domingo, 30 de agosto de 2015

O Olhar do Clínico

O termo “Clínica” vem do latim, de “Inclinare”, o que é uma alusão ao ato de um curador de se inclinar atenciosa e meticulosamente sobre um paciente. Significa também que o ato de tratar um paciente exige uma atenção dedicada sobre ele. O paciente perdoa muita coisa no médico, até os seus erros, mas não perdoa displicência. São vários os tipos de Atenção que podemos ativar e exercer em nosso dia a dia, Podemos manifestar a desatenção também numa série de contextos, mas não vai ser esse o assunto deste post.
Foi anunciada hoje a morte do neurologista e neurocientista Oliver Sacks, morte que já havia sido anunciada pelo próprio há alguns meses, após recidiva de um Câncer maligno que caprichosamente brotara atrás de seu olho. Oliver fez um artigo em que anunciava a sua atitude serena e quase perplexa diante do fim de sua vida. Não dá para deixar de notar a mesma curiosidade perplexa que marcou a sua vida como médico e como escritor. Casos neurológicos que marcavam os limites de nosso conhecimento, como do artista plástico que deixou de enxergar cores ou do homem que confundiu a sua mulher com um chapéu. Oliver Sacks era dessa forma um romancista médico, um cronista do absurdo das lesões e das estratégias de sobrevivência, das histórias de dor e de heroísmo que todo médico presencia em seu dia a dia. Presencia e nem sempre registra. Oliver Sacks sabia também que seu método representava uma Medicina que perdeu a sua capacidade descritiva e passou a compilar evidências como um detetive digital. A sua Medicina provavelmente resiste na prática de alguns médicos que ainda gostam de se inclinar sobre os casos e, sobretudo, sobre as suas dúvidas.
Um dos meus heróis na Psiquiatria foi o filósofo e fenomenologista Karl Jaspers. Jaspers morava dentro dos asilos para os então alienados. Sem tratamentos eficazes para ajudar aquelas pessoas, ele e outros práticos descreviam meticulosamente, exaustivamente, tudo o que eles viam acontecer na doença dessas pessoas. Jaspers defendia algo muito fora de moda hoje em dia, mas completamente vital para qualquer profissional de cura, que é aprender a ver o mundo com os olhos daquele que está doente. A sua Compreensibilidade continua sendo o padrão ouro de minha prática, e acredito que isso está bem descrito nesses mais de quinhentos posts desse mal teclado blog.
Acredito que Oliver Sacks sabia que era um continuador dessa Medicina quase esquecida. Entrar dentro de um caso de maneira profunda, conhecer cada detalhe do que aparece e se oculta em seu quadro para depois mostrar o que esse caso tem de universal, o que um paciente pode ensinar sobre todos os outros é exatamente o contrário do que se faz na Medicina dos grandes dados. Dizer para um paciente que o seu Câncer tem 60% de cura é informá-lo também que tem 40% de chance de morrer. O que parece uma informação otimista é na verdade uma informação perfeitamente estúpida e irrelevante. O dado contempla grandes populações e metanálises de dados. Dá muito mais conforto falar de pacientes em situação bem mais adiantada que reagiram e encontraram o caminho da recuperação, com medo e amor na travessia. O caso de carne e osso, as mudanças de rumo e o caminho da recuperação, isso que estava descrito nos relatos apaixonados de Oliver Sacks. Ele representou, e manteve, o olhar do médico que se inclina sobre seu paciente e encontra, na perplexidade, os caminhos do diagnóstico e do tratamento. Pois cada caso é único e universal.
Se a Medicina recuperasse a sua origem no Sagrado, hoje diríamos que perdemos um santo moderno.

4 comentários:

  1. Mestre, voce realmente tem um dom para escrever e... clinicar.
    Me inclino pra vc em respeito a sua sabedoria e Compreensibilidade (não conhecia essa palavra!).
    O Big Data foi feito pra vender produtos, não ´ra entender a mente humana.
    Abraços.

    Edison

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  2. Concordo que perdermos um Santo moderno!!
    Muito bom texto.
    Lucia Andrade

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