sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

O Sonho do Carpinteiro

Já vou avisar aos poucos e bons leitores desse blog que não vou engatar em mais uma conversa de Natal sobre aumento de risco de violência e suicídio nessa época do ano. Igualmente, não vou repetir que é uma época que os psiquiatras deveriam estar de plantão. Mas, sobretudo, não vou discorrer sobre a Mitologia do Nascimento da Criança Divina. Para isso, sugiro um pulinho nos posts de Natal anteriores. São mais de quinhentos posts, vários assuntos e piadas se repetem de maneira inevitável, mas não hoje. Vamos dar uma pausa nos panettones e comerciais de famílias unidas em torno do Perú Sadia.
Vou me deter no sonho de José, um rapaz que desconfiava seriamente da versão de sua jovem noiva, de que recebera a visita de um anjo que lhe anunciou o nascimento de um menino, chamado Emanuel (que significa Deus-Conosco). Ela receberia em seu ventre esse menino que vinha para salvar o mundo de seus pecados. Na época não havia internet nem whatsapp, muito menos maridos traídos destruindo o carro do amante da mulher na porta do Motel. José não podia produzir um vídeo para se tornar viral nos celulares da Galiléia. Felizmente para a sua pequena Maria, para quem a acusação de adultério poderia terminar na morte por apedrejamento ou na desgraça para si e sua família, José não foi estúpido nem narcisista para expor publicamente seu drama privado. Mas o jovem carpinteiro não estava realmente feliz com a história. Não pretendia criar o filho de outro, mesmo que o Outro fosse o Espírito Santo em pessoa. Aliás, o próprio filho traria a manifestação do Fogo de Pentecostes trinta e poucos anos depois, então José não conseguia entender aquela história. Planejou, em suas noites insones, que iria deixar a sua noiva, atraindo sobre si a culpa pelo malfeito. Isso acabou por tranquilizá-lo, pois achou a solução de perfeita lógica: não criaria um filho bastardo, mas não causaria a morte de sua noiva. Era juntar uns trocos e iniciar nova vida em outro lugar. Foi assim, mais tranquilo, que acabou dormindo. Sonhou com a visita do Anjo, que lhe avisou que não deveria abandonar a moça nem seu bebê, mas, antes, protegê-los, pois aquele nascimento corria muitos riscos. Deve ter dado uns chacoalhões em José, que acabou aceitando a tarefa.
Apesar de prometer que este post iria fugir dos temas natalinos, acabei caindo no sonho de José. Isso foi inspirado na pauta de uma jornalista, que me perguntou na diferença entre uma leitura freudiana ou junguiana dos sonhos. Vou usar o sonho de José como base, embora já tenha alertado em outros posts para os riscos de psicologizar temas mitológicos.
Uma leitura freudiana diria que o tema do sonho, o encontro com o anjo, tinha uma forte relação com o relato de sua noiva: como os sonhos manifestam os medos e os desejos inconscientes, José manifestou em seu sonho seu medo de sua própria agressividade com a sua futura esposa e filho. Um junguiano diria que a gravidez de sua noiva ativou o arquétipo do Pai Terrível, que pode se manifestar com o abandono de seu filho e família. Bem sabemos que diariamente muitos Josés deixam as suas Marias e filhos abandonados à própria sorte.
O sonho, voltando a Freud, seria a manifestação de sua culpa reprimida e de seu Superego chamando-o à responsabilidade, o que ele acatou para não viver imerso na culpa para sempre. E para um junguiano? Bem, aí a coisa complica.
Para um junguiano, o Anjo representa o arquétipo da Totalidade, o Self. O Self, que não deve gostar de selfies, se manifesta com toda a intensidade nesse momento crucial e joga José para fora dos jogos mentais e para dentro do Mistério. Ele deveria aceitar a tarefa e proteger aquela criança, para sempre. Essa era a sua missão, mesmo que não conseguisse entendê-la. O Self aponta para o significado profundo e inatingível para o Ego de determinada experiência. Ou decisão. Parece uma metáfora bíblica, mas representa aquela voz silenciosa que empurra a vida para decisões paradoxais, como continuar casado, ou seguir uma carreira, ou enfrentar situações onde tudo parece perdido, e triunfar. Lá no fundo pode ter um anjo assoprando: “Vai, não desista, não dê para trás agora”. Essas coisas que parecem misticismo e crendice para nossas mentes científicas, mas não deixam de existir.
O sonho freudiano vai investigar os conteúdos reprimidos em nosso Inconsciente. Suas leituras são válidas em muitas situações e podem representar uma camada de nosso Cérebro que precisa ignorar alguns medos e agressões para seguir a vida, mas em algum momento precisa recuperar o que está enterrado. Talvez o medo de José de assumir aquela paternidade tivesse uma razão mais profunda, da memória de um pai ausente, ou violento, por exemplo.
O sonho junguiano conecta José com todos os pais que, em determinado momento de sua vida, tiveram vontade de deixar seus filhos e família e voltar para uma vida sem responsabilidades. Conecta o jovem carpinteiro com todo homem que assumiu inteiramente a responsabilidade de proteger e criar os filhos que nem sabiam se eram seus. Homens que sacrificaram uma parte considerável de suas vidas a proteger seus filhos e família, mesmo que para isso tivessem que atravessar um deserto.
As leituras são complementares, e não excludentes, como muita gente quer acreditar.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Mentalidade de Crescimento

Estava lendo um livro budista, chamado “Retornando ao Silêncio”, quando o autor citou a história de um monge, que era uma espécie de abade de um mosteiro budista, que ficou muito afetado por um incêndio que havia destruído uma ala do mesmo. O monge começou a repetir que desde a infância percebeu que simplesmente não tinha sorte. As outras pessoas eram mais afortunadas, enquanto ele parecia sempre precisar se esforçar mais e tropeçar em infortúnios que atrapalhavam a sua vida. O tal do abade foi afundando nessas ideias negativas, ficando cada vez mais triste e ensimesmado. O mosteiro foi minguando junto, com jovens monges procurando outros lugares para a sua formação. O abade acabou por adoecer e morrer. Estudos mostram que as pessoas podem literalmente morrer com a Síndrome do Coração Partido, onde uma onda de tristeza e depressão pode afetar a variabilidade dos batimentos cardíacos, uma medida de vitalidade e mesmo de longevidade. Batimentos cardíacos pouco variáveis estão correlacionados com menos tempo de vida, o que, infelizmente, pode ter encurtado a vida do monge. O mais angustiante para um psiquiatra que lê essa história é a percepção cristalina que o homem estava com uma Depressão, o que sem dúvida potencializou os seus maus pensamentos e aprofundou mais e mais a sua tristeza.
Rogério Ceni encerrou a sua carreira de vinte e cinco anos no gol do São Paulo. Ganhou todos os títulos, bateu todos os recordes e pendurou suas luvas como um dos maiores ídolos da gloriosa história tricolor. Pessoalmente, como analista junguiano, sei que esse aspecto luminoso carrega em si a sua Sombra, e que nos últimos anos esse Mito, como passou a ser chamado pela torcida, pode ter sido um problema mais do que uma solução, mas não vou me deter nisso. Rogério era um menino que veio de um pequeno clube, o Sinop, do Mato Grosso do Sul. Um time inexistente. Veio morar no Morumbi, onde morava outro Mito , Telê Santana. Com ele, Rogério aprendeu algo muito importante para os vinte e cinco anos seguintes: a importância da repetição infinita para chegar perto da perfeição. Com ele, Rogério aprendeu a chegar meia hora mais cedo e sair uma hora mais tarde do treino e, de um moleque bom debaixo da trave mas ruim de chutar a bola, virou o maior batedor de faltas da história, para onde passará como um goleiro artilheiro. Isso às custas de cerca de treinos e treinos que deixavam suas pernas doloridas. Rogério adquiriu uma característica de vários virtuoses em sua profissão, de músicos a atletas, de médicos e engenheiros: a obsessão pelo autoaperfeiçoamento, pelo aprendizado contínuo para atingir níveis cada vez maiores de domínio,(em Inglês, “Mastering”) de sua atividade. Se ele levar esta característica para a sua vida fora dos gramados, em vez de viver da memória que deixou dentro deles, com certeza vai continuar tendo curvas e curvas de aprendizagem e mastering do que quiser fazer.
As duas histórias, colocadas lado a lado, mostram dois caminhos paradoxais que podem pautar o nosso destino: uma pequena infecção psíquica, uma impressão gravada na infância do tipo “sou um azarado”, “não sou inteligente como os outros”, “as coisas não dão certo para mim”, pode ter um efeito devastador na vida de uma pessoa e seu destino. Talvez o seu efeito mais devastador seja criar uma espécie de Orgulho do Fracasso. Eu sou um fracasso e você pode fazer o que quiser que nada vai mudar isso. O fracasso pode virar uma forma de receber muita atenção e ter muita gente interessada em ajudar. O fracasso, pasme, pode ser uma forma de se criar uma identidade. Uma identidade depressiva, é certo, mas uma identidade. Nosso reizinho anão, o Ego, adora ficar dando voltas e voltas em torno dos fracassos. Virar um eterno café com leite pode ser uma falsa proteção. “Não esperem nada de mim”, diz o falso regente.
Na verdade, o difícil na prática clínica é mudar de um módulo para outro. A autoprogramação para o fracasso cria uma nuvem de lassidão e desânimo difícil de penetrar. Há circuitos projetados pela Natureza de bloqueio de reação, provavelmente para forçar alguém ao repouso. Antes da era dos antibióticos, a desesperança aprendida poderia ser uma defesa contra as doenças. Essa reação hoje pode ser contra um mundo, um mercado de trabalho muito hostil e perigoso. É melhor ficar refugiado em jogos online.
Imagino as noites que o jovem Rogério chorou ou teve medo de fracassar nos seus alojamentos. E que o fato de que, virar o melhor era a única opção de sobrevivência ajudou-o a procurar, procurar, até achar. Essa mentalidade de Crescimento já está sendo ensinada em muitas escolas americanas. Está na hora de ser ensinada em nossas famílias.

domingo, 6 de dezembro de 2015

No Meio da Luz e Sombra

O príncipe Sidharta, que viria a ser o Buda, conheceu os extremos da vida: da extrema opulência e riqueza de um príncipe para anos de meditação e rigor da vida ascética, vivendo na floresta comendo raízes e gafanhotos. Estava à beira do rio e ouviu um mestre orientando o aluno sobre a melhor afinação de uma corda, como de um violão: se ela ficar muito solta, não consegue produzir o som. Se estiver muito tensa, pode se romper. Para a adequada afinação, é muito importante o equilíbrio entre as duas polaridades. Sidharta atingiu imediatamente a iluminação, depois de anos de sofrimento e privação. Para atingir a Iluminação, são inúteis tanto o Sofrimento gerado pelo Rigor, quanto o Prazer dos sentidos e a excessiva indulgência. Estava descoberto o Caminho do Meio, o verdadeiro Caminho.
Para Jung, a imagem do Cristo na Cruz representa a Tensão de Opostos, a via crucis de nosso desenvolvimento. O formato da cruz representa a tensão eterna entre a espiritualidade que aponta para cima, e as necessidades humanas, que são paralelas ao chão. Como diria a música do Paralamas: “O Homem traz em si a Santidade e o Pecado/Lutando no seu íntimo/Sem que nenhum dos dois prevaleça”. Vivemos a Tensão eterna entre as necessidades de nossa vida consciente e a criação de uma vida interior; o Visível versus Invisível.
Já falei nos posts anteriores sobre a Função Transcendente. Ela se dá após um período em que a tensão parece infinita e sem saída. O choque de opostos também pode causar a Função Transcendente. É a tal Luta de Classes de Marx. Recentemente vimos em São Paulo uma tensão de opostos daquelas: o governo propôs uma reforma administrativa na Educação que fecharia escolas ociosas e separaria alunos do Ensino Fundamental e Médio. Os alunos e as famílias reagiram, com apoio das associações de professores e partidos de oposição. Andar em São Paulo virou uma aventura nestas semanas, com bloqueio de vias em pontos cruciais, parando a cidade. Barricadas de carteiras e cadeiras. E bombas de gás pimenta encima de crianças. Levou a pior o governador Alckmin, que viu a sua popularidade despencar e recuou. Mas as semanas de atrito levantaram questões de ambos os lados: se os alunos e os professores amam tanto as suas escolas e são capazes de tal mobilização, por que as notas de nossas escolas nos exames nacionais são tão vergonhosas? Se São Paulo investe mais do que qualquer estado da União, como que se pode melhorar os índices e as notas? A Associação dos Professores, que tem dinheiro para pagar propagandas em horário nobre, tem algo melhor a propor do que mais verbas para a Educação? As fragilidades de ambos os lados foram expostas: o governo com sua face autoritária e estúpida e o sistema da educação estadual, que tem escolas ociosas porque, quem pode, coloca o filho em qualquer lugar que não uma Escola Estadual, com honrosíssimas exceções. A Função Transcendente seria um pacto envolvendo todos para melhorar a educação, com os pais entrando no jogo. Ocupar as escolas não basta. Precisa ocupar os espaços vazios da aprendizagem.
Em nossa vida psíquica, os opostos se chocam e se alternam, como um movimento pendular. Alternamos períodos de otimismo e projetos ambiciosas com encolhimentos e medos quando as coisas não saem tão bem. Mas o método de tentar a síntese após choques violentos de polaridades, esse é um método estranho de resolver as coisas. O processo de Desenvolvimento implica numa desmontagem do Ego. Por que será que sentimos uma discreta (ou não tão discreta) satisfação quando vemos um banqueiro que se achava intocável e poderoso de camiseta num presídio comum? Vingança de pobre? Também, mas ele representa o Ego todo poderoso que é, abruptamente, reduzido à sua pequenez humana. A lei que, esta sim , vale para todos: ganhe Consciência ou fique preso nas suas Neuroses.
O Caminho do Meio foi descoberto há tanto tempo e é tão melhor que o choque de opostos. Jung teve muito trabalho com o Mito Cristão e a Alquimia para pesquisar sobre isso. Para nós que sucedemos a sua busca, mais de cinquenta anos após a sua morte, ainda trabalhamos com as pessoas na via crucis de suas dores e tensões de crescimento. Mas vamos encontrar o caminho, bem no meio das luz e da sombra.

domingo, 29 de novembro de 2015

Autoestima

Costumo dizer que Psicoterapia é tão fácil de fazer que até os terapeutas fazem. É claro que é uma piada. Como toda piada, com um fundo de verdade. Americanos estudam tudo e para tudo tem estatísticas. Fizeram um estudo com seiscentas pessoas que faziam psicoterapia, de todas os tipos, modelos cores e anos. Comparado com um grupo de pessoas que não faziam terapia, os terapeutizados demonstraram melhor índice de satisfação pessoal e capacidade de lidar com os próprios problemas. Isso contraria o senso comum que diz que para fazer terapia você precisa ser louco, ou problemático. Uma vez eu quase joguei uma supervisionanda da sacada porque ela afirmou que não sabia se levaria o filho para a terapia: "Não sei se ele precisa". Esse estudo confirma que a frase foi muito infeliz. Psicoterapia é no mínimo uma oportunidade de conhecimento de si, de sua história e da capacidade de escuta. Não é só a escuta do terapeuta que conta, mas o direito de se ouvir, de construir uma narrativa e poder escutar a própria voz dentro dessa narrativa. Isso cria insight, reflexão e,uma palavra que está muito na moda nas terapias cognitivas e que eu adoro, Modulação. Como estamos num mundo de desregulados, a capacidade de modular as respostas afetivas, emocionais e intelectuais é uma tarefa cada vez mais desenvolvida nas salas de terapia. Ou, pelo menos, deveria ser.
Escrevi há muito tempo sobre um sonho de Bel César, psicoterapeuta, budista entusiasta, e uma das pessoas que tenta uma aproximação entre a Psicoterapia e as práticas budistas. No sonho, ela estava condenada à morte e poderia fazer uma última declaração. Ela agradeceu às pessoas que haviam testemunhado a sua vida com compaixão. Não lembro a leitura que ela teve sobre o próprio sonho, mas lembro que fiquei arrepiado quando o li. Ele tocou numa verdade profunda da terapia, que é o Olhar do terapeuta, um olhar de testemunha compassiva. As pessoas pensam que compaixão é a capacidade de sentirmos pena, ou passar a mão na cabeça dos pacientes. Uma versão para disso é a fantasia que todo terapeuta deve tomar partido do paciente e melhorar a sua autoestima. Aí temos outra palavra espinhosa: autoestima. Já alfinetei muito a geração autoestima em outros posts, por isso vou me poupar neste. Mas vou abraçar temas mais difíceis, talvez: o que seria uma compaixão cabível e como uma terapia pode melhorar a autoestima?
Compaixão é, antes de mais nada, Atenção. Podemos olhar na rua, uma mãe com um bebê no colo, olhando para a tela do seu smartphone. Ou teclando enquanto dirige, com crianças no banco de trás. Ou no shopping, deixando a criança destruir a loja enquanto escolhe uma blusa. A Atenção é um artigo cada vez mais raro, talvez porque todos a disputem. Na sessão, o olhar do terapeuta é uma oferta de atenção. Compaixão começa por aí. Essa Atenção pode ser inédita nesse mundo de olhares cansados e voltados ao próprio umbigo.
Não é tarefa da terapia melhorar a autoestima do freguês. Não é tarefa tecer elogios nem tentar fazer o paciente tentar agradá-lo com os seus progressos. Autoestima é, antes de tudo, autoaceitação. Como Hillman disse, nossos problemas começam e terminam no Genesis. Já chegamos no mundo devendo: somos pecadores de cara e vamos pagar pelos pecados. Em algumas culturas, já chegamos com um carma coletivo para carregar nas costas. A psicoterapia permite visitar e compreender esses pecados que não cometemos, mas estamos sempre sendo acusados em nosso tribunal interno. Deveríamos ser mais magros, mais espertos, ter mais grana ou receber ajuda humanitária de algum senador do PT. Me ajuda, Delcídio. Antes da autoestima, temos o auto bullying. O terapeuta olha e trabalha encima do auto bullying. Já ajuda muito, antes de melhorar, parar de piorar as coisas.
Mas por que eu comecei este post brincando que é fácil ser terapeuta? Porque o simples exercício da escuta e do olhar atentos já permitem que a Psique comece a se organizar. Basta prestar Atenção e aceitar a realidade de nossa Imperfeição. Talvez nessa Imperfeição que esteja o verdadeiro brilho.

domingo, 22 de novembro de 2015

Amanhã

Prometeu era um Titã, irmão de Zeus. Como muitos, cobiçava o poder de seu irmão deus, o mais poderoso do Olimpo. Tentou ludibriá-lo divindo os despojos de um touro sagrado. Depois roubou o fogo dos deuses e deu aos homens. Passou a eternidade preso por correntes numa rocha. Durante a noite, os abutres lhe comiam o Fígado. Pela manhã, ele se renovava, para voltar a ser comido na próxima noite. Na Mitologia Grega, é muito comum o combate entre o mundo dos deuses e o mundo dos homens. Normalmente porque os homens tentam sobrepujar os deuses com uma invenção recente de nossa jornada evolutiva, que é a astúcia, a capacidade de esconder as nossas verdadeiras intenções e trapacear os deuses, o que sempre acaba sendo um mal negócio, já que os deuses tem acesso às verdadeiras intenções dos humanos. A maldição continua, entretanto, quando o homem e sua Razão tenta manipular o mundo à sua vontade, tentando operar na Matéria e duvidando de tudo que seja Metafísico, isto é, fora do campo do mundo físico. A Psique, por exemplo, que existe num campo paralelo e interdependente com o mundo físico, mas não faz parte dele, para muita gente, não existe, ou é um produto dos nossos neurônios.
Para um budista, a metáfora prometeica poderia facilmente representar a natureza impermanente da vida. Nossas aspirações prometeicas, de atingir o mundo dos deuses através de nossa astúcia e das capacidades da Mente terminam em um permanente sofrimento, que se renova o tempo todo. A Mente tentar superar o sofrimento é como tentar se levantar segurando os próprios cabelos. A Mente não pode curar a ferida que a própria Mente criou. Talvez por isso que a Psicologia Cognitiva esteja se aproximando do Budismo, através do Mindfulness. Determinadas memórias, determinadas feridas, não podem ser reparadas pelo entendimento. É preciso olhar para elas, integrá-las, para que possam, um dia, deixarem de doer ou mudar a sua característica. Jung chamou isso de Função Transcendente: a capacidade da Psique de saltar para além de seu Conflito, gerando uma nova síntese. Haveria como aproximar a Função Transcendente com o Mindfulness? Pensa esse escriba que sim.
O Mindfulness tem como princípio um treinamento constante em estar completamente presente no Presente. Nossa Mente divagadora está sempre preocupada com o Futuro, ou com o que ocorreu no Passado. Quando viajamos, levamos fotos e lembranças para podermos ficar presentes na recordação. Podemos viver então o vivido na hora que prestamos atenção ao que passou.
O Mindfulness tenta talvez provocar uma saudade do Presente. Um exercício usado em suas vivência é dar uma uva passa e pedir para a pessoa mastigá-la por uns cinco minutos, até ela se dissolver no ato de mastigação em si. Eu diria que é mastigar a uva passa com saudade dela, pois o seu gosto vai se transformando tanto durante o processo que as pessoas notam que nunca comeram verdadeiramente uma uva passa na sua vida. Ou talvez nunca tenha realmente sentido o gosto da comida e da vida.
Uma Psicoterapia de base analítica é, em grande medida, uma expedição ao Passado, onde as experiências lá vividas são recuperadas, muitas vezes revividas e colocadas em perspectiva. Só que não é a Mente que cura a Mente. O ato de Atenção a esses conteúdos e o Olhar do terapeuta sobre essas cenas faz com que mudem esses nós que se estabelecem em nossa Psique por tantos anos. Essa é a Função Transcendente: de repente, o que doía muito, já não dói tanto assim e os ressentimentos, tão longamente alimentados, deixam de ter tanto valor ou de ocupar tanto espaço na vida psíquica do paciente.
Como na música de Guilherme Arantes: "Amanhã/ Ódios aplacados, temores abrandados/ Será pleno..." Esse é um projeto terapêutico de cada dia: aplacar os ódios, abrandar os temores. Mas não será o Amanhã que será pleno. Será o Agora.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O Coração do Homem Bomba

Os textos desse blog frequentemente dirigem as suas várias estocadas para dois males correlatos de nossa modernidade (?): a Civilização Inflamatória e a Geração Autoestima, irmãs gêmeas na geração de doença e sofrimento. A Civilização Inflamatória se baseia na criação constante de fissuras e dependências: comer muito, beber até a embriaguez, consumir desenfreadamente. Tudo sofre dessa inflamação: a alimentação, as relações humanas, o envenenamento da natureza. Lembro de uma cena de "Wall Street: o Dinheiro Nunca Dorme", em que o jovem aspirante ao mercado financeiro pergunta ao seu chefe inescrupuloso: Qual o seu número? Qual a quantidade de dinheiro que finalmente vai deixá-lo saciado? Ou vai tirá-lo dessa roda viva? Mais. Essa é a resposta da Civilização Inflamatória: Mais. Mais dinheiro, mais poder, mais comida industrializada, mais estímulo, mais acúmulo de coisas, trecos, brinquedos para dar uma fugaz sensação de saciedade, que vai ser substituída pela busca do Mais. Quero Mais. As células respondem a essas mensagens. Acumulam gorduras, multiplicam-se, tornam-se indiferenciadas, os anticorpos se voltam contra elas. As Mentes inflamatórias criam as células inflamadas.
A geração autoestima tem também seus Egos insaciáveis. Egos siliconados e acelerados. Não interessam as capacidades de Ser, mas o que Parece. O teatro de Personas nas fotos fotoshopadas das redes sociais. Ninguém pode se frustrar. Toda Autoestima deve ser burilada e maquiada. As frustrações são punidas aos berros, imagina alguém interferir e arranhar a minha autoestima.
Engraçado como nas livrarias as prateleiras de Psicologia estão sendo tomadas pelos livros de Autoajuda: Livre-se de Seus Medos, O Seu Ser Magnificado, Essa sou Eu, Homens Gostam das Mulheres Poderosas. E por aí vai. Manuais para encontrar a Riqueza ou a Alma Gêmea. Salve-se quem puder: cuide de seus sonhos e corra dos vampiros de sua energia.
As pessoas vem ao consultório com medo de dependências: medo de ficar dependente dos medicamentos, do terapeuta, medo de não dormir mais sem remédio. Carregam cinco celulares, checam os e-mails, almoçam as bolachas da recepção e não conseguem silenciar os pensamentos, que dão infinitas voltas dentro de sua cabeça. Mas os remédios podem ser muito perigosos.
A Psiquiatria tenta acompanhar a Civilização Inflamatória com seus medicamentos. Medica demais, e mal. Todos estão acelerados, então explodem os diagnósticos de Bipolaridade e Deficit de Atenção e Hiperatividade. Não é por acaso que estes diagnósticos explodiram. Junto com os Transtornos de Sono. Tudo gira em torno da correria e das células inflamadas. Todos correm atrás de suas fissuras e dependências. Mas fazer terapia é coisa de maluco.
Os atentados terroristas do Estado Islâmico na França foram feitos por cidadãos franceses, recrutados pelos fundamentalistas. Fico pensando no tipo de desespero que move essas pessoas. O que elas estão querendo explodir? Para o que estão tentando chamar a Atenção? Nesse mundo em que todos cuidam do próprio prazer e do perfil no Face, essas pessoas vivem uma grande crise de nosso tempo, que é uma crise de Significado: o trabalho perdeu o significado, os políticos e os governos são esta piada, as próprias famílias se afundam nas telas dos smartphones. O líder fundamentalista nada de braçada no desespero e na exclusão. Oferece ao homem bomba significado, uma causa para viver e morrer por ela. Estou justificando os atos terroristas desses caras? Pelo amor de Deus... Estou tentando entender onde navegam esses recrutadores de jovens mártires. E posso dizer sem medo: eles navegam na Exclusão e na Indiferença. Essa é a nossa doença, que a Psiquiatria e a Psicologia devem arregaçar as suas mangas para tratar. É fácil plantar o ódio onde ninguém presta atenção ao Outro. O curador deve dar o seu olhar. A sua Atenção. E deve trabalhar as fissuras infinitas e os Egos vorazes. Está na hora de desacelerar e ter um Mundo Interno, para recuperar o Significado.

domingo, 15 de novembro de 2015

Ideologia

Há dez anos atrás estava no Congresso Brasileiro de Psiquiatria em Belo Horizonte e na porta do Centro de Convenções tinha um carro de som de um pessoal da luta antimanicomial protestando contra nós, psiquiatras vendidos aos interesses dos laboratórios, a máfia do Prozac, pode-se assim dizer. Eu acompanhava com algum interesse os discursos enquanto subia as escadas do predião antigo. Um rapaz de cabelo e barbas compridos tomou o microfone e relatou sua história de anos de tratamentos caros, quando foi diagnosticado como Bipolar e só fazia piorar. O seu equilíbrio só se estabeleceu quando finalmente alguém parou para ouví-lo e finalmente, compreender o que se passava com ele, libertou-se de toda a medicação e, provavelmente, do estereótipo de doente mental. Estou melhorando e dando um corpo ao seu discurso e omitindo os palavrões contra a máfia que estava naquele convescote psiquiátrico. Nunca mais fomos recebidos por esse carro de som em nenhum outro Congresso, o que eu acho pessoalmente uma pena.
Neste Congresso, dez anos depois, encontrei um velho amigo, com quem tramava contra a onda da Psiquiatria Biológica há muitos anos. Não ficamos muito animados em relembrar aqueles tempos. Parecia a música do Cazuza: "Meus heróis morreram de overdose/Meus inimigos, estão no poder...". Na verdade a história não é tão melancólica assim. Não temos tantos heróis nem tantos inimigos assim, os medicamentos são uma parte importante do arsenal terapêutico, mas a crítica daquele rapaz encima do carro de som continua muito, muito válida. Ficar avaliando os casos com escalinhas de sintomas é o fim da picada. Nada substitui a boa e velha Compreensibilidade, nada é melhor do que entender como aqueles sintomas se manifestam na vida da pessoa e achar um jeito de manejá-los. A palavra da moda: Modulação. O bom e velho Cérebro Racional tentando se haver com o mais antigo e contundente Cérebro Emocional. Ou a Emoção regulando a Emoção, com serenidade, afim de modular a melhor resposta.Mas no que essas velhas pendengas psiquiátricas interessam aos visitantes desse blog?
No último post escrevi sobre outra paciente com diagnóstico de Bipolaridade que mencionou a seu médico, em emocionado encontro, que na hora de maior aflição ouvia uma voz, ou uma presença tranquilizadora, falando para o seu interior que tudo acabaria dando certo. Ela ficou particularmente confiante quando foi ouvida por seu médico, que acreditou nela. Acreditou em sua vivência. Foi como se aquele estado caótico em que se encontrava tivesse começado a se autorganizar. O último post sugere que nosso organismo psíquico tem a mesma capacidade que nosso organismo biológico de se autorganizar e encontrar níveis progressivos de equilíbrio e complexidade.
Infelizmente, dentre tantas capacidades que a hipermodernidade está abolindo, a mais crucial é a capacidade de escuta. Para compreender, é preciso escutar. Com atenção. A escuta coloca esse sistema autorganizador em ação. Uma capacidade de olhar para si mesmo de fora e organizar os sentimentos é o resultado dessa autorganização. Há uma mudança muito grande de paradigma, entre achar que se tem uma doença crônica, que só vai piorar com o tempo, para um modelo em que o paciente aprende a modular a sua reação aos sintomas e a enfrentá-los.
Isso vale para muitas situações de nossa vida. É crucial saber se vamos ser vítimas das dificuldades ou vamos interagir com elas. O rapaz encima do carro de som tinha toda a razão. Pena que nunca pude dizer isso naquele microfone.

domingo, 8 de novembro de 2015

Voz do Self, Voz de Deus

O tema era “Psiquiatria e Espiritualidade”, no Congresso Brasileiro de Psiquiatria.(Parecem termos excludentes, mas não são). O convidado falava de um caso daqueles que tiram o sono dos psiquiatras. Uma paciente bipolar com várias internações e fases repetidas de depressão ou mania, que também passou por vários tratamentos, vários médicos, nada dava certo. Depois de muito tentar, ela passou a manifestar o desejo de morrer. Como em muitos casos de quadros clínicos de má resposta, ela estava cansada, quebrada por dentro, sem forças para lutar. O médico, como em muitas situações semelhantes, tentava contornar o grande horror dessas situações, que é a situação ficar sem saída e o paciente acabar de frente com risco de suicĩdio ou de internação, para evitar o pior. A cena que ele descreveu é daquelas que não se costuma descrever em público: a paciente começou a chorar, num profundo lamento. Ela se perguntava, entre soluços, “O que pode aliviar esses sofrimento, meu Deus?”. O palestrante sentiu-se estranhamente inspirado pelo tom bíblico dessa lamentação e perguntou, com o mesmo tom, “Para onde você se volta, em busca de conforto, em meio a esse sofrimento?”. Ele mesmo ficou surpreso com essas palavras que saíram de seus lábios. A paciente voltou-se para ele, diminuindo seus soluços, e confessou que sentia como que uma voz tranquilizadora, bem no fundo de si, dizendo que tudo iria ficar bem, para ela se tranquilizar que tudo iria se acalmar, inclusive o seu sofrimento. O médico perguntou de quem ela achava que era essa voz. Enxugando o rosto ela falou: “A voz parece de Deus”. “E você ouve isso há muito tempo?”. “Ouço há algum tempo, sim”. “E por que você nunca me falou sobre isso?”. Ela chegou a sorri: “Já me acham maluca sem eu contar sobre essa voz…”. O tratamento tomou outro rumo depois desse diálogo, já que o psiquiatra felizmente não achou que a tal da voz fosse uma alucinação. As oscilações clínicas melhoraram e a paciente finalmente assinou um contrato com seu médico de que não tentaria mais o suicídio (já havia tentado três vezes).
Um dado estatístico que esse ciclo de palestras trouxe é o dado que metade dos psiquiatras americanos não acredita em Deus ou em qualquer forma de transcendência à nossa vida material. Devem ser os mesmos que acreditam que a Mente é uma produção do Cérebro. Ou que a doença mental deriva de um pool de genes malfuncionantes. Posso lembrar de alguns colegas ateus que são excelentes médicos, bem como alguns crentes em Deus que são umas antas, mas a cena que o colega descreveu não ocorreria na sala de alguém que não acredita em nada fora do campo da matéria. Também duvidaria que uma bipolar, cicladora rápida, pudesse melhorar de sua doença através de uma voz interior acolhedora. A história seria motivo fácil de chacota.
Jung descreveu o aparecimento da forma redonda em sonhos e desenhos de pacientes vivendo grande tensão e sofrimento psíquico. Fez um paralelo com as mandalas orientais, que para ele representam a totalidade da Psique tentando se restaurar, em momentos de grande perigo. A Psique, seja ela fabricada pelo Cérebro ou pela Consciência corporal profunda, produz essas imagens e intuições procurando encontrar o equilíbrio perdido. A imagem da Mandala pode indicar essa situação dupla, de grande Perigo e de grande força regenerativa. Deve ser por isso que o ideograma chinês para Crise também representa Oportunidade.
Quem prestar atenção pode perceber esse fator de reação quase orgânica do corpo e da Psique em momentos de risco e desequilíbrio. Jung chamou essa estrutura reorganizadora de Self. A presença tranquilizadora que a paciente chamou da voz de Deus poderia ser essa função orgânica de busca de reequilíbrio. A “voz” do Self. Uma sabedoria celular dizendo para a moça que o seu sofrimento poderia ter fim. A pergunta intuitiva e inspirada do colega levou-a diretamente ao Centro da Psique, perdido no meio das oscilações de seu quadro clínico. A palavra que ele próprio usou quase sem querer, foi “para onde você se volta quando busca consolo no sofrimento?”, “Consolo”, ativou esse sistema autorganizador, que pertence ao organismo físico e psíquico, que os junguianos chamam de Psique. Procuramos tanto a cura nas moléculas, nas metilações e desmetilações dos genes que nos esquecemos que a Psique e o corpo querem se curar, querem encontrar o equilíbrio perdido. E que a hora da aflição pode ser a hora da mudança. Enquanto isso, os colegas assistiam outras aulas, o que salvou o palestrante da internação, como delirante.
Não preciso dizer que saí da conferência muito grato por ter estado lá.

domingo, 1 de novembro de 2015

Curas "Espontâneas"

Uma característica de nossa Consciência que a Ciência reproduz é a capacidade de simplesmente ignorar tudo aquilo que não entendemos ou não podemos explicar. Vou dar em exemplo óbvio: as curas expontâneas, ou ditas expontâneas. Um conhecido me descreveu emocionado a consulta de seu pai com a sua Oncologista, a mesma que meses atrás comunicara o diagnóstico de um Câncer Pulmonar inoperável que teria um péssimo prognóstico. Tecnicamente falando, o tratamento não deveria ter um bom resultado e poderia tanto prolongar quanto encurtar a vida de seu pai. O homem reagiu da maneira estranha, pois sempre foi uma espécie de polo transmissor de negatividade e pessimismo. Diante da morte próxima, afirmou entre dentes que não iria se entregar e que se recusava em acreditar naquele diagnóstico/veredicto. Meses depois, a médica dizia com a voz tremida de emoção que o Tumor tinha regredido completamente, contrariando todas as estatísticas. Foram atrás da biópsia, para checar se aquele tumor era aquele mesmo. Era. O homem chorou como quando recebeu a notícia pela primeira vez. Desta vez ele sussurrou: "Eu sabia". No dia seguinte já estava entregue à sua chatice habitual. E o seu caso deve ter ido para as estatísticas como de "Ótima Resposta"à quimioterapia.
Durante esses anos de prática clínica, não é a primeira vez que ouço uma história assim. Esses relatos criam um espectro moralista de que o "Pensamento Positivo"pode curar todas as doenças. O seu contraponto é a ideia que as pessoas morrem de Câncer porque não conseguem modificar os seus "Pensamentos Negativos". Isso se soma à já inconsciente culpabilização que muita gente tem de ter a sensação de ter "fabricado"a própria doença. Nos anos 90 eu participei de uma pesquisa em Oncologia, em uma Enfermaria de Transplante de Medula Óssea que tinha essa pergunta: havia mesmo uma relação mensurável entre o estresse recente e a doença oncológica? Haveria mais gente deprimida e "negativa"nesta enfermaria do que nas outras? O que encontrei naquela pesquisa foi uma amostra de mais da metade dos pacientes avaliados de pessoas sem traços patológicos de personalidade, gente boa, legal e de bem com a vida que um belo dia tropeçaram no diagnóstico de uma Leucemia. Na outra metade da amostra dava para recuperar trauma nos últimos anos, como perda de entes queridos ou demissão/perda de status profissional. Havia também uma alta incidência de quadros depressivos antecedendo a doença oncológica. O que ficou muito claro já naquele estudo mas que ainda hoje está longe de ser um consenso é que a atitude diante da doença parecia se correlacionar claramente com a resposta ao tratamento. Sobretudo essas pessoas que prometem para si mesmas que não vão ceder e não vão morrer daquela bosta de doença. As estatísticas que se danem. Uma atitude iconoclástica em relação a essa religião fundamentalista que são as estatísticas e as evidências: os médicos ficam emocionados e envergonhados com essas curas inexplicáveis. Para a Ciência, os casos vão para as gavetas empoeiradas das "Curas Expontâneas". Ou seja, aquelas que não tem explicação, então elas simplesmente não existem, ou o establishment médico se recusa a dar muita atenção. Já pensou se a moda pega? Os bilhões de prejuízo?
Vou arriscar alguns critérios para essas curas "milagrosas", a saber:
1 Antes de mais nada, aceitar a realidade de que se tem uma doença, ela é grave e vai demandar todo o cuidado e atenção possível. Negar ou fingir que não está acontecendo não costuma ajudar muito;
2 Ter uma atitude de enfrentamento, mas não de uma guerra. Guerrear não costuma trazer bons resultados. Aquilo que está lá é uma parte de nosso corpo, uma parte da vida, criada pelo Mistério inerente à ela. É importante lidar com a doença e se recusar terminantemente a entregar a rapadura, mas com tranquilidade;
3 Essa é a parte difícil, a mais de todas: aceitar que a morte faz parte do acordo, ela pode ser o final do tratamento, aliás, costuma ser o final de nossa vida biológica e pode ser o desfecho da doença grave. Aceito, mas não concordo, este é o babado;
4 Há um campo de energia na resposta à doença e ao tratamento que aparece durante a jornada que ajuda na busca da cura, que deve sempre ser considerada. Essa é a tal da "Energia Positiva"que deve ser considerada. Tem a ver com a sensação de que o corpo sempre quer se curar e para isso precisa de harmonia energética, não de terrorismo;
Isto quer dizer que o processo é uma corrida de fundo, não de velocidade. A virtude está na resistência, não na pressa.
Posto isso, quando a cura vier, curve-se diante dela e agradeça.

domingo, 25 de outubro de 2015

Tite e a Neurociência

Os posts desse blog sobre futebol não são muito visitados pelos leitores (ou, mais provavelmente, pelas leitoras). Ou eu não entendo muito do assunto, mas gosto de me meter à besta, ou o pequeno público que se formou em torno desses posts gosta de saber sobre outras coisas e não está nem aí para o futebol. O fato é que já escrevi algumas bobagens nesse blog, as maiores sobre futebol: elogiei e enchi a bola do Felipão um ano antes do Sete a Um, afirmei que ninguém entendia o que Tite falava no Corinthians, no ano em que ele remontou um time em frangalhos para ser Campeão Brasileiro no mesmo ano e Mundial no seguinte, ou seja, minha pouca credibilidade pode ser abalada quando me meto a escrever sobre esse assunto. Contrariando o bom senso, vou falar sobre futebol e Neurociência, voltando a ele, Tite.
Tite é o melhor técnico do Brasil em atividade. Não porque daqui a poucas semanas vai comemorar mais um título brasileiro pelo Corinthians, para meu sofrimento. Ele vai ser campeão com um grupo de jogadores razoavelmente fraco e pior que muitos outros elencos, como o São Paulo, o Internacional e o próprio Palmeiras. Vai ser campeão com Wagner Love de centroavante. Isso é coisa de gênio. Não está na seleção por obra de uma dupla em que, um está na Suiça riscando a parede de sua cela para contar os dias e o outro não viaja nem para o Paraguai com medo de ser preso. Ou seja, uma duplinha que não usa critérios muito transparentes para escolher o técnico. Dunga, o escolhido, nunca foi campeão em um clube, nem em campeonato de várzea. Mas este é outro assunto.
Os hominídeos não eram muito promissores nesse planeta: não eram os primatas mais fortes, nem mais rápidos, nem duravam muito depois de procriar. Os seus bebês eram frágeis e precisavam de cuidado por muito tempo depois de seu nascimento. O que? Ainda estou escrevendo sobre o Corinthians? Estou, calma. O que destacou os hominídeos na sua luta pela sobrevivência, além dos polegares opositores e a criação de armas e utensílios, foi a sua capacidade de organização e colaboração como grupo. Para isso, desenvolveu Neurônios Espelho, que lhe permitiram aprender por imitação e similaridade, perceber a reação de seus pares e, muitas eras depois, aprender a ser auto consciente. Vivemos a época pós darwiniana de metáforas de genes egoístas e sobrevivência do mais apto, o que no limite está destruindo o nosso mundo, mas o que nos fez prosperar como espécie até a completa dominância do planeta não foram os genes egoístas, mas a capacidade de colaborar e cuidar dos mais fracos.
Tite montou um time baseado em colaboração e ressonância psíquica. É como se fosse uma orquestra de Neurônios Espelho sempre buscando ressonâncias e sinergias. Jogadores desacreditados e dados como medíocres deslancharam nesse sistema. Houve apitos amigos no caminho? Sim, mas não era necessário. Ninguém conseguiu montar um grupo tão coeso. Ninguém conseguiu tirar tanto de tão poucos.
Infelizmente, em nossos sistemas corporativos, permanecem as metáforas darwinianas e os sistemas de dividir para governar. Assim como as fantasias de controle. Nem sempre é valorizada a força do grupo e dos sistemas de sinergia e ressonância, que trariam resultados mais palpáveis e interessantes, como vemos hoje no Corinthians, que perdeu meio time no começo do campeonato e parecia que ficaria perdido em posições intermediárias.( Enquanto isso, o São Paulo vive a sua própria Operação Lavajato).

domingo, 18 de outubro de 2015

De Médico e de Louco ...

Outro dia dei uma entrevista para umas moças que estavam completando seu curso de Pós Graduação em Psicologia Organizacional. Queriam falar sobre o Transtorno de Humor Bipolar. Ontem recebi a versão editada da entrevista, gravada com celulares apoiados em livros e uma escada, no consultório. Elas deram preferência à parte mais técnica e menos provocativa de nossa conversa, e, estranhamente, não colocaram uma parte divertida do debate: as empresas devem tentar selecionar seus funcionários bipolares?
Temple Grandin é uma senhora estudiosa de técnicas mais humanas de abate de bovinos, e chegou a completar o seu doutorado na área. Ela é portadora de uma doença do Espectro do Autismo, a Doença de Asperger. Oliver Sacks tornou-a uma celebridade no livro “Um Antropólogo em Marte” quando dedicou um capítulo à sua vida. Temple Grandin tem uma emocionante aula no TED talks em que defende e descreve a importância para o mundo de pessoas com as suas características. Quem assistiu ao filme “O Jogo da Adivinhação” pode perceber no gênio matemático AlanTuring as mesmas características de Asperger de Temple Grandin: uma capacidade ilimitada de atenção aos pequenos detalhes e de foco em questões que geralmente passam despercebidas das pessoas “normais”, dificuldade de entendimento de ironias e ambiguidades, deficits importantes de inteligência social e ressonância afetiva levando a isolamento e, em alguns casos, depressão. Alan Turing provavelmente ganhou a Segunda Guerra Mundial quando decifrou os códigos criptografados dos nazistas. Também inventou a máquina que hoje é o nosso computador. Morreu sozinho, deprimido e suicidou-se após anos de perseguição por ser homossexual e não ter a malícia de outros que souberam ocultar essa condição, no tempo em que a mesma era entendida como um crime e uma doença.
As meninas me perguntaram como detectar numa entrevista o traço bipolar e isso levantou uma questão se é do interesse de uma empresa selecionar pessoas sem traços vistos como “patológicos”. Eliminar os psicopatas afetaria a Governança Corporativa (além de esvaziar o Congresso Nacional), assim como impedir os Bipolares deixaria as corporações nas mãos de gente morna e pouco criativa. Elas não colocaram também a parte em que eu mencionei que os Bipolares vão procurar mais as carreiras artísticas e criativas do que as funções de controle. É mais fácil achar um bipolar nas áreas de inovação do que entre os contadores, embora o nosso governo demonstra todo dia como a Contabilidade se torna uma arte cada vez mais criativa (e fantasiosa). Há alguns estudos mostrando que os CEOs das empresas tem maior chance de diagnóstico de Bipolaridade do que as pessoas do chão de fábrica. Extroversão, criatividade, atração pela tomada de risco e busca de novidades são algumas das características observadas na bipolaridade que são muito preciosas nas empresas, em alguns casos vitais para a sua sobrevivência. Basta observar as mudanças de Humor e as expansões e depressões de Steve Jobs para notar como isso foi devastador em uma fase de sua carreira para depois se transformar numa força que transformou o próprio mundo. Ele era Bipolar? Ou Ciclotímico? Não sei. Muita gente diz que sim. A Apple, a maior empresa do mundo, teria falido sem ele.
A Psiquiatria provavelmente pode estar criando para o mundo uma nova e poderosa doença, que é a Normose. A sua principal manifestação seja a necessidade absoluta de controle de si e do Outro. Geoge Orwell antecipou este controle em “1984”. Todos temos que ser adequados, corretos, auto regulados. Basta olhar envolta para ver que a Normose é um estímulo para o seu contrário, que é a sociedade de compulsivos que estamos criando. Mas este é outro assunto. A pergunta das meninas enseja a Normose no mercado de trabalho.
Temple Grandin alerta para o risco, com nosso atual conhecimento de genética, de eliminar do mundo os traços da doença de Asperger. Sem esses traços, hoje o mundo poderia estar falando alemão e extinguindo as pessoas fracas e doentes da raça humana. A resposta da pergunta é: não selecione ninguém por suas características genéticas. A Psicologia Organizacional deve focar em aproveitar melhor os traços genéticos e colocar as pessoas nos lugares onde possam render mais. Selecionar os melancólicos, os expansivos, os esquisitos, nas entrevistas pode transformar o mundo numa gigantesca fila de bovinos caminhando para o abate.

domingo, 11 de outubro de 2015

Da Luz e Sombra

Como James Hillman, analista e pensador junguiano, acredito que nossos problemas mitológicos começam e terminam no livro do Genesis. Vamos fazer um pequeno sumário: No Princípio era o Caos e escuridão, e o Criador passa a iniciar o Big Bang da criação, saindo do Vácuo Quântico para o construção da matéria e energia, que são a mesma coisa e intercambiáveis. O que? Não é isso que está escrito? Tudo bem então. Vou me deter numa parte específica: a expulsão do Paraíso.
Adão e Eva viviam no Jardim do Eden, cercados de tudo o que precisavam em um mundo de absoluta harmonia e abundância. Não havia conflito, portanto, não havia sofrimento. Entretanto, a falta de conflito gerava um efeito colateral grave: a falta de Consciência. Jeová permitiu aos pombinhos comer e beber de tudo naquele jardim magnífico, exceto o fruto da árvore de Conhecimento. Sendo onisciente, Jeová sabia muito bem o que iria acontecer quando impusesse ao ser humano uma Interdição: onde tudo era simetria, acontecia, enfim uma tensão, um conflito. E a Serpente, junto com a Mulher, levaram a culpa quando a Interdição foi transgredida, o que parece ser o destino das interdições tomadas sem consciência. Expulsos do Paraíso, Jeová avisou que Adão ganharia o pão com o suor de seu rosto e Eva sofreria dor em seus partos, além de criar uma eterna inimizade entre ela e a serpente. A Modernidade teria tornado as maldições inócuas, já que quem ganha mais maçãs, ou dinheiro, é quem nunca tira seu sustento do suor de seu rosto, mas armazena o suor alheio em algum Paraíso, não do Eden, mas um Paraíso Fiscal. Sem mencionar que as técnicas de analgesia e as cesarianas também afastaram das mulheres as dores do parto. Como a linguagem, ao contrário do que pensam os Criacionistas, é Simbólica e não factual, então as maldições não só persistem como se tornaram mais complexas: feliz do homem que pode ganhar o pão com o suor de seu rosto, pois o trabalho está cada vez mais dissociado de algum significado e, ter como ganhar a vida com dignidade é uma tarefa cada vez mais difícil. E a criação e manutenção da vida está migrando das dores do parto para os tubos de ensaio. Mas parece que temos cada vez mais suor e mais dor para dar origem e sustentar a vida, nossa e de quem amamos.
A Jornada da Consciência passa então por essa dores de criar e manter a Vida. O suor que se demanda é o da dedicação atenta ao caminho, para não se perder nos emaranhados das estradas que se bifurcam. Mas talvez a pior das pragas tenha sido a da inimizade com a Serpente. Essa continua enchendo os consultórios.
Jung escreveu que uma das maiores dificuldades na formação de nossa Consciência, ou uma das condições iniciais de nossa Neurose, seja a dissociação do Bem e do Mal. A Serpente é uma figura simbólica ligada à terra e à profundidade. Eva é o símbolo do Feminino, o mesmo que tem em seu interior a Mãe Criadora e o veneno da Serpente. A herança dessa Mitologia é o estabelecimento da Consciência binária, que opõe a Luz e a Sombra, o Bem e o Mal, a Vida e a Morte. Em outro livro da Bíblia, temos um Jó perplexo com a percepção que o Deus que tanto amava fora capaz de uma aposta com o Diabo para testar a sua fé. Mas não vamos falar disso hoje. Mas uma dica: Jó descobriu que o Bem e o Mal estavam no mesmo lugar, milênios antes de Melanie Klein.
Uma ilusão de nossa mitologia é de que podemos isolar o Mal se o colocarmos aos cuidados das figuras demoníacas. A Interdição do Mal, como no caso das maçãs do Eden, criam um mundo regido pelo engodo e pela maldade. Conquistamos o Mal não com o Bem, mas com a Consciência. Podemos renunciar a ele na medida que o conhecemos e, em algumas situações, podemos exercê-lo. Sobretudo, não se vence o Mal com Bondade ingênua. Por isso que diz o ditado popular que as boas intenções pavimentam o caminho do Inferno. Deve ser por isso que Jesus recomendou a mansidão do cordeiro, mas a astúcia das serpentes. Ele devia saber que estava reabilitando e incorporando às serpentes o seu lugar na dança da Vida.

domingo, 4 de outubro de 2015

Atenção Curativa

Já faz um bom tempo que aprendi uma técnica de relaxamento e meditação em que, em algum ponto, a dirigente convidava a escanear uma parte de seu corpo onde estivesse concentrada uma zona de tensão. Localizada a região de desconforto, o próximo passo foi apenas prestar atenção a essa parte do corpo e observar o que ocorria. A tensão começava a se esgotar, como uma pia que foi desentupida. O simples ato da Atenção simples e não julgadora voltada ao desconforto faz com que o mesmo se esvazie dentro de si.
Essa técnica vem sendo trazida para a Terapia Cognitiva nos últimos anos. Olhar os pensamentos de fora, como uma Consciência separada de sua Consciência. O ato de apenas prestar atenção aos pensamentos, sem tentar controlá-los, pode esvaziar a sua potência. Os pensamentos, olhados em profundidade, revelam a sua natureza de não existência. São fabricados por nossos medos, ou nossa necessidade de antecipação, que foi discutida no último post desse blog. São, no final das contas, nada, e para o nada voltam se são apenas olhadas de fora. Ou de dentro.
Penso que a própria sessão no consultório seja antes de tudo um ato de Atenção. Não são poucos os pacientes que se queixam de médicos indiferentes, ou dispersos, ou que tiram as suas conclusões de maneira automática e sem examinar o caso com algum cuidado. Olhar para o caso com atenção é, em si, um ato terapêutico. A Atenção ao sintoma cria um caminho para a melhora. Como nessa meditação que aprendi há muito tempo. Olhar para o medo vai tirá-lo das sombras.
Muito se diz nos Congressos de Sono e de Psiquiatria que vivemos numa sociedade privada de sono. Vivemos numa sociedade privada de Atenção, com vendas recordes de Ritalinas e outros estimulantes. A falta de Atenção é irmã siamesa do desassossego. Esse blog é um tanto rabugento com as redes sociais, talvez porque elas estejam fundadas na necessidade desesperada de receber Atenção, de estar nos Trend Topics, ou romper a barreira dos milhões e milhões de almas que procuram reconhecimento e validade na forma de likes ou retweets. Disputa-se palmo a palmo o campeonato de memes e quem recebe muita atenção deste tipo não parece muito feliz com isso. Talvez oferecer a Atenção, mesmo para si, crie mais felicidade do que buscá-la desesperadamente.
Muito já se teclou aqui sobre a falta de atenção, sobretudo em reflexões sobre os deficits de atenção de garçons e garçonetes, gerando falhas na entrega de pães na chapa ou porções extras de maionese. Esse escriba se desespera com outro filhote da desatenção, que é o descuido. Ou a pressa. Ou a briga permanente com o tempo. Mesmo assim o tema não se esgota. Do garçon ao cruzamento perigoso da esquina, tudo demanda uma Atenção delicada e constante.
Pode ser que a própria evolução tenha nos selecionado para a Desatenção.Ter um radar sempre ligado para tudo o que ocorre no entorno, para tudo o que vem pela frente, para tudo o que eventualmente já nos machucou, esse tipo de Atenção provavelmente nos trouxe até aqui. Mas não deve nos levar para muito longe. Observe o (a) visitante desse blog o poder curativo da Atenção Relaxada a tudo o que importa.

domingo, 27 de setembro de 2015

Duração

Já contei essa pequena história Budista, mas vale a pena repetí-la: “Um homem caminhava por uma ravina, apreciando a beleza da manhã, quando ouviu um rugido terrível, e logo percebeu que seria devorado por tigres selvagens. Correndo desesperadamente, acabou caindo de um despenhadeiro, e sabia que a queda seria a sua morte, mas acabou se agarrando numa planta, um arbusto. Olhando para baixo, viu que a queda seria fatal e, se não fosse, mais dois tigres esperavam por ele. Olhando para cima, também era observado pelos tigres. No arbusto, que estava começando a ceder, havia um morango. Ele comeu o morango. Lentamente.”
Como toda parábola, esta pode ter muitas leituras. Para mim, que sou psiquiatra e psicoterapeuta junguiano, ela representa o nosso estado habitual de medo da vida e da morte. Na primeira metade da vida, fugimos do sentimento profundo de insegurança, normalmente da insegurança do Ego: “Eu sou amado?”; “Eu realmente existo?”; “Vou conseguir sobreviver?”; “Vou conseguir construir a minha vida?”. Fala-se muito mal do Ego: ele é a causa de nossos medos, de nossa insegurança, de nossa necessidade de controle. Ele enche os consultórios de psiquiatras e terapeutas com as suas infinitas demandas. É o causador do Aquecimento Global, da Crise Hídrica e do governo Dilma, não necessariamente nessa ordem. Mas posso dizer uma coisa, com toda certeza: há uma coisa pior do que ter um Ego; é não ter nenhum Ego. Ou um Ego malformado. Nosso complexo do Ego foi desenhado pela Mãe Natureza para cuidar de nossa sobrevivência e perpetuação da espécie. Este é o significado, para mim, dos primeiros tigres: na manhã de nossa vida, no meio de uma passeio pelo caminho da Inocência, de repente levamos um pontapé da vida para defender a sobrevivência, nosso sucesso, nosso senso de pertencer ou valer alguma coisa. Acho que na verdade não deveriam ser apenas dois, as três tigres: o Fazer, o Ter e o Ser. Nosso mundo define bastante o que se É pelo o que você Faz e, mais do que tudo, pelo o que Tem. Isso ocupa uma boa parte de nossa vida. Para muita gente, ocupa a vida inteira e é uma fonte importante de medo e infelicidade. Mas causa também imensa infelicidade não ter ideia do que Fazer, achar q ue os outros devem te dar de graça para Ter ou não ter nenhuma noção de Ser, ou não, alguém. Daí vem a Lei de Spinelli: “É preciso ter um Ego antes, para depois me livrar dele.”
A queda da ribanceira representa as tijoladas que a vida impõe, sobretudo após a segunda metade da vida: sonhos não realizados, divórcios dolorosos, limitações físicas, perdas de status ou de posição profissional, tudo massacra o pobre Ego que percebe, ou não, que não pode comandar a vida nem o próprio destino, não importa o que dizem os livros de autoajuda. Para piorar a situação, olhando no fim da ribanceira, tem mais tigres esperando. Esses são mais fáceis de entender: a Velhice e a Morte (de preferência, nessa ordem). Já vi gente dançando com a velhice e com o arquétipo da Morte, numa abertura pacífica e larga, mas sabemos que, no mais das vezes, não é assim que acontece. Os tigres representam, em última instância, o que seria uma dádiva para nós, humanos: nosso Córtex Pré Frontal e sua capacidade de fazer antecipações do futuro. Vamos à escola para construir o futuro, adiamos os sonhos para garantir o futuro e seguramos no arbusto o quanto podemos, pois lá embaixo está o futuro. Mas, pergunta o (a) visitante desse blog: e o morango?
Se a Física diz que a flecha do tempo é uma construção de nossa Consciência, temos dois eventos bastante visíveis para a nossa construção: o Nascimento e a Morte. O resto é Duração e Participação. O medo costuma roubar as duas coisas. O morango, para mim, representa o que está entre esses eventos importantes. Tudo o que é Real, segurando um arbusto que vai ceder, é a duração do mastigar e a participação na experiência. O medo tenta sempre encurtar a duração, já que coloca a todos no meio da pressa. Também aparta da experiência, já que a ênfase é no reforço do arbusto, para que ele dure o máximo de tempo possível. E ninguém repara que vive pendurado, mesmo.
Viver da duração é arredondar o tempo. Vou voltar a esse assunto no futuro, mas depois de sentir o gosto do morango.

domingo, 20 de setembro de 2015

O Sol sobre os Guardachuvas

Em meados dos anos 90 um rapaz lançou um livro sobre a sua própria experiência com a Doença do Pânico. Para quem me perguntava, eu enfaticamente contraindicava a leitura de seu livro. Hoje a contraindicação seria absurda, já que qualquer fórum no Facebook sobre o assunto coleciona dezenas de histórias muito mais cabeludas do que a do livro. O meu mau humor derivava da descrição dos efeitos da doença na vida do rapaz: era um roteirista que trabalhava em uma rede de TV aberta, razoavelmente bem sucedido. Teve a primeira crise na estrada de Santos e o quadro foi progredindo com crises diárias. Sua carreira foi interrompida, ele deixou o trabalho e ficou praticamente seis anos enfiado no apartamento de sua mãe, visitando o psiquiatra de tempos em tempos para ele aumentar a medicação e insistir para ele enfrentar seus medos, com “’ótimos” resultados. Quem lia o livro depois de experimentar uma crise de Pânico ficava obviamente apavorado com a perspectiva de passar seis anos enclausurado e sem chance de recuperação. Como dizem os clínicos antigos (e, de Deus quiser, os novos também) “Cada caso é um caso”, mas é muito raro, pelo menos na minha experiência, que um caso evolua tão mal assim. Uma parte muito boa do livro foi um sonho que o cara teve, decisivo para a sua recuperação, que era mais ou menos assim: “Ele tinha finalmente conseguido sair de sua casa, mas carregava um pesado guardachuva, pois o tempo estava carrancudo e ameaçando chover. De repente olhou para o céu e dentre as nuvens surgiu um feixe de luz, e uma voz em off dizia que ele não precisava daquele guardachuva”. Acordou assustado com o sonho e a voz em off e, a partir desse sonho, o seu tratamento tomou um rumo completamente diferente, com melhora progressiva e recuperação de sua vida profissional, agora como autor e palestrista. Óbvio que os pacientes que liam o livro descartavam o final feliz e se atinham ao sofrimento necessário para buscar a cura.
Esse era um dos sonhos que eu tinha no colete na aula de ontem, anunciada no post anterior desse blog, mas acabei não utilizando. Aliás, obrigado a todos que foram e aos que tentaram. O sonho é um sonho especial, daqueles que nos acordam no meio da noite. A voz em off parece de Deus em pessoa, ou de um anjo de cura. A mensagem parece banal, mas gerou no paciente um salto de consciência, de um estado identificado com a doença, representada no sonho pelo guardachuva ou, como sujeito oculto, o medo profundo da vida que o deixava agarrado a guardachuvas. Esse medo infestou toda a vida do paciente até ele passar a se enxergar como o medo em pessoa. Houve a formação de uma Neuroidentidade nova, e falsa: o paciente passou a ser o medo em pessoa.
Uma coisa é ter que lidar com o medo e com nosso mundo cheio de guardachuvas, outra coisa é tampar o sol com eles. O sonho trouxe uma imagem muito intensa e carregada de afeto, que mudou fundamentalmente a vida do sonhador. Para um junguiano, o sonho causou uma Função Transcendente que lançou a Psique do sonhador para fora do campo da doença. Com uma imagem que parece bastante óbvia, a Psique do paciente pulou de um mundo escuro e carregado de medo para um sol entre as nuvens mostrando que a chuva passou e que ele não precisava mais ter medo dela. O Ser- para- o- Medo tinha sido ultrapassado. Mas o que é a Função Transcendente?
Nossa Psique se transforma em períodos de crise. Normalmente essa crise se manifesta por uma tensão interna profunda e muitas vezes dolorosa: mudar ou não de carreira? Sair ou não de um relacionamento? Casar ou comprar uma bicicleta? No dia a dia do consultório, operamos no meio do conflito. O próprio conflito está muitas vezes lá, debaixo dos sintomas da doença.
O trabalho de elaboração do conflito e a energia psíquica do paciente podem provocar esse salto, onde tudo parece igual, mas está profundamente diferente. O paciente recupera a sua identidade e o personagem apavorado sai de cena. A vida volta ao normal. A Psique encontrou o seu caminho de cura. Pena que não temos um protocolo onde esse salto de cura possa ser previsto, ou programado.

domingo, 13 de setembro de 2015

Consciência em Tempo Real

Foi numa noite do ano de 1619 que o filósofo Descartes teve uma espécie de visão mística em que percebeu que a Natureza poderia ser descrita através de regularidades matemáticas. A sua visão inaugurava uma era em que os números falam mais do que as palavras. Quando uma pessoa vem procurar tratamento, não imagina que vai ser quantificada de todas as maneiras: quantas vezes teve os sintomas, qual foi a sua resposta a tratamentos, quantas pessoas de sua família tiveram quadros clínicos correlatos, quando foi seu primeiro episódio e assim por diante. Tudo isso pode ser lido em um algoritmo que vai determinar se aquele caso tem uma chance maior ou menor de responder aos tratamentos. Como eu já falei em post anterior, o paciente não tem nenhum benefício em saber de suas chances, se tem 60 por cento de chance de cura também significa que também tem 40 por cento de chance de morrer. Para o paciente, tudo é 100 por cento, dando certo ou errado as tentativas de tratamento.
Descartes também intuiu que o processo de Pensamento tinha um valor fundamental na percepção da própria existência. É seu o famoso aforisma: “Penso, logo Existo”. Uma ameba não pensa, mas ainda assim, existe. Mas não se percebe como algo vivo, ou existente. A ênfase de Descartes no Pensamento ajudou muito a humanidade na criação de uma visão racional do mundo, de uma teoria que permite prever e controlar alguns fenômenos. Jung foi viajar para a África, em uma tribo primitiva, todos vibravam ao nascer do Sol, um sinal de que as suas preces haviam sido atendidas. Para essa tribo, os seus rituais criavam o mundo e garantiam o nascimento do Sol, dia após dia. Um tipo de pensamento que a Antropologia chamou de Animismo, isto é, tudo tem vida e se comporta de maneira consciente, inclusive o Sol. O Pensamento racional descartou esse tipo de crença, mas alguns estudos descrevem queda de mortalidade quando pessoas oram por cirurgias, ou diminuição de criminalidade em cidades onde há um massivo esforço de oração ou meditação. Tudo ridículo para uma Ciência baseada na medição e explicação dos fenômenos. O Sol nasce e se põe por leis descritas por outro grande pensador, Isaac Newton.
O poder do pensamento sobre o mundo criou também uma doença séria para nós modernos, que é o Pensamento em turbilhão, ou o excesso de ruído interior. Já escrevi sobre isso no post sobre Pensamentos Reverberantes, mas é sempre bom lembrar: vivemos num mundo em que as pessoas pensam demais e sentem de menos. Pensar o tempo todo sobre futuro e perfeccionismo pode gerar alguns filhotes indesejáveis, como a antecipação negativa do futuro e a criação permanente de cenários catastróficos que podem virar profecias autorrealizáveis. Para ter uma Doença de Pânico basta a primeira crise, o resto é antecipação. Um desconforto vira uma aflição, que vira um aperto na barriga, que vai para o peito e termina numa sensação insuportável de morte iminente, ou da sensação que o mundo todo está para desmoronar. Tudo isso numa espiral desagradável em que o medo de ter medo cria toda a crise, até a crise ir parar numa maca gelada de Pronto Socorro.
O “Penso logo Existo” deve ser substituído pelo “Sinto logo Percebo a Existência”. Uma técnica milenar da meditação Mindfulness consiste em observar os Pensamentos de fora, como um objeto exterior à minha própria Consciência. Quando observamos os Pensamentos de fora, como a criação de uma Meta Consciência dentro do campo de nossa percepção, e esse outro Eu pode observar o curso dos Pensamentos de maneira neutra e sem julgamentos, até os mesmos se dissiparem, estamos criando um antídoto ao Pensamento em Turbilhão.
Fico imaginando se essa também uma das incríveis intuições freudianas, em escutar atentamente ao fluxo de pensamentos e angústias dos pacientes com esse olhar testemunhante de uma vida. Ë como se o terapeuta fosse ou ajudasse a formatar essa Meta Consciência, tornando o paciente capaz de escutar a si próprio de uma maneira serena e, quem sabe, mais branda. Dia 19 deste mês vou fazer um workshop sobre o Transtorno de Pânico e trabalhar os Pensamentos Reverberantes, a excessiva Preocupação e construção de cenários e a autocobrança e perfeccionismo. Tudo isso pode gerar e gera crises de Pânico. Mas muito pior do que o Pânico, esse super pensamento pode manter o sujeito sempre deslocado de sua própria vida, enquanto ela está acontecendo em Tempo Real.
Se algum seguidor do blog quiser comparecer ao evento ou obter mais informações, mande um e-mail para lu.magalhaes@uol.com.br .

domingo, 6 de setembro de 2015

Divertidamente, ou Quase

O filme "Divertida Mente"já deu um post nesse blog, bastante visto e comentado. E ainda tem gente que pensa que os desenhos da Pixar são para crianças. O filme se passa dentro do Cérebro de uma pré adolescente, Riley, que atravessa uma dura transformação em sua vida, interior e exterior. Dentro da Sala de Controle do seu Cérebro existem cinco personagens: Alegria, Tristeza, Medo, Raiva e Nojo, que eu preferiria chamar de Tédio, ou de Bode. Iniciar a adolescência exige uma grande modificação na bioquímica de nosso Cérebro, transformando aquelas crianças animadas e encantadas naqueles seres permanentemente mal humorados e bodeados com tudo. Provavelmente uma mudança profunda na Neurotransmissão, com diminuição de Dopamina. Tudo vira um imenso tédio. Riley está só começando essa fase. No final do filme, tudo parece bem, e a líder da gangue, a Alegria, percebe que há um novo botão no painel, chamado "Puberdade". Será que teremos a sequência do D"ivertida Mente na incrível jornada da puberdade de Riley? Tomara. "
A Sala de Controle mostra o desequilíbrio entre o Positivo e o Negativo nas várias camadas de nossa Psique. Medo, Raiva, Tristeza e Nojo são todas processadas em nosso Cérebro Emocional, particularmente em uma estrutura do tamanho de uma ervilha, chamada Amígdala (não confundir com as Amígdalas da Garganta, que vendem muito antibiótico quando infeccionam). Pois a pequena Amígdala pode causar muita confusão para todos, como o filme mostra, sobretudo quando Alegria e Tristeza são ejetadas para fora da Sala de Controle. Riley, como uma boa pré adolescente, passa a ser comandada pelos remanescentes, Medo, Raiva e Nojo, ou Tédio. Isso parece familiar? Um ser percorrido por explosões de raiva, que se esforça muito para esconder seu medo de tudo, e que acha tudo absolutamente um porre, o tempo todo? Me parece uma boa descrição do humor na difícil transição da infância para a idade adulta, que muitos não conseguem completar.
A Alegria, por sua vez, tenta o tempo todo organizar aquela bagunça e proteger a menina dos traumas da transição. A Alegria é chata, controladora e obsessiva em tentar controlar os outros sentimentos ditos "negativos". A Alegria parece com a mãe de Riley e isso não é por acaso. A Alegria é o nosso Córtex Pré Frontal, e suas funções são muito formatadas, ou não, pelas mães. Uma das "Leis de Spinelli", acho que a 34 (os números são aleatórios) diz que "O primeiro Pai é a Mãe". Quem vai conter as explosões de Raiva, acolher a Tristeza, apaziguar o Medo e tolerar o Bode vai ser a mãe, ou quem desempenhar a função gigantesca. A mãe é quem vai estruturar o Córtex Pré Frontal, e se a tarefa não for bem realizada, vai determinar o futuro psiquiátrico da pessoa.
No final do filme, a Alegria vai conseguir um salto junguiano de perceber o valor dos outros sentimentos, sobretudo da Tristeza, no Todo da psique. Incorporar as emoções e os afetos ditos "negativos"não criam a fraqueza, mas a verdadeira força. Muita gente acha essa ideia incompreensível.
Tem uma história que eu acho encantadora em um livro de Bert Hellinger. Ele usa muitas parábolas para captar a essência da Psique, que está sempre no Paradoxo, e o Paradoxo não pode caber dentro de escalas de avaliação ou equações lineares. Na pequena história, Jesus se debruça sobre um aleijado e se compadece de seu sofrimento. Pergunta para ele se não prefere receber uma de suas curas milagrosas e ficar livre de seu aleijão. O homem se vira para o rabi e gentilmente recusa essa ajuda. Jesus se volta a seus apóstolos e diz que "Em Verdade vos digo que há mais entre esse homem e Deus do que todos nós". Viu? Um paradoxo. O paradoxo da aceitação total e incondicional da totalidade da experiência da vida, que inclue toda a experiência da vida, que inclue Alegria, Tristeza, Dor , Gozo, Luz e Sombra. A aceitação, sobretudo, de nosso Aleijão.
Jung acreditava que a doença estava na unilateralidade, em acreditar apenas no Bem, tentando extirpar o Mal, como na tentativa obsessiva da Alegria tentando apagar todas as lembranças de Tristeza de Riley para construir uma Infância maravilhosa e sem dor, o que, sabemos, não é possível nem compatível com a vida. O aleijado da parábola, entretanto, fala de um degrau mais profundo de integração, que é a aceitação radical de nossa limitação e nosso destino. Isso não é para amadores.

domingo, 30 de agosto de 2015

O Olhar do Clínico

O termo “Clínica” vem do latim, de “Inclinare”, o que é uma alusão ao ato de um curador de se inclinar atenciosa e meticulosamente sobre um paciente. Significa também que o ato de tratar um paciente exige uma atenção dedicada sobre ele. O paciente perdoa muita coisa no médico, até os seus erros, mas não perdoa displicência. São vários os tipos de Atenção que podemos ativar e exercer em nosso dia a dia, Podemos manifestar a desatenção também numa série de contextos, mas não vai ser esse o assunto deste post.
Foi anunciada hoje a morte do neurologista e neurocientista Oliver Sacks, morte que já havia sido anunciada pelo próprio há alguns meses, após recidiva de um Câncer maligno que caprichosamente brotara atrás de seu olho. Oliver fez um artigo em que anunciava a sua atitude serena e quase perplexa diante do fim de sua vida. Não dá para deixar de notar a mesma curiosidade perplexa que marcou a sua vida como médico e como escritor. Casos neurológicos que marcavam os limites de nosso conhecimento, como do artista plástico que deixou de enxergar cores ou do homem que confundiu a sua mulher com um chapéu. Oliver Sacks era dessa forma um romancista médico, um cronista do absurdo das lesões e das estratégias de sobrevivência, das histórias de dor e de heroísmo que todo médico presencia em seu dia a dia. Presencia e nem sempre registra. Oliver Sacks sabia também que seu método representava uma Medicina que perdeu a sua capacidade descritiva e passou a compilar evidências como um detetive digital. A sua Medicina provavelmente resiste na prática de alguns médicos que ainda gostam de se inclinar sobre os casos e, sobretudo, sobre as suas dúvidas.
Um dos meus heróis na Psiquiatria foi o filósofo e fenomenologista Karl Jaspers. Jaspers morava dentro dos asilos para os então alienados. Sem tratamentos eficazes para ajudar aquelas pessoas, ele e outros práticos descreviam meticulosamente, exaustivamente, tudo o que eles viam acontecer na doença dessas pessoas. Jaspers defendia algo muito fora de moda hoje em dia, mas completamente vital para qualquer profissional de cura, que é aprender a ver o mundo com os olhos daquele que está doente. A sua Compreensibilidade continua sendo o padrão ouro de minha prática, e acredito que isso está bem descrito nesses mais de quinhentos posts desse mal teclado blog.
Acredito que Oliver Sacks sabia que era um continuador dessa Medicina quase esquecida. Entrar dentro de um caso de maneira profunda, conhecer cada detalhe do que aparece e se oculta em seu quadro para depois mostrar o que esse caso tem de universal, o que um paciente pode ensinar sobre todos os outros é exatamente o contrário do que se faz na Medicina dos grandes dados. Dizer para um paciente que o seu Câncer tem 60% de cura é informá-lo também que tem 40% de chance de morrer. O que parece uma informação otimista é na verdade uma informação perfeitamente estúpida e irrelevante. O dado contempla grandes populações e metanálises de dados. Dá muito mais conforto falar de pacientes em situação bem mais adiantada que reagiram e encontraram o caminho da recuperação, com medo e amor na travessia. O caso de carne e osso, as mudanças de rumo e o caminho da recuperação, isso que estava descrito nos relatos apaixonados de Oliver Sacks. Ele representou, e manteve, o olhar do médico que se inclina sobre seu paciente e encontra, na perplexidade, os caminhos do diagnóstico e do tratamento. Pois cada caso é único e universal.
Se a Medicina recuperasse a sua origem no Sagrado, hoje diríamos que perdemos um santo moderno.

domingo, 23 de agosto de 2015

Atenção Relaxada

Uma das coisas que me ficam do modelo inspirado no Mito de Édipo e que está descrito no último post: ter uma ferida não revelada ou mal trabalhada cria um sistema de disfuncionamento e de baixa energia em nossa Psique. Édipo tenta compensar a dor de seus pés inchados e seus tendões cortados através de um destino heróico. Não adianta estar no topo do mundo com a sua ferida cheirando mal. Não adianta ter o mundo e perder a sua alma, falou Jesus. Conquistar a própria ferida é tornar o que era disfuncional em funcional. Não precisamos da fragilidade para ganhar proteção ou piedade, precisamos de nossa fragilidade para deixar de fugir, deixar de tentar aparentar o que não somos, ou o que não temos. Quando o Reino de Tebas passa por uma seca catastrófica, o Rei Édipo vai ao grande vidente e pergunta quem está trazendo aquela desgraça e o que seria preciso fazer para trazer de volta o equilíbrio ao Reino? Tirésias aponta para rei e revela que ele havia matado o seu pai e desposado sua mãe. Enquanto nossa Psique tem um segredo não revelado, uma ferida escondida e mal curada, a energia que deveria estar disponível está sempre falha e, como tal, não circula. Esse é um dos objetivos dos tratamentos, limpar as sujeiras, separar o joio do trigo, restabelecer os canais de comunicação, internos e externos, para encontrar alguma felicidade e reparação.
A nossa mente, como os supercondutores, funciona melhor em menores temperaturas. Isso não significa que devemos colocar a cabeça no freezer, mas antes achar um estado de atenção relaxada para fazer as coisas acontecerem. O medo ou a alta atividade emocional atrapalha o processamento de informação. Já são alguns milênios em que os meditadores tentam educar a mente para o estado de não-mente, isso é, um estado onde os infinitos mi mi mis, ou os bla bla blás internos são finalmente silenciados. Criando uma espécie de consciência observadora, os monges observam os próprios saltos dos macacos do Pensamento para finalmente apaziguá-los. Entrar num estado de Atenção Relaxada é um treino diário e vital. Aprender a apaziguar os pensamentos, para entrar em contato com outros estados de Consciência.
O Rei Édipo não tem paz consigo mesmo. Não conquistou os seus medos. Não encontrou a sua Visão Interior. Na parte do mito em que ele, ao saber que desposara a própria mãe e com ela criou uma família, arranca os próprios olhos. Não há perdão para a própria Inconsciência. Parece um castigo autoimposto, mas bem que pode significar uma libertação. Lembro de um paciente que sobreviveu a um Câncer intratável e falou das maravilhas (e terrores) de passar por uma experiência que lhe jogou a própria vulnerabilidade na cara. Quando antes ele se sentia imortal, era irritável, meio paranóico com seus funcionários e esposa e, acima de tudo, vivia às turras com seu pai, a quem secretamente atribuía a culpa pela morte de sua mãe. Depois de morrer e renascer, passou a ter uma estranha noção da passagem do tempo e do mal resultado de seus ódios mal elaborados. Tudo isso havia “queimado a fiação”, segundo ele, gerando um Tumor agressivo que, ele sabia, ainda estava por lá, após três cirurgias. Cada dia passava a contar, mas, antes de tudo, contava o seu coração mais leve. Ele trocou de olhos, ou, melhor ainda, de olhar.
Uma desgraça para o destino humano não é a Ferida que nos forma, mas o medo que se forma em torno dela. A sensação de Insegurança cria seus filhotes, que é a busca de falsas fontes de Segurança. Essa é uma parte importante da tragédia de Édipo e de todos nós: quanto mais ele foge de seu Medo, maior ele fica, até se deparar com o maior de todos, que é ser o causador da desgraça de todos. Gosto de imaginá-lo, sereno e sem preocupações como um andarilho sábio, coxeando pelos vilarejos, após perder tudo o que um homem preza: dinheiro, poder, posição, influência. Provavelmente, o Édipo curado vive num estado de Atenção Plena e Relaxada, em fluxo com o caminho e com a vida.
O antepenúltimo post deste blog falou sobre três grandes ciclos arquetípicos: o Parental, o Heróico e a Individuação. Individuação é o estado em que o velho e medroso Ego perde a sua força e a Psique se expande na direção do Infinito. Disse Jesus que muitos são chamados, poucos escolhidos, porque não é fácil deixar o velho medo para trás. Não é fácil tirar a Insegurança quanto ao futuro de centro de nossa existência.

sábado, 22 de agosto de 2015

Ninguém Sofre nas Redes Sociais

Édipo quer dizer “Pés Inchados”, ou “O Coxo”. A sua história e a sua ferida começam quando seu pai, Laio, foi ao Oráculo de Apolo perguntar como seria o destino de seu primeiro filho. A previsão foi a mais terrível que se pudesse esperar: aquele menino estava destinado a desposar a própria mãe e matar o seu pai. Laio pegou a criança e a entregou a seus criados para morrer, no monte Cinterão. O escravo não teve coragem de matar a criança. Perfurou os seus pés e deixou-o pendurado numa árvore, para ser morta pelas feras. Pensando bem, talvez tivesse sido melhor matar a criança. Deixado à própria sorte, Édipo foi salvo por um pastor que ouviu o seu choro e tomou-o como filho. A marca dessa Ferida nunca se apagou de seus pés. Nem da sua alma.
Édipo é um herói moderno. A sua força não está na beleza nem nas glórias da batalha. Édipo vence a Esfinge com duas armas novas para os heróis: Inteligência e Astúcia. As suas armas não serão as dos X-Men nem dos Vingadores. Decifrando o Enigma da Esfinge, ele liberta Tebas e desposa a sua Rainha, Jocasta, que mais adiante ele descobrirá que assim cumpria a profecia terrível. Freud fixou-se bastante nessa parte do Mito que descreve a atração pela Mãe e a rivalidade voltada ao Pai. Eu prefiro olhar o mito por outro ângulo. Édipo descreve uma tendência muito enraizada em nossa Cultura, que já falei em outros posts, é mais helênica do que imaginamos. Como eu poderia resumir essa atitude? Fácil: ninguém aparece feio no Facebook. Todos estão lindos e com fotos desatualizadas em anos e quilos. Cultivamos beleza, simetria e perfeição. Nada de feiúra, nem de fraqueza. Ainda assim, somos descendentes dos pés inchados e tortos de Édipo. O que isso quer dizer?
Na prática clínica vemos histórias de heroísmo, de pais e mães que abraçam o sofrimento dos filhos. Doenças degenerativas, paralisias, sofrimentos que nem conseguimos imaginar. Fico pensando que esses pais fogem do erro de Laio e Jocasta. Laio ouviu que aquela criança mataria seu pai para desposar a mãe. Para fugir do próprio destino, sacrifica o seu filho e, sem saber, a própria vida. Essa é uma lei psicológica profunda do Mito: quem tenta fugir do sofrimento acaba por atraí-lo. A fragilidade humana sempre vai existir, não importam as tentativas de retificá-la. Podemos promover abortos terapêuticos quando os exames apontarem defeitos genéticos ou tentar manipular os genomas para eliminar as doenças, mas essa é exatamente o mecanismo da tragédia do Rei Édipo. O jovem machucado tenta fugir da própria Ferida através da Lógica, da Técnica, da tentativa de dominar a própria dor pela força da Razão. Isso parece mais fácil do que integrar a própria fragilidade no Todo da Psique.
Lacan dizia que o “Sintoma é Aquilo que o Sujeito tem de Mais Real”. O sintoma nos conecta com as coisas que gostamos de esconder nas redes sociais: a Fragilidade e a Dor. Isso não gera muitas curtidas...
Édipo termina a sua vida disputado por todas as cidades vizinhas. Outra profecia dizia que onde ele morresse seria um território sagrado? Não seria outro paradoxo? O portador da desgraça, a família que atravessou três gerações de tragédias (como os Kennedys), e ainda assim ele passa a ser um homem sagrado. Como outros grandes heróis, Édipo não vai passar pela morte física, e ele é engolido pela terra. Ele é o homem que conquistou a própria ferida, em vez de fugir a vida toda da própria fragilidade. A Razão vira Sabedoria e a Força deriva de sua fraqueza... E aí? Vai encarar?

domingo, 16 de agosto de 2015

Ciclos Arquetípicos


Já mencionei essa pequena história em outro post. Depois de 500 textos, é difícil não repetir ideias ou histórias. Junguianos comparam o desenvolvimento psíquico a uma escada em espiral, onde passamos infinitamente pelas mesmas questões, mas em níveis diferentes. Vamos imaginar que retomamos esta história alguns degraus acima.
Um artista plástico ensina sua aprendiz. Explica que um artista tem três grandes fases em sua vida: na primeira fase ele desenha, pinta, molda a sua arte para mostrar à sua família. Mostra para a sua mãe, sua babá, seus avós e depois de alguns anos para a professora, para as exposições da escola onde todos fingem examinar aqueles borrões em busca de algum indício de futuro. Na segunda fase, o artista mostra seu trabalho para os seus pares: entra em escolas de arte, encontra as suas referências, deixa o seu bairro, a sua cidade, o seu país e vai se filiando a uma imensa família de artistas, em que seu trabalho vai se inserir, ou não. Nesta fase, o artista quer mostrar a sua criação para todos, quer ser amado, admirado e, sobretudo, captar a atenção das pessoas. Talvez o artigo mais raro que dispomos na Era Digital seja a atenção das pessoas. Tudo e todos se dissipam numa fração de segundos, sem deixar muito rastro. As pessoas se queixam de falta de Memória, mas o que lhes falta é a Atenção.
O artista termina o seu ensinamento chegando à terceira fase, a maturidade da sua arte. Ele já mostrou sua produção aos pais, aos parentes, aos professores, aos seus pares e ao mundo. Recebeu, ou não, sua Atenção. Na última fase, ele não precisa mais desse olhar. Ele passa a ser visto pela sua Obra. Esse é o olhar que interessa. O artista se vê refletido em sua Obra e passa a ser visto por ela.
Acho essa história encantadora porque ela resume três grandes ciclos da vida de um ser humano. Talvez os mais importantes ciclos arquetípicos: o Ciclo Parental, o Ciclo Heróico, o Ciclo da Individuação. Jung dedicou sua vida a intuí-los e descrevê-los, sem essa sistematização, que deixou para nós, seus sucessores.
O Ciclo Parental é o mais explorado pela Psicologia. A primeira formação de identidade vai se formar, bem ou mal, nessa fase. A sensação de ser alguém, de ter um valor intrínseco, de ter um lugar na vida, vai ser formada nessa fase em que a criança mostra seus garranchos e espera por Atenção e Aprovação. A falta ou o excesso dessa Atenção e dessa Aprovação vai determinar muitas feridas psíquicas e um longo trabalho de cicatrização. Isso também vai permitir, ou impedir, a entrada no segundo Ciclo, que é o Heróico. Como o artista que vai procurar a sua tribo, a pessoa vai buscar seu lugar no seu grupo, inicialmente de amigos, depois de colegas e competidores. Vai ser a sua jornada dentro da sua profissão, na formação de sua família e construção de um legado. Muita gente tropeça, ou nem entra, nessa fase heróica. Muitos se perdem no caminho, como dizia a velha música.
A fase seguinte é a mais difícil de descrever, e entrar. O diálogo passa a ser com níveis mais profundos de Silêncio. O artista passa a se reconhecer, ou ser reconhecido, em seu mundo interno, independente da vaia ou do aplauso que vem de fora. O seu diálogo é com a eternidade, onde a sua obra vai ficar de alguma forma registrada. Ele precisa menos de atenção e aprovação que eram tão importantes nas outras fases. Na verdade, ele precisa de cada vez menos coisas do mundo exterior.
Essas fases descrevem a formação, a consolidação e a relativização do Ego como veículo de nossa consciência.
No recente filme “Lucy”, com Scarlett Johansson, uma moça comum e com péssimo gosto para homens se envolve com traficantes e acidentalmente se expõe a uma droga que vai progressivamente expandindo sua capacidade cognitiva. Ela primeiro domina toda a informação disponível, chega ao profundo entendimento da natureza do Tempo e da Vida para no final virar pura Consciência. Jung teria gostado bastante desse filme, eu imagino. O filme descreve, imagino também, a nossa jornada em atingir o máximo de Conhecimento para virarmos, no fim, Consciência. Essa é a tarefa da Individuação, nos três grandes ciclos da Vida.

domingo, 9 de agosto de 2015

Inimigo Invisível

Uma das características da Doença do Pânico, em sua própria definição, é da ocorrência de uma crise de ansiedade repentina e devastadora, sem um desencadeante específico. Segundo essa definição, é como um vulcão interno que entra em erupção sem motivo e sem ter como prevenir esse fenômeno. Essa é uma das características que transformam os portadores dessa doença em reféns do medo: se a crise pode ocorrer a qualquer momento, é como viver sentado num barril de pólvora o tempo todo.
Estava numa livraria ontem e folheava um livro em que o autor denunciava a máfia da Psiquiatria e a sua capacidade de transformar os pacientes com o diagnóstico de Transtorno de Pânico em doentes crônicos, sempre dependentes de vários medicamentos e mantendo, ainda, crises que se repetem, repetem diante das doses cavalares de medicação, que vão sendo aumentadas indefinidamente. Achei a visão um tanto soturna e comprei um livro que talvez falasse do mesmo assunto, que é a Neuroplasticidade. Concordo com o autor que ficar aumentando a dose da medicação sem trabalhar com o paciente as origens e a manifestação do Medo, criando mecanismos de enfrentamento e controle dos sintomas, simplesmente não funciona.
Lembro de um caso que me chegou depois de tratamentos anteriores fracassados em que, apesar da dose da medicação estar adequada e até um pouco mais alta do que eu costumo prescrever, as crises continuavam indo e voltando, ante o olhar assustado do médico e de seus familiares. A conduta tradicional seria aumentar a dose. Acontece que essa definição de crises que vem do nada é muito bonita nos livros e nos manuais diagnósticos, mas não ajuda nos tratamentos. Por que aquele caso, que parecia ter tudo para melhorar, estava evoluindo tão mal? A paciente continuava cutucando as áreas do medo com uma sensação permanente de insegurança sobre o seu futuro. Tio Sigmund, sempre achincalhado nos seminários de Neurociência, descobriu há mais de um século que a existência de um conflito, rodando debaixo da camada percebida pela nossa Consciência, gera sintomas. Esses sintomas não são Imaginários nem vontade de chamar a atenção, como muita gente acredita, mas a tentativa de trazer o conflito para cima e, de preferência, elaborá-lo. A paciente em si estava perfeitamente acovardada por aquelas fases da vida em que nada parece dar certo: relacionamento terminando, transição de carreira, brigas na família, tudo isso bombardeando as áreas do Cérebro que processam o medo, gerando crises que surgiam no meio de pensamentos em turbilhão, preocupações indo e vindo e um bullying muito comum e cruel, que é o auto-bulliyng. Tudo isso criava as condições para a crise de Pânico perfeita, gerando assim novos ciclos de medo e de sensação de que aquilo nunca teria fim.
A estratégia foi trazer à tona os achacadores internos para depois enfrentar os externos, como chefe abusivo, namorado surtado e mãe chantagista, que foram perdendo sua força e as crises junto. De certa forma, pintar o Pânico como um inimigo traiçoeiro, que pode atacar do nada sem mais nem porque deixa os pacientes sempre aterrorizados e agarrados aos remédios. Trazer os medos à luz, explicar os mecanismos das crises e como lidar com elas tem o efeito de trazer o monstro para fora, onde ele não parece tão implacável, nem invencível.
Modular o medo, reduzir os conflitos e as preocupações circulares sem dúvida ajudam a diminuir as crises e ampliar o repertório de estratégias e manobras de lidar com elas. Isso é o contrário do acovardamento que cronifica a doença e gera livros que denunciam os psiquiatras e sua tentativa de escravizar os pacientes. O tratamento deve visar o "enpowerment", que em portuenglish é traduzido por empoderar a pessoa que sofre as crises, para devolver a ela a sensação de estar no comando. Eu concordo que essa não é sempre a posição que alguns pesquisadores tem em relação à doença.
Colocar a crise de Pânico como um fantasma imprevisível e que vai sempre voltar, pode transformar o paciente em uma pessoa fragilizada e escondida atrás dos remédios. Isso deve ser modificado.Mas justiça seja feita que não é todo mundo que está afim de peitar a doença. Em alguns casos, felizmente raros, a pessoa se esconde atrás dos sintomas e vira uma paniquenta profissional, pode-se assim dizer. Essas não se adaptam muito a esse que escreve esse texto. E a culpa vai para a conta do médico e de seus remédios, como sempre.

domingo, 2 de agosto de 2015

De Cima Para Baixo, De Baixo Para Cima

A descrição clássica da Reação do Estresse é o “Fight or Flight” um trocadilho que quer dizer uma reação de Luta ou Fuga quando diante de uma situação de ameaça. Ela se aplica muito mal a uma crise de Pânico. Nunca vi ninguém, durante e depois de uma crise de Pânico, afim de encarar uma briga. Nem ter vontade de fugir, para algum lugar, do inimigo invisível.Quem passa por isso quer correr, sim, para um lugar protegido, de preferência um hospital. A crise de Pânico parece mais um botão que a Mãe Natureza projetou para ser apertado num Enfarte do Miocárdio. Pode estar vindo uma betoneira na descida que o sujeito não se mexe quando sente a dor de um evento cardiovascular. Sudorese, taquicardia, dor em queimação no ombro e estômago, tremores em todo corpo e extremidades, ar que parece não querer entrar. Pior de tudo, a sensação de congelamento, de não ter como se mexer do lugar, como um peso de toneladas no peito. De fato, uma Crise de Pânico parece em tudo com um Enfarte. E é difícil convencer o paciente que aquilo é apenas um botão errado que o Cérebro apertou.
Gosto muito da Teoria da Neuroprogressão, do grupo de FLávio Kapczinski, lá do Rio Grande do Sul, que se aplica à Doença Bipolar, segundo esse grupo. Cada episódio da doença cria uma espécie de reorganização das redes neurais, criando um Cérebro diferente. Cada crise cria essa progressão, e quanto mais crises, pior. O mesmo se aplica à Doença do Pânico: quanto mais crises, mais o Cérebro vai se organizando em torno do risco de se ter outro evento. É como se o mundo deixasse de ser seguro e cada situação pudesse trazer uma crise de Pânico. Cria-se uma nova e amedrontada identidade, em que a pessoa passa a entender o mundo exterior como perigoso e a si mesma como muito frágil e acovardada. Esse é o maior estrago que a doença produz: uma Neuroprogressão no sentido de viver cercado por uma gaiola invisível: quanto mais crises, mais estreita fica a gaiola. E mais sem saída parece a situação. É muito importante devolver ao paciente a sensação de algum controle sobre as crises, e para isso a medicação é muito útil. Literalmente, um santo remédio.
Recebi um dia um jovem médico, que, óbvio, não ficou feliz com a hipótese de estar passando por crises de Pânico. E se for uma Arritmia Cardíaca? Como você pode ter certeza?- Ele me questionou. Não sei se há certeza em Psiquiatria, ou mesmo na Medicina. Uma arritmia pode causar taquicardia, medo e desconforto respiratório, bem como uma crise de Pânico. Como diferenciar uma coisa da outra?
Nossa consciência corporal se organiza nos dois sentidos: Top-Down e Bottom-Up, isto é, de Cima para Baixo, de Baixo para Cima. Nossa Consciência, na hipótese de Antonio Damásio, se organiza a partir das sensações corporais, nas percepções do próprio corpo que organiza uma sensação de Eu. O Penso Logo Existo de Descartes vira um Sinto Logo Existo dessa teoria. A sensação de existir, de ser o Fulano e Sicrano vai se organizando com uma coleção de Memórias e Percepções de Si e do Mundo. É justamente isso que passa a ser perturbado pelas crises de Pãnico. O Eu deixa de ser Eu e o Mundo deixa de ser o Mundo. Tudo fica estranho, novo, ameaçador. A Arritmia Cardíaca é um desconforto Bottom-Up (de baixo para cima). O Pânico é Top-Down (de cima para baixo). A Arritmia causa uma sensação de desconforto que é interpretada pelo Córtex: um aperto, uma tontura, um desconforto. A crise de Pânico, pelo contrário, primeiro dispara o alarme, o corpo se inunda de Adrenalina, a taquicardia vem depois. O jovem colega aprendeu a entender a crise e a lidar com ela. Isso fez toda a diferença.
Qualquer sensação corporal estranha pode apertar o botão do alarme: uma tosse, uma alergia, uma dor de barriga. O botão pode ser apertado de baixo para cima. mas manda a crise de cima para baixo.
Entender isso ajuda muito a orientar os pacientes e as pessoas que sofrem desta Doença. A sensação que dá para lidar com ela, então, é o começo da cura.

sábado, 1 de agosto de 2015

A Flauta de Pã

Antes de falar sobre o deus grego Pã, vou contar uma passagem de suas histórias: Pã, um deus grego feio, com torso e rosto humano mas chifres, barbas e pernas de bode, apaixonou-se pela bela ninfa Siringe. Ela, como tantas outras, rejeitou o sátiro que, enlouquecido, resolveu tomá-la à força. Ela fugiu deseperada e pediu ajuda às ninfas do rio, as naiades, que, meio no improviso, a transformaram num monte de bambús. Pã montou com esses bambús uma flauta, com sete notas, que representam as notas maiores da música e a harmonia universal que é tocada por ela. A Mitologia Grega é cheia dessas histórias, em que uma perda, uma dolorosa frustração ou mesmo uma morte é um portal para a arte, a criação. Isso tem uma implicação difícil para nosso tempo: a doença, a fragilidade podem ser o portal para uma ampliação de consciência.
Talvez esse seja um ponto importante para marcar as diferentes leituras de Freud e de Jung sobre os mitos e as doenças. Pã é um deus pastoril, um homem bode que deu origem à imagem de vários demônios, com seus chifres e seus olhos de fogo. Conta a lenda que Pã morre com a nova civilização cristã e a transformação da força indomável de Eros para a doçura do encontro amoroso. Pã não morreu, apenas adormeceu. Freud retirou-o das profundezas. Mostrou que dentro de nossas camadas e camadas de educação civilizada existe um sátiro, um monstro pronto a assumir o comando e despedaçar tudo o que estiver na sua frente.
Para quem já teve uma crise de Pânico a imagem da fúria de Pã não é nem um pouco estranha. Siringe diz não diante de seu desejo, Pã se enfurece e avança para tomá-la à força, mesmo que isso a destrua. Ela pede para sair de lá, ir para outro lugar. As pessoas vítimas de extrema violência, como torturas e estupros, podem usar essa estratégia, de se mudar para outro lugar dentro de sua cabeça para sair dali, não participar daquilo. Quem passa por uma crise de Pânico nem sempre tem essa opção: é sufocante demais, aterrorizante demais.
Freud diria que as pessoas perderam o contato com seus instintos, mandando-os para o calabouço do Inconsciente. Exilado no escuro, Pã aproveita a primeira ocasião para possuir quem o abandonou. Depois disso, ele não vai mais tolerar a indiferença. Ele vai ser ouvido, por bem ou por mal. Ele não lida bem com rejeição, pode-se assim dizer.
Jung diria que a doença é sim uma porta voz dos deuses famintos. Que o sintoma pede para ser ouvido e exige que o homem partido em mil pedaços comece a juntar seus cacos na direção de um ser mais completo e integrado. Aqui temos um ponto muito importante: Freud clama pela recuperação do deus morto, pela recuperação de nossa capacidade desejante. Ele procura o Daimon, que é o nosso fauno interior. Nossa sociedade inflamatória afunda nosso daimon em tijelas imensas de Corn Flakes. Nosso desejo virou obesidade. O desejo de Pã não pode ser contido e deve ser trazido à Consciência.
Jung acredita em Siringe: o desejo de Pã pode e deve ser contido. Quando fazemos isso, sofremos. Não é fácil dizer não, como bem sabia a ninfa. A dor, a perda, a doença, tudo isso pode ser transmutado em harmonia. Em totalidade. Percebem? Ambos, junguianos, freudianos, procuram pela recuperação do que está soterrado e restauração do humano aleijado de seu instinto, ou separado do Significado. Os caminhos não são distantes, mas terminam em lugares muito diferentes.

domingo, 26 de julho de 2015

O Urso e o Pânico

Ontem estava conversando com uma amiga sobre uma pequena aula, que hoje acaba sendo chamada de workshop, sobre o assunto que realmente me interessa há décadas, que é estabelecer uma ponte entre a clínica psiquiátrica e a compreensão psicológica. De preferência, uma ponte entre Jung e Neurociência. Isso sempre me valeu problemas com membros de ambos os lados da trincheira; para os psicoterapeutas, eu sou psiquiatra demais e para os psiquiatras, eu sou um terapeuta que não participo de verdade do jogo das escalas de avaliação e dos simpósios de Psicofarmacologia. Uma espécie de café com leite, pode-se assim dizer.
A palestra, ou workshop, ou pequeno convescote Psi deve inaugurar uma série de encontros, espero, que vamos chamar de “Os Deuses viraram Doenças?”, uma brincadeira com uma frase do psiquiatra Carl Jung sobre nossa psique contemporânea. O tema será a Doença de Pânico, ou o Transtorno de Pânico. Síndrome do Pânico é um nome que a mídia consagrou e que significa rigorosamente nada. Uma síndrome é um agrupamento de sintomas que podem derivar de etiologias diferentes. Uma síndrome depressiva, por exemplo, pode derivar de uma disfunção tireoidiana ou de uma falha de neurotransmissão após periodo de estresse. Ou a manifestação de uma Doença Bipolar. Mesmo com origens diferentes, o achado clínico pode ser o mesmo. Da mesma forma, uma crise de Pânico pode ser causada por um medicamento para gripe ou por uma disfunção no processamento do medo em nosso Cérebro Límbico. Portanto, é uma Síndrome. Mas o nome pouco discrimina. Se a doença é diagnosticada, deve ser tratada, e esse vai ser um dos assuntos da aula. O seu nome é Transtorno de Pânico, portanto. Mas esse não será o problema da aula. O problema é como fazer uma ponte entre Jung e Neurociência? Será que existe uma?
Lembro de um caso que atendi no início de meu consultório, nos anos 90. Um caso de crises de Pânico irrompendo em um homem racional, culto, professor universitário que viu o seu senso de estar no mundo chacoalhado por crises inexplicáveis de terror e sensação de morte iminente. A princípio ele, como muitos pacientes, fez uma peregrinação por Pronto Socorros, fez dezenas de exames e chegou a investigar arritmias cardíacas e labirintites, porque seus sintomas poderiam sugerir esses diagnósticos. Na sua primeira entrevista ele, de maneira pouco usual para si, ficou com os olhos marejados de lágrimas, lágrimas de raiva e humilhação pela sensação de ter perdido o comando de sua vida, por não poder mais sair de casa sem ter medo de passar de novo por aquela sensação horrível de morte envolvendo o seu corpo e levando-o embora. Se ao menos o Pânico fosse um inimigo visível, ele poderia esganá-lo com as suas próprias mãos. Foi aí que uma frase estranha saiu da minha boca: "E se ele não for um inimigo? E se for um mensageiro de seu mundo interno que está querendo ser ouvido?". Naquele tempo, não havia sido lançado o filme "O Sexto Sentido", que é de 1999, onde o psiquiatra sugere ao menino que vê gente morta a ouvir o que eles, os mortos, queriam dizer. Isso acaba apaziguando muito o seu sofrimento. Bruce Willis acabou me plagiando, portanto. O fato é que eu fiz essa sugestão ao meu paciente que, de maneira surpreendente, não saiu correndo do meu consultório gritando que o psiquiatra era mais louco que ele. Os seus olhos brilharam e pela primeira vez enxergou algum significado naquilo tudo. Na consulta seguinte ele trouxe um sonho belíssimo, que teve na noite seguinte ao dia de nossa consulta: "Estava diante de um urso enorme, sentindo algum medo e a sensação de ameaça do que poderia acontecer se aquele urso chegasse perto. O urso falou com ele, dizendo que não precisava sentir nenhum medo, ele não estava lá para ameaçá-lo nem para fazer mal. Realmente, o urso não parecia querer machucá-lo, mas mesmo assim percebeu que era melhor não chegar muito perto, pois poderia ser despedaçado se ganhasse um abraço do amigo urso. Quando olhou para o lado, viu um felino enorme sentado ao seu lado, um tigre. Não teve medo, mas ficou intrigado com a imagem, que o fez acordar".
O urso representava o seu Inconsciente, que queria se comunicar com ele e ajudá-lo, embora pudesse despedaçá-lo se chegasse muito perto. O tigre representava, em suas associações, as características que precisaria desenvolver, de flexibilidade, astúcia e até uma agressividade mais integrada em sua vida. Ou seja, o que ele desenvolveu nos anos seguintes em sua psicoterapia. Foi naquele caso que eu descobri que o Pânico era um mensageiro dos deuses, que se manifestavam como doença. Descobri também que, quando o Inconsciente quer falar, é melhor ouví-lo, antes que ele grite, porque seus gritos podem ser ensurdecedores.
Essa é uma ponte entre a doença e seu significado. Será que as pessoas ainda querem saber o significado de seu sofrimento?