domingo, 30 de outubro de 2011

David

Ontem fui a uma festa de criança, coisa que me é normalmente um suplício. Os salgadinhos gordurosos e irresistíveis, que sempre me dão azia, a cerveja morna depois de rodar as mesas, o papo furado com aqueles primos que você só encontra em festinhas, casamentos e funerais (não necessariamente nessa ordem); bem, não é a minha idéia de divertimento. Mas vamos, em consideração com a amizade, o carinho de alguns abraços, e, quer saber, acaba sendo divertido. Fiquei sabendo, na festa, que um amigo está pensando em fechar o consultório. Esta é uma notícia que está ficando quase comum. Em seis meses é o quarto médico de ótimo nível querendo pendurar o carimbo e a caneta. Por que será?
Estamos numa sociedade de hiperconsumo, o psiquiatra virou um bem de consumo como outro qualquer. Outro dia atendi um rapaz, com crises de Pãnico graves e impossibilitantes, um quadro desencadeado por vários estressores, inclusive um chefe abusivo. O cara estava quase pedindo as contas, do trabalho e da vida, com alguns tratamentos mal sucedidos. Começamos mexendo aos poucos, mas decisivamente, na conduta. O quadro foi melhorando, com chuvas e trovoadas, ele voltou a sorrir e a se organizar, retomou o trabalho e sua autoestima. Sumiu. Foi continuar o tratamento em algum colega, talvez mais barato, talvez mais próximo de sua casa. Foi embora sem nenhum tchau ou muito obrigado. Eu costumo dizer em tom de brincadeira que psiquiatra não tem coração, para não se magoar com esse tipo de atitude. Mas o fato é que o embrutecimento das relações humanas não haveria de poupar a prática médica. Está com o nariz escorrendo? Vai, assoa no psiquiatra e quando estiver melhor, um abraço. É lógico que esse comportamento não é a regra, felizmente, não há dia que não seja repleto de sorrisos e de gratidões, de ambos os lados da escrivaninha. Mas essa brutalidade vai minando muitos colegas que preferem uma função mais protegida, mais técnica, longe do corpo a corpo da clínica.
Em Junho desse ano morreram dois psiquiatras por quem eu tinha o maior apreço: Marcos Mercadante e David Servan-Schreiber. Dos dois, conhecia pessoalmente o primeiro, apenas. Ambos na faixa dos cinquenta anos, da qual me aproximo. Dá um frio na barriga saber que o estresse de nossa carreira pode ter sido um fator nas duas partidas prematuras.
Esse blog já citou e homenageou os dois livros de David: "Curar" e "Anticâncer". Neste final de semana, li em duas sentadas o seu livro/despedida: "Podemos dizer adeus mais de uma vez". David morreu de um Glioblastoma, tumor cerebral que costuma ceifar a vida de seus portadores em até seis anos. David viveu com ele por vinte anos, escreveu os seus livros, divulgou as suas idéias nos vários países onde foi publicado. Acho que esse livro vai vender muito menos, por ser um relato doce e poderosíssimo de alguém que tenta compreender a própria vida e a própria morte. Não é um tema muito popular, embora a sua leitura me encha de esperança e de orgulho desse cara. Como homem e como colega.
A Ciência busca ávidamente formas de prolongar a vida e erradicar a morte, como se ela fosse o pior dos parasitas. David transformou o seu relato numa dança com o que o poeta chamou da "indesejada das gentes". Com algum medo, e muita ternura.
De qualquer forma, se algum conhecido ou cliente ficar preocupado com o tom algo melancólico desse post, não se preocupe. Amanhã cedo já vou estar atendendo, cuido razoavelmente bem da minha saúde e continuo adorando clinicar.
Boa semana para nós.

Um comentário:

  1. Não, doutor! Não foi só o Psiquiatra que virou um bem de consumo como outro qualquer.Estamos todos virando bens de consumo.
    Infelizmente.
    E vamos tentando identificar quem nos enxerga como gente de verdade.É dificil de encontrar.
    Quem sabe se cada um de nós nos olharmos assim?
    Só para inovar!Fazer a reciclagem.Voltar a ver o ser humano como humano.Sobretudo...com respeito.

    Abraços,
    Sonia

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