os dedos.
Sempre acreditei que temos dois tipos de estresse, o Adrenérgico e o Cortisólico. Hoje tudo o que se estuda coloca o Cortisol no centro da ribalta da resposta ao Stress. O que acontece são respostas agudas e crônicas aos estressores. A resposta rápida é mais Adrenérgica, o coração bate forte, a respiração se encurta, os músculos tensionam, os pelos se eriçam preparados para lutar ou fugir. A reação prolongada demanda mais Cortisol e resiliência: o corpo reage retendo líquido, subindo os açúcares e a gordura disponíveis, a resposta imune e inflamatória aumentam e depois diminuem. O organismo entra em estado de resistência, e isso tem um custo a médio e longo prazo.
Cultural ou biológicamente os homens respondem mais da primeira forma e as mulheres, da segunda. O Taoísmo e a Medicina Chinesa já descrevia isso há milênios: os princípios Yin (Feminino) e Yang (Masculino) se equilibram e contrabalançam, nas estações do ano e nos ciclos corporais. Excessos de um Princípio em detrimento do outro gera desequilíbrio e o desequilíbrio se manifesta como doença. Nossos excessos de Yang criam a sensação permanente de pressa e urgência. Lenine fala disso na mesma música, “Paciência”: “Enquanto o tempo acelera e pede pressa/Eu me recuso faço hora eu vou na valsa/ A vida tão rara”.
Diante dos estressores, os machos da espécie se preparam para a luta ou a caça. As mulheres cuidam das crias e se cuidam entre si (lógico que existem espécies em que os machos são uns vagabundos e as mulheres fazem todo o serviço, como os leões e os humanos, por exemplo).
Temos meses e camisetas dedicados à prevenção do Câncer de Mama. Os tratamentos de reposição hormonal foram restritos, aumentando o risco de Doenças Cardíacas. As mulheres, nestes tempos de aceleração não fazem hora nem vão na valsa. Todos correm atrás do coelho de Alice: é tarde, é tarde, é muito tarde... Quando entram no tempo Yang, sofrem de suas doenças Yang. Estamos atentos às doenças oncológicas e é bom que estejamos, mas as mulheres estão morrendo de doenças coronarianas. Não era isso que se imaginava na igualdade entre os sexos.
No mundo com seus excessos de pressa e de Mente, o Corpo pede bastante mais de Alma. Danças circulares, Yôga, Meditação, respiração, psicoterapias, tudo isso faz parte da busca pela alma soterrada pelo tempo apressado. Para mudarmos o Stress, é bom começar pela percepção da temporalidade. Como diz a música: “Um pouco de paciência”.

domingo, 4 de dezembro de 2016

Como Lágrimas na Chuva

Ontem estava num Shopping fazendo hora quando a loja de eletrodomésticos despencou em dezenas de telas de LED as imagens dos caixões chegando no estádio da Chapecoense, Chovia forte e as gotas de chuva se misturavam com as lágrimas das pessoas nas arquibancadas. Familiares abraçavam os caixões, com olhares ocos e cansados. Pensei que eu mesmo já estava cansado de ter passado a semana enterrando os mortos e ouvindo os relatos médicos sobre os poucos sobreviventes. Soquei o ar no carro quando soube que o lateral Alan Ruschell tinha mexido os seus dedos, após cirurgia delicadíssima em sua Coluna. Isso sim foi um gol de placa. As famílias com as fotos dos caras que menos de uma semana antes estavam em campo no jogo morno e feio que deu o título brasileiro ao Palmeiras. Uma sensação clara do absurdo e da morte absurda.
Eu estava cansado das homenagens, das lágrimas sempre vindo ao ouvir e saber das histórias, como a estarrecedora imprudência e ganância que gerou a tragédia. A Chapecoense é um time pequeno, com orçamento apertado, assim como a LaMia, empresa boliviana cujo dono pilotava o jato sem combustível que se espatifou a poucos quilômetros de Medelin. Esse é o resultado de nossa moderna gestão, aumentar o lucro e diminuir os custos? Diminuir o custo a qualquer custo?
Existe, nas sessões de análise lacaniana uma técnica, do Tempo Lógico, em que a sessão é interrompida após uma Fala de extrema significância ser proferida. O corte abrupto e o silêncio que se segue jogam o analisando no meio de um grande desconforto. Não adianta se perguntar os porquês daquela interrupção. O que fica são as frases, os hiatos, as fendas do que se estava falando e como isso pode lançar o sujeito em outros significados. Para isso ele tem que tolerar o silêncio no meio de tanto barulho e tanta fala vazia intoxicando nossos ouvidos. Só assim podem surgir novas leituras, novos entendimentos.
Essa tragédia teve o efeito de um tempo lógico lacaniano: um time pequeno, de uma cidade pequena, todos de origem humilde e carreiras feitas em times de segundo escalão, finalmente chegavam a uma final de um torneio sulamericano, contra o campeão da Libertadores, de uniforme verde e branco como o dele. Era o grande momento de todos eles, da cidade, dos jornalistas da empresa que cobria esse campeonato esvaziado pelos cartolas da CBF. Tudo isso foi interrompido abrupta e violentamente. Depois da explosão, um terrível e cortante silêncio.
A maioria das pessoas começou a sentir a falta de pessoas que nem sabiam que existiam. O pequeno time, da pequena cidade, passou a ser o nosso xodó. Passou a representar todos os projetos inacabados, todas as perdas e as derrotas abruptas que nos deixam com as lágrimas misturadas às gotas de chuva. A morte prematura nos deixa com o gosto amargo do quase. As faixas proclamam a Chape campeã. Não foi. A Chape é a campeã das coisas inacabadas. Para nós, que ficamos e olhamos as imagens nas TVs dos shoppings, resta a tarefa de terminar o que foi interrompido e completar o incompleto. O silêncio é muito incômodo e, no meio dele há o absurdo. O absurdo nos convida à ação.