domingo, 30 de outubro de 2011

David

Ontem fui a uma festa de criança, coisa que me é normalmente um suplício. Os salgadinhos gordurosos e irresistíveis, que sempre me dão azia, a cerveja morna depois de rodar as mesas, o papo furado com aqueles primos que você só encontra em festinhas, casamentos e funerais (não necessariamente nessa ordem); bem, não é a minha idéia de divertimento. Mas vamos, em consideração com a amizade, o carinho de alguns abraços, e, quer saber, acaba sendo divertido. Fiquei sabendo, na festa, que um amigo está pensando em fechar o consultório. Esta é uma notícia que está ficando quase comum. Em seis meses é o quarto médico de ótimo nível querendo pendurar o carimbo e a caneta. Por que será?
Estamos numa sociedade de hiperconsumo, o psiquiatra virou um bem de consumo como outro qualquer. Outro dia atendi um rapaz, com crises de Pãnico graves e impossibilitantes, um quadro desencadeado por vários estressores, inclusive um chefe abusivo. O cara estava quase pedindo as contas, do trabalho e da vida, com alguns tratamentos mal sucedidos. Começamos mexendo aos poucos, mas decisivamente, na conduta. O quadro foi melhorando, com chuvas e trovoadas, ele voltou a sorrir e a se organizar, retomou o trabalho e sua autoestima. Sumiu. Foi continuar o tratamento em algum colega, talvez mais barato, talvez mais próximo de sua casa. Foi embora sem nenhum tchau ou muito obrigado. Eu costumo dizer em tom de brincadeira que psiquiatra não tem coração, para não se magoar com esse tipo de atitude. Mas o fato é que o embrutecimento das relações humanas não haveria de poupar a prática médica. Está com o nariz escorrendo? Vai, assoa no psiquiatra e quando estiver melhor, um abraço. É lógico que esse comportamento não é a regra, felizmente, não há dia que não seja repleto de sorrisos e de gratidões, de ambos os lados da escrivaninha. Mas essa brutalidade vai minando muitos colegas que preferem uma função mais protegida, mais técnica, longe do corpo a corpo da clínica.
Em Junho desse ano morreram dois psiquiatras por quem eu tinha o maior apreço: Marcos Mercadante e David Servan-Schreiber. Dos dois, conhecia pessoalmente o primeiro, apenas. Ambos na faixa dos cinquenta anos, da qual me aproximo. Dá um frio na barriga saber que o estresse de nossa carreira pode ter sido um fator nas duas partidas prematuras.
Esse blog já citou e homenageou os dois livros de David: "Curar" e "Anticâncer". Neste final de semana, li em duas sentadas o seu livro/despedida: "Podemos dizer adeus mais de uma vez". David morreu de um Glioblastoma, tumor cerebral que costuma ceifar a vida de seus portadores em até seis anos. David viveu com ele por vinte anos, escreveu os seus livros, divulgou as suas idéias nos vários países onde foi publicado. Acho que esse livro vai vender muito menos, por ser um relato doce e poderosíssimo de alguém que tenta compreender a própria vida e a própria morte. Não é um tema muito popular, embora a sua leitura me encha de esperança e de orgulho desse cara. Como homem e como colega.
A Ciência busca ávidamente formas de prolongar a vida e erradicar a morte, como se ela fosse o pior dos parasitas. David transformou o seu relato numa dança com o que o poeta chamou da "indesejada das gentes". Com algum medo, e muita ternura.
De qualquer forma, se algum conhecido ou cliente ficar preocupado com o tom algo melancólico desse post, não se preocupe. Amanhã cedo já vou estar atendendo, cuido razoavelmente bem da minha saúde e continuo adorando clinicar.
Boa semana para nós.

sábado, 29 de outubro de 2011

Comece de Onde Você Está

Escrevi esse texto para o site femininaonline.com.br que trabalha com roupa íntima para mulheres gostosas e cheinhas. Resolvi compartilhá-lo com os leitores(as) deste blog. Lá vai:

Ouvi a frase citada de uma psicanalista que resumiu maravilhosamente a questão : “Antigamente as pessoas queimavam as mulheres nas fogueiras. Agora, isso não é mais necessário: eles inventaram a balança”. De fato, a balança é o campo de tortura e dominação do feminino. Recentemente houve uma polêmica de uma marca de Lingerie que colocou a escultural Gisele Bünchen em calcinha e sutiã anunciando para o marido que bateu o carro, de novo. As feministas se descabelaram diante da imagem da mulher caracterizada como barbeira ao volante (na verdade, os homens batem e matam mais ao volante, mas gritam para a “Dona Maria” que guia como se estivesse colada à direção do carro), usando o seu corpo para seduzir o homem ao dar uma má notícia. Usa-se o corpo da mulher para vender rodas de liga leve, ferramentas de uso doméstico e até lingerie. Tudo é bom pretexto para deixar a mulher com pouca ou nenhuma roupa. O que as feministas deixam de notar é que o pior massacre não é de tornar o corpo uma forma de objeto de troca com o homem. Pior que isso é a sensação das mulheres de tentar se comparar com Gisele Bünchen e tentar usar a lingerie da mesma forma que essa top model internacional, com a sua equipe de personal trainers, nutricionistas, massagistas e esteticistas garantindo uma porcentagem inatingível de massa magra em seu corpo. A mulher, humilhada, evita andar com pouca roupa e só se despe com a luz apagada, pois nunca vai estar à altura da top model do outdoor. Pior ainda, algumas se apertam no mesmo modelo que a moça usou no comercial, evidenciando sobrepesos e gorduras localizadas. Tudo isso gira em torno da ditadura das imagens, que garantem à mulher sempre a sensação de estar um passo atráz das outras, mais magras, mais gostosas, mais desejadas.
O titulo desse texto foi retirado de um livro budista, que convida o leitor a iniciar a sua prática no aqui e agora. Acalme o seu coração aqui e agora, harmonize a sua mente aqui, e agora. Isso vale também para a sua sensualidade. Sinta-se gostosa aqui e agora, escolha uma roupa íntima que te valorize as formas aqui e agora. A sensualidade, como outros campos de sentimentos humanos é uma prática e um aprendizado. A maior parte das pessoas trabalha com a luta contra si e contra o seu corpo, do tipo: vou usar aquela lingerie sexy depois que emagrecer tantos quilos, vou me despir para o meu amor depois da lipo. O desejo é adiado, a frustração, não. “Comece de onde você está” quer dizer, empreste a beleza para o seu corpo aqui e agora.
No filme “Comer, Rezar e Amar” a personagem de Júlia Roberts pergunta para a sua amiga, que está com medo de comer uma pizza porque engordou alguns quilos na Itália, se algum homem pediu para ela sair quando tirou a roupa. Para o homem, uma mulher tirando a roupa é como ganhar na loteria. Escolher a roupa íntima, o baby doll e o clima na hora de tirar a roupa pode tornar, aos olhos de um homem, a sua gordinha em uma Gisele Bünchen.
Comece a se fazer bela agora, de onde você está.

Marco Antonio Spinelli é Médico Psiquiatra, Psicoterapeuta de Orientação Junguiana, autor do Blogdomarcospinelli.blogspot.com

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O Fio de Ariadne: Sandplay e Verdade Terapêutica

Essa postagem é um resumo da palestra proferida, a pedido da coordenação da Jornada. Algumas das idéias já foram descritas em outros posts, então me desculpem por chover no molhado. Vamos nós:


Uma das fontes de discordância entre as diversas correntes de pensamento, quando se trata de Psicoterapias, é quem está descrevendo melhor a Psique. Lembra a história hindú de um bando de cegos palpando um elefante e descrevendo o que tocou. Para um, o elefante é uma tromba; para outro, uma pata; um terceiro pode descrever as orelhas magníficas. Falta, a todos, a visão do Todo. Não é diferente com as formas de abordagem do sofrimento psíquico humano. O curioso é que as Psicologias Profundas foram descobertas antes de outras mais superficiais, mais fáceis de serem testadas pelos métodos científicos. Hoje estamos vendo um esforço quase deliberado em se desacreditar as Psicologias do Inconsciente, tratadas como ficções de seus autores pelos seus detratores. O pior é a falta de diálogo entre os xiitas e sunitas da Psicologia, ou psicologias. Vamos meter a nossa colher nesse angú:
Podemos dividir as dimensões de abordagem da mesma forma que dividimos a leitura de um fenômeno. Ou mesmo, dos níveis de abordagem de um problema comum, de nosso dia a dia:
Vamos pensar num fato simples, comum. Uma pessoa torce o pé e isso lhe causa uma fratura. Abordando no nível 1, isso foi a Manifestação de algo. No caso, de uma ruptura de um osso. Abordagem no nível 1 inclue fazer um raio X, detectar o problema, corrigí-lo, com cirurgia ou gesso. Não sabemos, mas a maior parte de nossas questões são resolvidos no nível 1: caiu, quebrou, SuperBonder colou. Se olharmos com mais detalhe, podemos chegar no nível 2, onde o fenômeno é visto com mais detalhes. Esse é o nível do Significado. Como é a marcha da pessoa? A Biomecânica de suas articulações? Há algum grau de Osteoporose em seus ossos? As ruas onde caminha estão mal pavimentadas? Todos os fatores que foram predisponentes ou desencadeantes do problema são levantados, a prevenção de um novo evento pode ser feita de forma mais ampla. Na vida, quando conseguimos olhar para as coisas com a complexidade do nível 2, já ficamos muito felizes. Na maior parte das vezes, não conseguimos nem um remendo no nível 1. Mas podemos ir ainda mais fundo. Se olharmos com mais detalhe, chegamos no nível 3, o nível do Símbolo. O que esse evento simbolizou naquele momento? A pessoa está estressada, por isso anda sem olhar? Não consegue elaborar um luto, ou uma mágoa, e sai por aí levando tombos? Tem uma doença oculta, um Tumor no Cerebelo ou uma Arritmia Cardíaca, causando as quedas? Esse é o nível de causalidade que as Psicologias do Inconsciente abordam. Se olharmos de forma ainda mais profunda, chegamos no nível 4, que é o nível do Sentido. Isso só dá para saber depois de um tempo. Aquela fratura obrigou a pessoa a ficar em casa, concluindo um livro magistral que estava parado há anos. A fratura tirou o sujeito da correria do dia a dia, deixando-o mais conectado com os ritmos da vida. Esse nível não é para qualquer um. Muita gente duvida mesmo que ele exista. Podemos vê-lo quando uma pessoa agradece por uma doença ou uma adversidade, que lhe causaram sofrimento mas a levaram para outra visão e compreensão da vida. Aquilo teve um Sentido.
A Terapia de Sandplay, criação da suiça Dora Kalff, traz em suas cenas na areia, todos esses componentes. A Expressão, no nível 1, através da montagem de uma cena com miniaturas em uma caixa de areia (que minhas gatas iriam adorar). O Significado, no nível 2, das questões de sua vida. A paciente solitária pode montar uma cena em que está presa numa ilha, por exemplo. A dimensão 3, do Símbolo, pode aparecer numa imagem inocente, de uma menina andando entre os bichinhos e pedras, que mostram uma infância solitária, uma criança, agora com quarenta anos, desconfiada se as pessoas podem ou querem ajudá-la. Analisando as imagens, depois de alguns anos, pode-se ver o Sentido profundo da dor e do sintoma que trouxe a pessoa para o seu processo. Se olharmos com mais cuidado, vamos perceber uma espécie de mão invisível, organizando as miniaturas e o processo. Os junguianos chamam essa ordem invisível de Self. E, bem sabemos, o Invisível, o Inapreensível, anda bem fora de moda.
Finalmente, falamos sobre o filme "A Origem", como uma metáfora desse Inconsciente em camadas. Não adianta ficar plantando idéias nas camadas mais superficiais da psique. Senão, era só repetir algumas fórmulas dos livros de Autoajuda e tudo sairia como planejamos. O filme mostra o desafio de se adentrar as camadas mais profundas do Inconsciente, os porões da Alma Humana. O sonho, dentro do sonho, dentro do sonho que os exploradores de sonhos vão explorar no filme.
Uma personagem do filme é muito cara aos terapeutas: Ariadne, que arrisca a própria vida ou a própria sanidade para ajudar os personagens em seu mergulho, sobretudo Cobb, o personagem de Leonardo di Caprio, que vai até o fundo de seus pecados e culpas para finalmente elaborar e resolver o Sintoma. E qual era o Sintoma? Cobb não conseguia ver, ou entrever, o rosto de seus filhos, nem em seus sonhos, nem em suas lembranças. Ariadne o conduz, no Labirinto de suas dores, às camadas mais profundas de seu Inconsciente, onde, como disse Jesus, a Verdade o libertou.
Ariadne é uma personagem e uma metáfora perfeita para a Psicoterapia do Inconsciente e para a Psicoterapia de Sandplay. Ela demonstra o profissional que põe à disposição a sua estrutura, a sua escuta ou as suas miniaturas para que o paciente preencha esse espaço com o seu Inconsciente. É lá, no nível 3 e 4, que encontramos a verdade. E, se dermos sorte, a Cura.

domingo, 23 de outubro de 2011

Fora do Tempo

Hoje pela manhã já somos bombardeados com notícias de acidentes etílicos de automóvel. Ontem um bancário atropelou dois garis, recusando depois passar pelo teste do Bafômetro. Outro acidente estarrecedor foi da Fórmula Indy, no Domingo passado: um carro desgovernado, pegando fogo, atravessando a pista oval, os outros carros se apertando contra o muro até um strike de muitos pilotos, com um morto. A cena parece uma definição da pósmodernidade, as pessoas correndo em uma pista oval, tentando uma velocidade cada vez maior, para chegar em lugar algum. Mesmo com o carro pegando fogo, o risco de uma catástrofe, que acabou ocorrendo, os caras se apertavam para continuar dentro da corrida. Deu no que deu.
O fato é que a sensação de correria sem sentido acomete a todos. Recolhemos nos consultórios os feridos e avariados, que muitas vezes fazem um pit stop para recarregar a gasolina e voltam depois para a pista, correndo sem motivo e sem enxergar a linha de chegada. As bebedeiras seguidas de acidentes também fazem parte do pacote.
Ontem no evento uma das palestrantes mostrou, através das cenas montadas com miniaturas na Caixa de Areia, a evolução, impressionante, de uma paciente sua, no decorrer de quatro anos. De imagens iniciais, sem figuras humanas e com ilhas de areia que não se comunicavam entre si, as cenas foram ganhando vida, personagens e o desabrochar, que Lury, a terapeuta, comparou com uma crisálida que foi virando uma borboleta. As imagens falavam por si.
Acordei refletindo que o trabalho psicoterápico virou uma ilha de sossego no meio da correria. O trabalho com as miniaturas coloca o paciente numa franja de Não Tempo, mais do que na lentidão, ou no repouso. Fora do tempo, a psique pode voltar a se expressar, a se colocar dentro de imagens que procuram sempre pelo centro organizador no meio da aridez de nossos egoísmos. E correrias.
Tentei falar em minha aula de que a Terapia de Jogo de Areia é uma ferramenta clínica para atingir extratos mais profundos de nossa Psique, onde realmente as mudanças podem ocorrer. Cavamos nessas camadas para desfazer os nós, aguar as plantas, abrir as janelas do que está esquecido e cheirando a mofo em nossa alma. As pessoas procuram por soluções rápidas, epidérmicas, quase mágicas. A pressa termina em um muro de um circuito oval.
Ontem fiquei recompensado de estar em um Sábado fora do tempo. A delicadeza desse Não Tempo se manifestou na última cena, onde cada participante colocou a sua miniatura dentro da caixa e montamos uma cena coletiva. Ninguém se atreveu a interpretar a cena, mas ela obviamente representava o grupo se formando em torno de uma mulher grávida. No meio de escombros e de ferros retorcidos, estamos cuidando de uma gravidez de risco, que é o nosso mundo.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

As Camadas da Psique

Ontem estava lendo um livro que basicamente refuta a maior parte da minha prática clínica. O autor dizia que a maior parte da teorias junguianas e freudianas são ficções, ou religião (em meios científicos, isso é um xingamento). Os sonhos, por exemplo, para a Neurociência Cognitiva, servem para consolidar memórias, elaborar as vivências do dia, distribuir entre os hemisférios essas memórias como forma de dissipar a tensão, os estressores do período de vigília. Não há como corroborar um valor simbólico, ou oculto, dos sonhos, pelo menos pelos métodos científicos disponíveis. Não vou entrar nesse mérito epistemológico, não é o foco desse blog. Desde os tempos bíblicos, ou antes disso, desde os primeiros xamãs que os sonhos são uma via de comunicação com outros estratos de consciência, pessoal e transpessoal. Como a Ciência, pelo menos a tradicional, se atém aos fenômenos materiais, como mencionar algo tão imaterial quanto os sonhos? Será que essa tecnologia de transmissão de imagens visuais via câmeras vai possibibitar que vejamos nossos sonhos em alta definição, no café da manhã? Aposto que não. Os sonhos, como qualquer percepção, são uma reconstrução, retradução no Cérebro de nossos pensamentos, desde os que tivemos na noite anterior até as primeiras impressões de bebê. Reconstruímos os pensamentos, as dúvidas, as imagens, os cheiros e cognições conscientes e inconscientes durante os sonhos. As câmeras vão registrar algumas imagens, como as câmeras de um prédio, mas não as impressões, o enredo, as sobreposições de conteúdos que temos durante o sonho.
Quem está lendo pode pensar que eu me irrito ou abomino um livro que fala que tudo o que se comprova verdadeiro no dia a dia de consultório é na verdade uma peça de ficção ou uma crença religiosa dos altares da Psicologia Profunda. Sinceramente, não. Vou falar em dois dias de um filme que eu nem gostei tanto assim, "A Origem", justamente porque ele apresenta de forma muito didática, a concepção de um Inconsciente em camadas. Um dos personagens, de Léo di Caprio, é Cobb, o cara que concebe e coordena a equipe para entrar no Inconsciente de um mega empresário, Robert Fischer, para implantar uma idéia: a de que ele não precisa imitar o seu pai, recém morto, em sua condução de um grande império corporativo. Para que a idéia seja implantada e cresça, ela deve ser sugerida, trabalhada, elaborada em cada camada de Inconsciente que vão adentrar, via uso de sedativos mais e mais potentes, até chegar num sonho, dentro de um sonho, dentro de um primeiro sonho. Parece complicado, e é mesmo. Mas traz uma luz nas questões e nas pendengas entre as psicologias profundas e as cognitivas. Cobb precisa da ajuda de Ariadne, jovem e brilhante estudante que vai construir os labirintos para entrar no inconsciente do milionário. Cobb não pode ser o arquiteto, pois sempre que ele está nesse lugar, aparece uma sombra de sua mulher, Mal, que morreu e vamos descobrindo no filme de que forma ela morreu e porque a culpa não deixa que Cobb consiga atingir os seus objetivos. São, sob esse aspecto, personagens caros a uma Psicologia Profunda. As psicologias cognitivas, ou mais superficiais, tem a ingenuidade de achar que nosso Cérebro racional pode muito berm lidar ou reprogramar nossas redes neurais profundas, só com o uso do bom senso. Não pode. Quando Cobb olha nos olhos de sua esposa morta e compreende, finalmente, que a sua cobiça, sua ambição cega acabaram provocando a sua morte, finalmente, pôde pedir desculpas e seguir em frente com a sua dor, agora consciente. Só quando essa verdade se manifesta é que todos os nós de Cobb se desatam e ele pode, camada por camada, voltar a superfície. As Psicologias Cognitivas podem, realmente, atingir essa profundidade? Normalmente, não.
O filme "A Origem" fala de muitas coisas, mas traz à tona uma verdade evidente que as diversas psicologias não conseguem admitir: o Inconsciente se organiza em camadas, as micro curas de nossas feridas se dão, quase simultaneamente, em todas elas. É bobagem ficar jogando cascalho no telhado alheio, antes é melhor descobrir o que podemos fazer em cada camada, e que tipo de paciente se beneficia mais ou menos de cada abordagem.
Daqui a dois dias será a aula que eu venho preparando nesse blog há algumas semanas. A aula tentará mostrar que nós, amantes das profundidades, ainda temos muita coisa boa para oferecer para alívio do sofrimento psíquico. E o que é pior, vamos continuar cavocando em busca de respostas.

domingo, 16 de outubro de 2011

Sandplay

Tem uma frase do Lacan que eu adoro: "Sou onde não penso; penso onde não sou". Ela é muito bonita, mesmo sendo quase ininteligível para a maioria das pessoas. Eu tinha uma provocação que usava com a angústia que os pacientes sentem quando não conseguem falar dentro da sessão: " O Que fala quando você não fala?". As duas frases, ou jogo de palavras meio zen, falam de um dos mistérios de nosso ofício, que é a coisa que pensa dentro de nosso Cérebro e que está atrás de nossa mente tagarela, de nosso eterno diálogo interno. Não são poucas as pessoas que adoecem com um sintoma cada vez mais comum, o "Pensamento em turbilhão", justamente quando esse pensamento se perde dentro de si mesmo e fica dando voltas dentro da cabeça, sem que a pessoa consiga silenciá-lo. O impressionante é que precisamos às vezes de uma dose alta de medicação sedativa para que esse palavrório diminua e a pessoa consiga, finalmente, descansar dentro da própria mente. O Que fala dentro de sua alma quando você para de falar?
A Terapia de Sanplay vai revelar justamente esse ser que se manifesta fora de nosso discurso. Parece complicado de entender? Vou dar um exemplo. Uma pessoa intelectual e articulada, que zomba nas consultas das técnicas e abordagens psicológicas, montou uma cena com as miniaturas na caixa de areia, quase triunfante por achar a técnica boba e infantil. A imagem que apareceu é de uma menina solitária, uma única personagem humana no meio do cenário, cercada de bichos, de plantas e de brinquedos olhando para frente. A cena montadas com as miniaturas mostra todos os personagens apontando na mesma direção. Quando eu mencionei a menina que ela fora, muito solitária, muito cercada de brinquedos e da própria imaginação, ela se emocionou. A sua empáfia científica acabou de desmoronar. Na cena estava o miolo da sua dificuldade: a visão unilateral, sempre para a frente, pela dificuldade de olhar o seu passado. A menina aprendeu a construir o seu futuro para fugir de uma infância difícil, que ela jurou abandonar e nunca mais ficar na mão de ninguém. O preço disso aparecia na cena da areia: independência com solidão. Nenhuma figura masculina em toda a cena.
A Terapia do Sand Play, ou como eu prefiro chamar, a Terapia de Jogo de Areia, é uma técnica e um método de revelação do Incosciente. Ele que é o sujeito oculto da frase de Lacan: "Sou onde não Penso, Penso onde não SOU". É lógico que a frase é uma paráfrase e uma inversão do famosíssimo aforisma de Descartes: "Penso, logo Existo". Genial. O lugar onde eu mais sou é o lugar em que o pensamento não atrapalha a minha verdade. Aí é o Inconsciente, que, como o nome já diz, está fora do meu campo de Consciência. A menina solitária, um pouco triste e sonhadora era a verdadeira identidade daquela mulher descolada, supercrítica e elegante que se apresentava para o tratamento.
Pois essa é exatamente a mágica da brincadeira com as miniaturas dentro do setting terapêutico. Na aula que vou dar no evento do dia 22 de Outubro (vide o post anterior), uma colega sugeriu que eu usasse imagens do filme que vai servir de ilustração para a aula, que é "A Origem". Agradeci a sugestão, mas não vou acolhê-la. A terapia com as miniaturas liberta uma coisa que ficou perdida em nossa infância, que é a nossa capacidade de fantasia, de imaginação. Espero que a aula consiga estimular a imaginação das pessoas. Já temos a nossa imaginação muito colonizada por imagens, por vídeos, por fotos e desenhos, não conseguimos mais, simplesmente, tentar reconstruir um acontecimento em nossa imaginação. Na aula, vou deixar que cada um imagine as cenas com as miniaturas como se a tivessem montado.
Esse talvez seja um grande diferencial desse tipo de terapia: trazer de volta a capacidade de imaginar, fantasiar, fazer associações e finalmente, mostrar ao paciente em 3D o que está escondido atrás de nossas personas tão sofisticadas. Talves é lá, no meio de nossas fantasias, que está a verdade de nosso desejo e de nosso ser.

sábado, 15 de outubro de 2011

Obsessões Amorosas, De Novo

Acabei dando a tal entrevista para a jornalista, que me encontrou na internet em entrevista que falei da Relação Iô iô. Vai ser triste depois de tantas décadas de estudo e de síntese de Psiquatria Clínica, Psicoterapia Junguiana, Neurociência, sem mencionar a Medicina Chinesa que eu ando sapeando, vou ficar conhecido como o descobridor da Relação Iô iô.
Esse blog atrai mais leitoras e comentários quando fala de relacionamentos. Já recebi longos e pungentes relatos de leitoras em meu e-mail relatando os horrores dos relacionamentos dos quais não conseguem se libertar. Já usei personagens da Mitologia Grega e de Nelson Rodrigues. Diariamente atendo mulheres bonitas, inteligentes, sofisticadas, se descabelando por homens que, se bater no liquidificador, não dão meio copo de suco. O que está acontecendo? É uma epidemia?
Os homens ganharam a guerra dos sexos. A vitória não se deu por enfrentamento direto, muito pelo contrário, mas pela guerrilha da ausência, de transformar a mulher e as relações em objeto de consumo. Surtou, eu troco. As mulheres ficam aterrorizadas de serem classificadas nessa classe de "mulher que surta", então ficam tateando, às cegas, uma forma de firmar o relacionamento, na fronteira gigantesca entre a "ficância" e o namoro. Amarradas pelo medo de explodirem, atropelarem a relação com a própria insegurança, com alguma cobrança fora de hora que faça o rapaz bloqueá-la nas redes sociais. Toneladas de pipoca, chocolate e lenços de papel são consumidas em meio às comédias românticas em que o bonitão sempre acaba persuadido pela mocinha a abandonar a feliz vida de solteiro e finalmente assumir um relacionamento, um vínculo, uma família. Procuram pelos príncipes pós modernos, que sempre olham com aquela cara quando a mulher aponta a atenção pouco diferenciada que dedicam a si e à relação.
O que eu posso dizer no espaço de um post? Antes de mais nada: é preciso um espaço de interiorização. As pessoas estão mais loucas do que jamais estiveram porque vivem em permanente angústia de exteriorização: os homens querem uma Ferrari, as mulheres querem ser uma Ferrari. A vida, a consciência evolue em ciclos de Tentativa-Erro-Interiorização-Elaboração-Aprendizagem. Quando a candidata a Jennifer Anniston (cuja vida amorosa, segundo os tablóides, só dá certo nas telas de cinema) tem uma decepção, uma perda, uma rejeição, é melhor que não saia colecionando ficantes, ou repetindo o padrão, de relação em relação. Acolha os sentimentos, recolha as pressas, interiorize que tipo de homem ou relacionamento gostaria de ter em sua vida. Se os homens fogem das "mulheres que surtam", fujam dos "homens difusos", os que colecionam mulheres ou estão sempre com a atenção em outro lugar que não seja a mulher. Sobretudo, fujam dos caras que não cumprem as suas promessas e não param de fazê-las. Os caras que fazem do some/reaparece uma arma para manter a mulher enlouquecida. Outro dia ouvi no rádio que a militância feminista de um país africano conclamou as mulheres à uma greve de sexo se os homens não tomassem determinada posição. Já pensou se a moda pega? Os homens vão ficar românticos, apaixonados, atenciosos, quase cavalheiros. Quandos as pernas se fecham, os olhos se abrem. Espero que a minha mulher não leia esse post.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Terapia de Jogo de Areia - Evento de 22 de Outubro

Uma coisa que causava impressão aos pacientes em sua primeira consulta era entrar na minha sala e se deparar com uma prateleira de miniaturas de todos os tipos. Gnomos, personagens da Disney e de quadrinhos, dinossauros, insetos e tudo o que se possa imaginar. O sonho de toda faxineira, limpar uma a uma das miniaturas. Um paciente meu dos mais antigos, com aquele humor gaúcho característico, me disse que ainda bem que quando ele começou não tinha aquela prateleira, senão ele iria achar o terapeuta boiola. Muitos pacientes, discretos, olhavam para aqueles trecos na prateleira com o rabo de olho e não faziam nenhum comentário. Psiquiatra já tem fama de louco mesmo, deve ser uma excentricidade. Outros já se apressavam em me arrumar uma desculpa, do tipo:"O senhor atende criança, também?". Só crianças grandes, eu respondia, sem dar mole. Depois de um tempo em que a curiosidade do outro pode ser fatiada no ar, de tão densa, eu acabo explicando qual é o babado das miniaturas. Elas fazem parte de uma técnica psicoterápica, a "SandPlay Therapy", ou "Terapia de Jogo de Areia". É uma técnica desenvolvida por Dora Kalff, uma psicoterapeuta suiça que ajudava a expressão de seus pacientes com essas prateleiras de miniaturas, evocando uma fase na vida em que todos já nos deliciamos com miniaturas, carrinhos, bonecas, criando um espaço intermediários de relaxamento e expressão simbólica. Vou dar um exemplo para não ficar muito teórico. Pedi a um casal em terapia para mostrar as imagens de seus casamento com as miniaturas. A esposa pegou uma Branca de Neve minúscula, olhando de frente a uma das maiores miniaturas que havia na prateleira, de um sacerdote africano. A imagem central, muito simples, causou-lhe uma grande emoção, pois mostrava uma espécie de software simbólico de sua relação com o masculino, estruturada por um pai distante e um marido que frequentemente a deixava apavorada, sempre cutucando nesse medo que aparecia em 3D na sua escolha de miniaturas. A imagem simples, inocente, encima da areia (as miniaturas são colocadas em uma caixa de areia, daí o nome da terapia),trouxe à luz um fato central da relação: que a esposa briguenta era uma menina assustada, procurando pelo olhar e pela aprovação do homem, e que o marido "usava" esse medo para ser sempre mandão e ameaçador. A imagem mudou completamente o rumo da terapia. Para melhor.
A minha irmã, Claudia, é psicoterapeuta junguiana, especialista nesse tipo de trabalho simbólico. Ela e suas sócias, Lury e Suzana, me convidaram para dividir com elas um evento bacana sobre esse tipo de trabalho. Serve para estudantes e profissionais da área de Saúde Mental ou simplesmente para interessados em conhecer o imaginário colossal do ser humano, que é, aliás, o que nos torna humanos.
Na minha aula, que será depois do almoço e deve ser dinâmica, senão vai ter muita gente dormindo, eu vou falar de Psiquiatria Junguiana (que não existe, mas não espalhem), do filme que os meus poucos e fiéis leitores já ouviram falar à exaustão, que é "A Origem" e suas implicações para a Psiquiatria e a Psicoterapia e da Terapia de Jogo de Areia representada no filme, bem como todas as terapias profundas, pela personagem Ariadne. Espero que dê tempo para falar dos três tópicos.
Para quem quiser mais informações, ligar para Fernando, no fone (11) 98935370, ou mande um e-mail para jornada@imaginareia.com . O evento será daqui a 10 dias, no Sábado, dia 22de Outubro, em hotel na Aclimação, São Paulo, capital. Se não for pedir muito, quem estiver lendo esse post por favor espalhe esse texto em seu mail list. Obrigado. E até lá.

sábado, 8 de outubro de 2011

Entrevista com a Vovó: Ciúmes da Ex

Há cerca de uma década eu criei, se é que fui eu, a personagem da Vovó. Ela me aparecia na cabeça, por vezes eu chegava a ouvir o seu tom de voz sereno e sua voz rouca. A Vovó conversando com a netinha foi um hit na internet por algum tempo e até hoje chegam alguns textos das duas no meu e-mail. Algumas vezes eu achei a personagem um pouco piegas, mas normalmente as pessoas, sobretudo do sexo feminino, gostam dos textos da velhota. Hoje recebi um e-mail de uma jornalista sobre uma pauta difícil, que é a relação de uma garota com o ciúme da Ex. Vou preparar a entrevista e algumas perguntas para a "visão feminina" da Vovó. Ela deve me ajudar.


- Vó?
- Oi?
- Você estava dormindo?
- Estava é o termo.
- O que?
- Nada. O que foi?
- Espera aí que eu me esqueci.
Esfregou os olhos, já pensando em cochilar de novo.
- Lembrei.
Olhou para ela, já sem esperanças de dormir de novo.
- Por que as mulheres tem ciúme dos homens?
- Que história é essa, menina?
- Outro dia eu li que uma mulher atropelou o marido na frente dos filhos, porque estava com ciúmes.
- E quem falou que é para você ficar lendo essas coisas?
- Eu sei ler, ora... Estava no jornal...
A Vovó ficou numa sinuca: como criticar uma menina que gosta de ler?
- As pessoas andam muito loucas, meu bem.
- Por que?
- Não sei, não... As pessoas dessa geração acham que todos os seus desejos tem que ser realizados... Acham que se tentarem, se colocarem a sua energia num desejo, ele vai se realizar, ele tem que se realizar... Só que não é assim que acontece na vida real, meu bem. Não adianta comer uma caixa de bombom e decorar as comédias românticas, a vida não é uma comédia romântica.
- A Cida é asim?
- O que tem a Cida?
Cida era a empregada.
- Ela vive com ciúmes da antiga namorada do Celso.
- Quem é o Celso?
- É o namorado dela.
- E como é que a mocinha sabe disso?
- Que coisa, Vó, você pensa que eu sou um bebê?
- (Fez uma careta) A Cida é um bom exemplo. Fica caçando foto de ex, fica entrando no Facebook o tempo todo. Daqui a pouco vou colocar essa menina na rua.
- Por que?
- Porque essa geração tem cérebro de minhoca, caramba... Fica obsecada pela própria insegurança. Fuça as coisas do menino, não dá sossego... Uma hora ele vai se cansar e ela vai ficar chorando pelos cantos. De novo.
- Isso já aconteceu antes?
- Um monte de vezes.
- Eu vou fazer isso quando eu crescer?
- Se fizer, eu te pego, menina, eu te pego! (Fez cócegas na menina, as duas às gargalhadas).
- Por que as mulheres brigam pelos homens?
- Porque mulher é um bicho besta, mesmo. Porque está em nossos genes.
- O que é isso?
Coçou a cabeça. E agora?
- Você não gostava daquele moleque com nome de ator?
- O Cauã?
- Esse mesmo.
- Eu não. Ele que gostava de mim.
- E aquela loirinha não ficou com ciúmes?
- Ficou. Até jogou o meu bolo no chão.
- Então, não falei?
- Mas por que a coisa é assim?
- Isso é um instinto, meu bem. A fêmea tem que escolher um macho da espécie para ter seus filhotes, certo?
- Você não vai me contar como elas fazem os filhotes, não é?
Ficou com a face pegando fogo.
- Hoje não. Hoje não. Você só precisa saber que a fêmea de nossa espécie precisa encontrar o melhor macho possível para ter os seus bebês. Ele precisa ser forte, bonito, intenso, amoroso, atencioso, delicado, dedicado e bom pai para os filhotes.
- Só isso?
- É uma boa lista, para começar. Mas podemos resumir tudo em uma coisa só.
- Uma coisa só?
- Uma coisa só: A mulher precisa sentir que é especial. Ela precisa saber que o olhar do homem é todo dela. Não dá para ficar olhando para todos os rabos de saia. Precisa olhar para ela e saber que é especial.
- É disso que a mulher tem ciúmes?
- Do que?
- Da atenção do homem?
- Disso e de muitas outras coisas. Mas o principal é que as mulheres, como a Cida, querem se sentir realmente únicas. Querem que o homem admire e esteja plenamente atento a elas. Querem que os homens olhem para elas como se fossem um bilhete de loteria premiado. Por isso elas se irritam com fotos, presentes e facebooks de exnamorada. Elas sabem que não tem essa de ser amiga de ex. Sempre tem alguma coisa a mais.
- Como assim?
- A mulher, meu bem, quer o desejo do homem. Mesmo que não faça nada com ele. A ex não quer ser amiguinha, quer marcar território, quer estar no pensamento do homem, quer ser a preferida dos amigos, a fofa da sogrinha...
- Caraca...
- O que?
- Nada não.
Coçou a cabeça, ainda pensando no assunto.
- Vó?
- O que?
- Como é que eu posso ajudar a Cida?
- Você não pode ajudar a Cida.
- Quem pode ajudar a Cida?
- O tempo pode ajudar a Cida.
- Como?
- Com o tempo ela vai chorar muito, se descabelar muito até aprender que o problema não é a ex, meu bem, o problema é o cara. O cara... (falou isso sacudindo as agulhas de tricô. A menina evitou o riso).
- O que tem o cara?
- A Cida vai aprender a escolher, meu bem. Escolher um homem que seja homem, que não fique de lero com a ex, que não aceite quando a mamãe convida a ex para festa da família. Um homem que a proteja e a valorize. Para isso, menina, ela precisa descobrir uma coisa.
- O que?
- Ela precisa aprender que se ela não se der valor, os homens também não vão dar. Se ela não souber que é uma mulher legal, que tem tudo que o namorado quer e precisa, vai passar a vida fuçando o celular do namorado, procurando o fantasma da ex. Dane-se a ex. O que interessa é o que ela sente, o que o namorado sente. O resto é fumaça.
A menina deu um pulo da cadeira.
- Onde você vai?
- Vou anotar tudo.
- Que?! Vai anotar para que?
- Vou anotar tudo para escrever um livro de autoajuda.
- Para quem?
- Para a Cida, claro.
- Volte aqui, pestinha...
Só deu para ouvir a porta batendo. E as gargalhadas no corredor.

Steve Jobs e o Herói Ferido

No ano passado eu postei uns três textos sobre o discurso de Steve Jobs em Stanford. Cara, que discurso. Simples, conciso, com uma carga extra de dinamite em cada frase. Depois descobri que ele ensaiava longamente cada trecho, cada inflexão de voz de suas apresentações, até elas parecerem feitas de puro improviso. Nunca vou conseguir esse nível de perfeição. Sempre vou para as minhas poucas aulas com um roteiro na cabeça que pode ir para um lado e para outro, de acordo com a reação das pessoas e o perfil do público. Não se pode dizer que sempre me dou bem nessa empreitada, ou que as pessoas gostem, mas esse é um outro assunto. Steve Jobs, em seu discurso na formatura de Stanford, usou uma regra que sempre norteava as suas apresentações, que é a regra dos três (não a regra de três). Ele sempre dividia as apresentações em três tópicos principais, se concentrava numa quantidade limitada de assimilação da platéia. Dessa forma, Steve dividiu a sua apresentação em três pequenas histórias. Acrescentou até um "no big deal" (não é nada demais) para esvaziar a expectativa das pessoas. Penso que ele resumiu três importantes ciclos de uma vida com essas histórias. O que um Junguiano chamaria de três grandes ciclos arquetípicos: A Criação do Herói, A Sagração do Herói e A Queda.
No primeiro ciclo, ou na primeira das três histórias, ele chamou de "juntando os pontos". Nela, o CEO da Apple descreveu a sua adoção, quando recém nascido. A sua mãe biológica exigia que fosse adotado por um casal com nível superior. Os seus pais adotivos eram simples trabalhadores, bons e honestos, mas prometeram que dariam ao menino um diploma. Steve Jobs entrou numa faculdade cara, mas nunca completou o curso. Preferiu seguir os seus instintos e interesses, o que criaria, anos depois, uma das maiores corporações da era dos computadores, na garagem de seus pais. Ele não entendia as suas escolhas na época, nós as entendemos hoje. Ele chamou essa parte do discurso de "juntando os pontos" porque as linhas tortas com que escrevemos (junto com Deus) as nossas vidas só são mais compreensíveis quando olhamos para trás, alguns anos depois. Só depois de algumas décadas podemos entender onde nossos erros e acertos nos levaram. Steve aconselhou as pessoas a seguirem os próprios instintos. Na segunda parte do discurso, ele descreveu o momento em que foi demitido da empresa que ele mesmo havia criado. Um moleque de vinte e poucos anos com milhões de dólares em sua conta, meteu os pés pelas mãos e acabou na lona, rico e longe de seu brinquedo. Levou alguns bons anos para ele se reerguer e retomar, mais maduro, salvando e tornando a Apple uma das mais valiosas corporações do planeta. Steve avisou aos formandos que em algum momento a vida vai te dar uma tijolada que vai te deixar grogue. Ame o que você faz, e o faça com intensidade. Não se acomode. Prossiga na sua jornada até encontrar o que procura.
Na terceira parte do discurso, ele mencionou o diagnóstico recente de um Câncer de Pâncreas, um dos mais agressivos e mortais que existem na Oncologia. Chegando aos cinquenta anos, Steve Jobs deparou-se com a Morte e a necessidade de dizer em poucos meses o que ele pensava dizer em algumas décadas. O tipo do Câncer era raro e menos agressivo do que pensava, naquele momento, um dos homens mais poderosos do planeta julgava-se a salvo. Sabemos hoje que não estava. A suprema ironia é que os bilhões de dólares que ele tinha na conta não foram nada diante dessa doença devastadora.
Como acontece nessas situações, Steve Jobs foi incensado como um homem que inventou a nossa era, com I-Pods, I-Phones e I-Pads. Foi chamado de gênio para cima. Eu, que sou evidentemente um fã do homem, penso meio tristemente no destino de Édipo. Édipo é um mito tão caro aos psicanalistas, mas é um junguiano que vai utilizá-lo: Quando o menino que viria a ser o rei de Tebas nasceu, o seu pai, Laio, foi a um oráculo que lhe alertou que aquele menino mataria o próprio pai e desposaria a própria mãe. Laio tomou o seu filho e mandou deixá-lo para as feras, após cortar os tendões dos seus pés. Édipo significa "Pés Inchados", por conta dessa mutilação. Como Steve Jobs, Édipo foi salvo por um casal de camponeses, uma gente simples que o acolheu e criou, dando tudo o que estava a seu alcance para aquele menino. Édipo cresceu e tornou-se um rei às custas de sua incrível inteligência, vencendo a Esfinge (A Microsoft? A concorrência?). Depois de feito rei, descobriu-se filho da sua esposa, Jocasta, e sucumbiu à própria ferida, arrancando os próprios olhos.
Édipo representa o Herói Ferido, que usa a própria genialidade para suplantar a sensação de seus pés inchados. Olhando de novo para o discurso de Stanford, tenho a incômoda impressão que aquele era o momento de Steve Jobs descer do trono, pedir o boné e se dedicar profundamente ao curtíssimo último trecho de sua vida. Mas não é fácil deixar de ser Rei. Todos lamentam a morte prematura de um homem que triunfou na selva do mercado. Eu lamento a morte de um homem que soube viver o seu mito pessoal.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

É Proibido Emagrecer

Há alguns anos circulou entre as moças de classe média uma estranha fórmula de emagrecimento, chamada de "Flor da Índia". A fórmula, escrita na sua etiqueta, tinha vários fitoterápicos. Os resultados eram impressionantes, o marido de uma cliente chegou a emagrecer 10 kg em um mês. Ela quase apanhou dele algumas vezes, mas o emagrecimento era impressionante.
Desde que a Psiquiatria entrou em sua era moderna, com o advento da Psicofarmacologia, que o ganho de peso virou um grande tema para nós. Para o Cérebro de uma pessoa em Depressão, está faltando comida, está faltando combustível. Quando o tratamento começa a fazer efeito, o Cérebro vai logo repor as energias perdidas, ganhando peso mesmo sem um aumento tão claro do apetite. a pessoa procura pelos doces, carbohidratos e chocolates como nunca dantes. Os remédios também, dependendo da dose e do tipo de medicamento, acabam contribuindo para o ganho de peso. Achar uma forma de evitar esse ganho de peso é o Santo Graal da Psiquiatria e da Medicina nessas últimas décadas. Pois lá fui eu pegar emprestado uns comprimidos do "Flor da Índia" para experimentar. O apetite desapareceu, a saliva também. Boca seca, insônia, irritabilidade. Mandei formular os ingredientes da fórmula em Farmácia de Manipulação idônea. Nenhum resultado além de uma sede constante e do aumento(!)do apetite. Óbvio que o tal de Flor da Índia tinha um componente que não nasce em flor, nem na Índia. Era evidentemente um derivado de anfetamina, Fenproporex ou Anfepramona, escondido atrás das plantinhas, como Lobo Mau esperando a Chapeuzinho. A novidade para mim era que aquele composto, associado aos fitoterápicos, parecia ter um resultado bem superior ao dos derivados de anfetamina sozinhos. A tal da mulher que vendia a bomba foi presa, o tal "Flor da Índia" desapareceu da conversa dos cabeleireiros, eu comecei a estudar e explorar o mundo dos fitoterápicos como auxílio e diminuidores dos efeitos dos medicamentos no ganho de peso. Nunca achei um que se comparasse aos anfetamínicos escondidos no remédio pirata.
Há dois dias a ANVISA tornou ilegal o uso dessas substâncias. Efeitos colaterais, falta de estudos controlados e uso indiscriminado na população foram algum dos argumentos usados. Argumentos pífios, mesmo um psiquiatra pode saber. Os resultados da Medicina com a Obesidade são piores do que com o Câncer. Os anorexígenos que a ANVISA está caçando aos tiros tem resultados melhores no sobrepeso e nos quadros de obesidade leve e moderada. Eles, junto com a Sibutramina, tem efeitos bem mais discretos e mesmo inexistentes nas obesidades mais severas, com o agravante de ter, nessa população, os efeitos colaterais mais importantes. Vamos prejudicar uma parte da população para proteger a outra, é esse o raciocínio?
Nessa última década o PT conviveu com uma oposição dócil e desnorteada. Pois a presidente Dilma, na figura de seus funcionários da ANVISA, pode estar finalmente ressucitando a oposição. Alô, partidos políticos: chamem o Spinão. Já vejo os slogans: "Vocês querem emagrecer? A Dilma não!"; "Campanha de Perpetuação do Diabetes: votem no PT e seus candidatos de peso".
Eu pouco ou quase nunca prescrevi esses medicamentos. Sei que o Brasil é campeão mundial da prescrição dos mesmos, sobretudo em laboratórios clandestinos. Quero, e me esforço muito, para crer que essa proibição derive apenas da estupidez de plutocratas que não atendem um paciente há muito tempo e acham que vão consertar o mundo. A lógica do: "Se não dá para fiscalizar, então eu proíbo". Há milhares, quiçá milhões de pacientes que se beneficiaram do uso consciente, controlado e com seguimento médico desses medicamentos, que agora estão sem opções de tratamento. Logo, logo, os "Flor da Índia" da vida vão estar passando de mão em mão nos salões de beleza.
Vamos fundar, então, o Partido dos Gordinhos, que, unidos, jamais serão vencidos.

domingo, 2 de outubro de 2011

Cada um com seus problemas

Juro que hoje, Domingão, eu estava pronto para fazer um texto mais leve. Ontem fui flagrado por uma amiga e médica fazendo uma fezinha na Megasena, mais uma vez infrutífera. Falei para ela que se eu ganhasse continuaria atendendo, mas só para me divertir. Iria trabalhar com o Tempo Lógico de Lacan, um método em que o analista interrompe a sessão na hora em que o paciente diz algo que atinge o Significante. Já imagino as sessões sendo interrompidas, o terapeuta vestido de Chacrinha ou de Sílvio Santos (mais uma vez a minha memória paradoxal dos anos 70) interrompendo a sessão com uma buzinada ou com gritos do Lombardi. Frases do tipo:"Eu quase não vinha hoje"; "Não tenho nada para dizer" ; "Tive um monte de sonhos mas não lembro de nenhum", seriam prontamente punidos com buzinadas e um gancho de desenhos antigos puxando o analisando de seu divã. Não ganhei na Megasena e vou continuar sendo um junguiano, paciência. Mas essa brincadeira me remete a um personagem cômico que estou trabalhando, Roberval, o terapeuta emocional. Roberval seria um vetusto psicoterapeuta, ou psicanalista (não sei se o leitor sabe mas as palavras não são um sinônimo), um homem conservador, que leva muito a sério a sua profissão e escuta. Tudo isso é abalado por repentes em que Roberval perde as estribeiras e fala uma barbaridade, do tipo: "Você acha que meu ouvido é penico?"; "O que te faz imaginar que eu quero ouvir essa bosta?"; "Ele não vai te ligar nunca, minha filha, você não se toca?". Depois desse breve momento de descontrole verbal, Roberval volta a seu comportamento circunspecto. Zuleide, a recepcionista que já não aguenta mais a rádio que só toca música clássica na recepção e aproveita as saídas do patrão para encher as caixas de som com Sertanejo Universitário (aqui entre nós, caros e fiéis leitores dessa coluna, que p...é Sertanejo Universitário?!), tenta explicar que seu patrão é ótimo e conceituado psicanalista, mas sofre de um leve Transtorno que o faz falar ou agir impulsivamente. Nada muito sério, o cliente ou a cliente precisam entender. É só de vez em quando. Bem, esse é o personagem, e se alguém está pensando na influência do "Analista de Bagé" e de Luís Fernando Veríssimo, bingo (só que agora é anos 80, minha gente). Bem, se a inspiração se mantiver, poderemos estrear Roberval em outro Domingão. Porque a realidade supera a ficção. Fui levar meus moleques no Aeroporto hoje pela madrugada e vi cartazes com o lançamento do novo livro de um conhecido autor de autoajuda. Esfreguei os olhos, meio turvados pelo sono para ver se o título era aquele mesmo. Era. Atenção galera: "Problemas? Oba!". O que? Problemas, oba? É isso mesmo? Isso é o início de uma trilogia, do tipo "Estou com Câncer, tesão!!", ou "A minha mulher me chifrou: Supimpa!"??! Os meus poucos e fiéis leitores são testemunhas do meu esforço em manter um tom positivo e propositivo para esse blog. Não meto o pau em colegas e quando comento as suas pataquadas evito citar nomes ou apontar dedos. Mas essa foi demais! Estragou a estréia do Roberval. Não é possível infantilizar assim o seu público. Não é possível que o discurso desses "Consultores Motivacionais" vão chegar a esse nível de emburrecimento. Já imagino as palestras, o Grande Motivador fazendo a sua platéia bater palminhas e gritar : "Que venham os problemas, estou super motivado!!". Todos batendo palminhas ao som do tema do Sílvio Santos (de novo, os anos 70): lai la larai, lai la larai...
Deus me livre de desrespeitar a inteligência dos leitores. Deus me livre dos livros que não li e não gostei. Bom Domingo.

sábado, 1 de outubro de 2011

Shifters

Peço desculpas por mais um título em Inglês. Alguns termos não encontram bons equivalentes em Português. Caetano dizia que só é possível filosofar em Alemão. Não conheço a língua germânica para poder avaliar a afirmação\brincadeira de Caetano, que perdeu muita força como provocador cultural nos anos zero zero, mas esse é outro assunto. Estava lendo uma notícia no portal UOL, que estudos com um cogumelo alucinógeno, muito familiar aos feiticeiros mexicanos, o psylocibe, produz mudanças na personalidade das pessoas que o experimentam, pessoas sem histórico de uso de drogas ou de dependências. As pessoas, após a experiência psicodélica passam a ter uma mente mais aberta, uma atenção mais difusa e uma abertura a o que chamamos de um mundo espiritual, pode-se assim dizer. Não tomei contato com o estudo e já posso imaginar uma ampla maioria de colegas da comunidade científica torcendo o nariz imediatamente e pensando que isso é uma bobagem riponga deslocada no século vinte e um.
Para quem não sabe, na década se sessenta houve o florescimento de uma tendência, o do estudo dos estados alterados de consciência. Os estudos foram muito baseados no LSD, uma dietilamida sintetizada artificialmente que hoje circula em nossas raves e baladas. Aliás, ontem mais um moleque saiu da balada em um carro possante e saiu dando batidas a 200 km por hora na cidade. Não parece uma coisa alcoólica, apenas, como a mídia e a polícia insinua. Lembra mais uma balinha de Ecstasy, ou várias. Mas não estou falando de balas, estou falando de doces, na linguagem dos baladeiros. Os estudos com LSD demonstravam visões e períodos imensos em outro espaço-tempo que produziam experiências de transformação profunda nas pessoas. Como uma experiência espiritual que muda o rumo e a visão de vida de uma pessoa. É lógico que algumas pessoas não voltavam tão bem da experiência, os estudos foram proibidos e desacreditados em todas essas décadas. Esse estudo com o cogumelo dá uma cutucada nessa ferida.
Já escrevi muito sobre isso no mês passado, com os títulos de Mudança. Todos os dias tentamos mudar, melhorar algo em nós e no mundo. Acabamos nos deparando com a repetição boçal de nossos velhos esquemas e neuroses. Nesse fim de semana, vamos desperdiçar a dieta dos dias "úteis" em alguma churrascaria rodízio ou festa de criança. Na Segunda Feira vamos prometer que dessa vez a dieta vai ultrapassar o próximo final de semana. Vamos pagar a matrícula em uma academia que não vamos frequentar ou tentar, mais uma vez, parar de fumar. Sem sucesso. Temos os nossos esquemas, nossas redes neurais espalhadas em hábitos que somos impotentes em mudar. Os "Shifters" são situações ou vivências que realmente mudam a nossa situação. Um choque emocional ou cognitivo que realmente chacoalha o coreto e nos coloca em contato com outras formas de pensar ou perceber o mundo. A psicoterapia busca, sem dúvida, criar uma situação psíquica propícia ao "shifter", à mudança de nossos velhos esquemas e dependências em outros esquemas, mais amplos, mais autõnomos, mais maduros. É o mesmo efeito que as pesquisas com os tais cogumelos estão visando. Isso significa que vou plantar cogumelos no jardim de casa e usar em psicoterapia? Não. Não é isso. Isso significa que um bom terapeuta deve estar atento a toda oportunidade em que os velhos esquemas mentais são chacoalhados por um shifter, para libertar os pacientes de seus velhíssimos medos e suas velhíssimas dependências.