domingo, 27 de agosto de 2017

Millennials

O paleontólogo Jay Gould descreve a evolução das espécies em períodos longos de estabilidade, até a eclosão de uma catástrofe, quando muitas espécies desaparecem, mas há um salto de criação na natureza, com a formação de novas espécies que evoluem muito mais rápido do que se esperaria por mecanismos darwinianos. Isso abole a evolução cega e aleatória proposta por Darwin: existe uma inteligência evolutiva, um vetor invisível no processo. Traduzido em termos atuais, quem se reinventa, evolui e prospera, quem estaciona, perece. A tal história do ideograma chinês para Crise, onde perigo e oportunidades estão no mesmo símbolo, se aplica. A transição é o momento de maior perigo. Uns crescem, outros sucumbem. É um período de perda e de oportunidade.
Muito tem se falado sobre os milennials, a geração nascida no entorno da virada do século. Como eles são diferentes e desadaptados ao nosso Hipercapitalismo. Respeitam pouco a autoridade, não tem paciência com os processos e querem resultados e gratificação rápida. Pelo ângulo de visão dos tiozinhos, como eu, são mimados pela geração de pais que aderiram à infantolatria, a adoração das crianças e da infância como território mágico de prazer e ausência de frustração. Criamos então uma geração de mimados e idólatras, que se acham pelo simples fato de estarem no mundo? Tudo deve ser resolvido em cliques e recorta e cola, sem demandar esforço ou reflexão? O Princípio do Prazer se sobrepõe ao Princípio de Realidade, ou a Realidade, como entendemos, deixa de ter o primado da Existência?
E se essa geração vem para fundar outros jeitos de estar no mundo? A Era Digital criou uma crise gigantesca no mundo. Nada ficou intocado. Profissões deixam de existir, nichos de mercado desaparecem, os velhos sistemas de controle se tornam mais intensos e fascistóides. Vivemos a ditadura da superfície, perdendo o que nos torna humanos, que é a capacidade de reflexão?
Os milennials não se adaptam a empresas tradicionais, com horários fixos e chefes engravatados. Buscam os processos mais rápidos e fluidos, as microintervenções e a criação de grupos operativos horizontalizados. É a decadência da Imago Paterna, ou a glorificação definitiva de um único Pai, como um profeta dos novos tempos. No filme Steve Jobs, esse paradoxo é exposto em DRs intermináveis sobre essa metáfora paterna. Steve Jobs está lançando o iMac, e é tratado como um deus e profeta pela sua legião de fãs, mas é confrontado nos bastidores por sua filha, Lisa, para quem foi um pai ausente e autoritário. Essa dualidade é muito bem exposta, entre o profeta da Era Digital e o Pai odiado por filha e comandados. Um engenheiro chave de sua revolução digital fala isso com todas as letras: sempre te odiei, a o que Steve responde que isso é uma pena, pois sempre gostei muito de você. O Millennial ama o profeta e odeia o Pai que lhe força a crescer.
Se a nossa vida é uma jornada, onde períodos de estabilidade são seguidos por violentas crises de mudança e transformação, os terapeutas tem sido chamados cada vez mais para ajudar esses millennials a fazer a sua transição. Alguns amigos e colegas tem pedido a nossa ajuda para olhar por seus filhotes a fazer essa caminhada entre uma vida protegida da infância e da adolescência para um mercado selvagem na vida adulta. O meu mestrado foi em Psiquiatria da Adolescência, o que é segredo, porque pessoalmente acho um pé no saco as mães chorosas e os pais omissos dos adolescentes disfuncionais. Sempre atendi mais adultos e idosos. O fato é que acabei me ferrando, vinte anos depois do Mestrado, pois a Adolescência se deslocou para o período entre os vinte e os trinta anos da galera. Eles são os atuais adolescentes, que exprimem em carne viva as dores do mundo. Eu sobrevivo ao meu “castigo” tentando entender a sua mensagem, o que eles estão percebendo nesses novos e acelerados tempos que as velhas fórmulas e os velhos entendimentos arquetípicos não dão mais conta. Ajudo os filhos dos outros e rezo para que ajudem meus filhos nessa travessia cheia de perigos, mas que é mais difícil, ou impossível, para quem se acovarda ou foge à luta.
Os millennials podem trazer um mundo mais colaborativo, menos consumista, mais ligado no tempo do Hiper Presente e menos alienado de valores e propósito. Em vez de censurar e torcer o nariz, é melhor acender os ouvidos e os olhos para o que está vindo. Porque estamos numa crise evolutiva daquelas. As pessoas entre dezoito e vinte e cinco anos são um grupo de risco nessa crise. A Psiquiatria e os economistas estão demorando a enxergar essa situação. Pais, terapeutas, lideres, empresas, devem parar de chorar as pitangas e tentar ajudar essa turma a nadar até encontrar terra firme. Ou meio firme.

domingo, 20 de agosto de 2017

As Pontas do Mundo

Um lugar comum de entrevistas de emprego e de Coaching é a tal pergunta: “Como você se enxerga em cinco anos?”. Eu consigo entender que a construção de planos ou de intencionalidades seja importante. Até o delinear de um prazo, também é ok. Mas talvez a maior fonte de sofrimento humano seja a perspectiva de enxergar os próximos anos e ter que ter um plano, um projeto, uma garantia. Os planos macro sepultam o entrelaçamento de pequenos momentos que compõe o que temos, que é a infinidade de aqui agoras que vão se bifurcando em quase futuros. O Macro é inimigo do Micro. Nosso Cérebro caça regularidades e garantias. Foi projetado para isso. Nossa tarefa é reprogramá-lo.
“A vida é o que acontece enquanto você está fazendo seus planos”. Essa pode ser uma boa resposta para a tal pergunta de manual de autoajuda, ou de estagiária de RH: espero que a vida aconteça enquanto os coachs programam o futuro. A vida corre nas bordas do que se espera dela. Eu me vejo em cinco anos tentando arredondar as pontas do mundo, como faço hoje. Todo dia.
Fiquei bastante tocado com uma matéria da Folha, de alguns anos atrás, em que uma moça de origem muito humilde descreveu como ficou feliz após tornar-se budista. Ela era faxineira, e a principal descoberta foi que podia ser muito feliz sendo faxineira. Tornou-se uma profissional cuidadosa e sentia que cada movimento da vassoura tinha significado e devia ser caprichado. Em vez de fazer planos de carreira, como virar a Faxineira das Estrelas ou lançar alguma marca de pano de chão com a sua grife, tratava de estar presente em cada momento de seu dia. Em vez de fingir que limpa e tentar se livrar do serviço o mais rápido possível para poder voltar a viver fora da casa da patroa, ela consegue tirar um grande prazer em fazer o seu trabalho direito, sem checar seus e-mails ou postagens no Face a cada doze segundos. A vida é o que acontece quando você não está postando nas redes sociais. Se antes o Futuro nos roubava uma imensa parcela de nosso presente, agora o Presente se nos escapa na tentativa de atualizar o Passado. Postamos o que comemos, onde estivemos, quem apareceu na Selfie. O postar das fotos e dos comentários é uma constante luta para registrar o que já passou e ou ler os comentários que funcionam como um Espelho. Recebo um like, logo existo. Vou para lugar nenhum, com muitos seguidores.
A meditação é, entre outras coisas, uma disciplina para entrar na cascata infinita de aqui agoras entre uma respiração e outra. Uma boa sessão de terapia é uma tentativa de entrelaçamento delicado do que me torna e me impede. Uma trama delicada de lembranças, associações e novas sínteses. Liberamos as dores e os falsos programas de vida, revemos as crenças para construir não outro Futuro, mas outro estar no mundo. Um novo e renovado compromisso com estar no mundo.
Uma personagem da série Big Little Lies descreve o choro de seu bebê ao nascer. Ela pede perdão por tê-lo trazido ao mundo, tendo sido concebido por um estupro. Ela sente na criança um horror de vir a esse mundo, e quase se arrepende de ter levado a gestação até o fim. Na série, ele é um menino doce que sempre é acusado de estar machucando uma aluna. Uma boa terapia poderia ajudar a criança e sua mãe de desembaraçar essa fantasia, construir uma nova história fora desses territórios de violência. A mãe tem a fantasia de que o filho vai herdar a violência de seu pai, o menino sofre com isso sem perceber. A mãe constrói sem perceber tudo aquilo que pretende evitar.
Tentamos desembaraçar essas tramas de passado, esses medos do futuro, enquanto a Vida acontece indiferente a todo esse labirinto de blá blá blás. Como dizia um mestre zen, meu cachorro não está nem um pouco preocupado com o sentido da vida. E eu diria, nem como vai se enxergar daqui a cinco anos.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

De Alma e Sentido

No post anterior acabei falando da palestra de Mia Couto e sua advertência sobre não perder a Alma para atender as pessoas. A Medicina deveria ser exercida com Alma. Isso não dá para se ensinar nas cadeiras da Faculdade de Medicina. A Alma não aparece nos microscópios, nem nos aparelhos de Ressonância Magnética. Se está fora da Física, então é Metafísica. Se é Metafísica, é lixo, perante a Ciência Materialista. Pois a Ciência Materialista é como o governo Temer, demora para morrer. Se Einstein cunhou no início do século passado a equação da Relatividade, em que matéria e energia são estados diferentes de condensação e se complementam, ou seja, a matéria em si não existe, então, tecnicamente a Ciência Materialista bateu as botas nessa ocasião. Sem mencionar a Física Quântica, que jogou outras pás de cal. Mas esse é outro assunto.
A entrevista psiquiátrica foi substituída pela aplicação de escalas padronizadas, visando quantificar sintomas e achados para um diagnóstico menos subjetivo. Isso criou a Torre de Babel de escalas, competindo entre si como youtubers tentando ganhar um nicho de público. Isso significa a perda da Alma na entrevista. Lembro de uma consulta em que a cliente me descrevia detalhadamente a sequência de perdas dos últimos anos de sua vida: mudança de emprego, perda de sua mãe e tia depois de longo processo de doença, mudança de casa, desadaptação ao chefe. Uma odisseia moderna que chamamos de crise de meia idade. A sua descrição era detalhada e mostrava como tinha atravessado toda essa sequência de lutos e se organizado internamente em sua nova vida. Só estava com problemas para dormir, daí a consulta. Se ela tivesse sido entrevistada por um computador, digo, por uma escala padronizada, teria o diagnóstico de uma Reação ao Estresse, em curva de recuperação. Só faltou um detalhe. Durante a entrevista, a sua fala lógica e articulada transmitia em mim (veja o pronome, “em” mim, não “para” mim) uma profunda, cortante sensação de tristeza. Depois da tristeza, um cansaço, mas não um cansaço físico, um cansaço de Alma. Como uma vida em preto e branco. Os outros parâmetros clínicos estavam ok e ela estava vivendo bem. Era uma pessoa “funcional”, outro critério derivado da Revolução Industrial para medir a melhora do paciente: ele funciona? Está em condições de pertencer à Sociedade de Consumo? Então beleza. Pois ela estava bem e funcional, com uma dificuldade em dormir que parecia de fácil manejo. E o contato com ela transmitia uma profunda tristeza. Falei com ela sobre isso e introduzi um medicamento para esse estado de esgotamento, que fica sob o guarda chuva da Depressão. A resposta clínica foi impressionante até para mim mesmo, que levantei a hipótese diagnóstica. Felizmente ela aceitou a hipótese e tomou a medicação. E foi como enxergar colorido de novo.
A Alma está conectada com o Cérebro Emocional. Está diretamente correlacionada com nossa capacidade de sentir. Sentir a mim mesmo, sentir o outro. A virtualização do mundo está amortecendo a capacidade de sentir. O luto passou a ser uma foto ou desenho em redes sociais. A solidariedade é uma mensagem inbox. Tudo rápido, um clique e já vamos rir de um vídeo engraçado. A perda da Alma se relaciona à perda da temporalidade do corpo. Sim, porque é o Corpo que gera as sensações de Alma. O neurocientista Antônio Damásio formulou essa teoria, do Marcador Somático. Nosso Cérebro é moldado e se organiza pela sensação primeira de ter um corpo e, dentro desse corpo, tem uma mente que pensa e sente. Pensar e sentir são atividades integradas, que o autor desse post chama de Pensentimento. A Alma se localiza na fenda entre Pensamento e Sentimento, mas começa e termina na Sensação e no Sentimento. A Neurociência diria que se funda nos Neurônios em Espelho, que nos permitem bocejar quando alguém boceja e também sentir a dor do Outro quando o Outro não consegue mais sentir nada.
Salvo engano desse escriba, no Juízo Final dos Egípcios, após a morte, a Alma Imortal do finado ou da finada era pesada numa balança. O peso a ser medido deveria ser o da quantidade de vivências e de participação efetiva na vida que a pessoa conseguiu ou não, adquirir. O peso da alma talvez fosse medido pela capacidade de ver com os olhos do coração. E na quantidade de amor vivido e gerado. Isso parece um mambo jambo metafísico para a Ciência Materialista. Mas a matéria nem sequer existe, não é mesmo? Colocamos a alma naquilo que faz sentido. Procuramos então por Alma e por Sentido.

domingo, 6 de agosto de 2017

Morrer de Alguém

Mencionei em post anterior uma palestra do escritor moçambicano/português Mia Couto no Brain Congress em Porto Alegre, em Junho desse ano. O fio condutor de boa parte da sua exposição foi sua experiência, na África, com um caçador que estava perdendo a visão mas ainda assim conseguia enxergar o rastro da caça com os olhos de seu coração. Mia Couto ficou tão tomado pelo encontro que marcou uma consulta com uma oftalmologista na África do Sul, tentando socorrer o amigo. No dia da consulta, compareceu o irmão do tal homem, que “tinha os mesmos olhos”. Mia imaginou que, já que o homem falava e vivia no meio de metáforas, aquela fosse apenas mais uma verdade simbólica que não era verdade no mundo real. Mas estava enganado. A médica observou que a degeneração da Retina do homem que foi, o paciente “errado”, tinha base genética e tiraria a visão dos dois irmãos. Mia concluiu que realmente tinham os mesmos olhos, que compartilharam a luz e agora adentrariam juntos o escuro. Quando pode voltar a visitar a África, não se sabe quanto tempo depois, o escritor recebeu a notícia que o velho caçador havia morrido. Como bom ocidental e bom curioso, quis saber do que o homem tinha morrido. Como essa cultura vive por meio de metáforas, disseram que ele não havia morrido de algo, mas de “alguém”. Quando uma pessoa morre, morre pelo caminho de alguém. Como já escrevi no post, lembrei muito de meu pai nessa palestra. Meu pai morreu “de” minha avó. Minha avó morreu da morte de sua mãe. Aos oito anos de idade, seu mundo desabou com a morte prematura de sua mãe na era pré antibióticos, e a menina que seria a minha avó viu seu pai cair no mundo e foi mandada com sua irmã para o Colégio Interno. Ser mandado para o Colégio Interno era a ameaça fantasmagórica de muitas infâncias antigas. Os pais, quando perdiam a esposa, não se viam na obrigação de cuidar dos filhos. As crianças órfãs eram distribuídas entre outros familiares ou entregues para a criação de padrinhos. Chico Xavier viveu e morreu de sua mãe, também falecida precocemente. A sua mediunidade se manifestou muito cedo quando justamente conversava com a sua mãe, enquanto sofria abusos na mão de uma tia amarga e violenta. O fato é que minha avó passou a vida com medo de ser roubada, com medo de perder tudo o que tinha. Quando ela morreu, foi um grande trabalho a limpeza de seu apartamento. Ela guardava de tudo, barbantes, papeis de presente, caixas. Hoje seria medicada como acumuladora. Ela ficou a vida toda temendo que a vida lhe desse outra rasteira. Meu pai internalizou profundamente esse medo e também buscou defender-se do devir, buscar a segurança e evitar as altas e as baixas das marés da vida, que sobem e descem para todos. Esse medo teve um papel importante na sua morte prematura.
Morrer “de alguém”, então, é uma percepção profunda e metafórica da Ferida Arquetípica que nos constitui. O tal do Pecado Original, na minha opinião, é exatamente esse: é vir ao mundo com a tarefa de cuidar da ferida de seus antepassados, sua cultura, sua história. A sensação mais triste do Ego, que é a da Separação. Nosso mundo darwiniano reforça nas pessoas a sensação de solidão e de Separação. Chico Xavier encontrou em seu mundo interno o caminho de sua mãe. Teve sorte de viver em outro tempo, pois no nosso seria medicado e diagnosticado com Esquizofrenia Infantil. Eu prefiro imaginar que ele achou dentro de si o que buscamos em nossas terapias, que é cuidar da ferida para não morrer dela. Evitar de morrer da ausência de alguém que pode nunca ter partido.
Mia Couto fez uma recomendação muito séria para a plateia de psiquiatras, neurologistas e neurocientistas que bebiam de suas palavras: nunca percam a sua Alma no lidar com os seus pacientes. Nunca esqueçam da imensidão que é a vida de cada um. Eu diria para ele que a grande questão é estar junto quando se atravessa grandes desertos no escuro. Isso é clinicar com Alma.