sábado, 1 de agosto de 2015

A Flauta de Pã

Antes de falar sobre o deus grego Pã, vou contar uma passagem de suas histórias: Pã, um deus grego feio, com torso e rosto humano mas chifres, barbas e pernas de bode, apaixonou-se pela bela ninfa Siringe. Ela, como tantas outras, rejeitou o sátiro que, enlouquecido, resolveu tomá-la à força. Ela fugiu deseperada e pediu ajuda às ninfas do rio, as naiades, que, meio no improviso, a transformaram num monte de bambús. Pã montou com esses bambús uma flauta, com sete notas, que representam as notas maiores da música e a harmonia universal que é tocada por ela. A Mitologia Grega é cheia dessas histórias, em que uma perda, uma dolorosa frustração ou mesmo uma morte é um portal para a arte, a criação. Isso tem uma implicação difícil para nosso tempo: a doença, a fragilidade podem ser o portal para uma ampliação de consciência.
Talvez esse seja um ponto importante para marcar as diferentes leituras de Freud e de Jung sobre os mitos e as doenças. Pã é um deus pastoril, um homem bode que deu origem à imagem de vários demônios, com seus chifres e seus olhos de fogo. Conta a lenda que Pã morre com a nova civilização cristã e a transformação da força indomável de Eros para a doçura do encontro amoroso. Pã não morreu, apenas adormeceu. Freud retirou-o das profundezas. Mostrou que dentro de nossas camadas e camadas de educação civilizada existe um sátiro, um monstro pronto a assumir o comando e despedaçar tudo o que estiver na sua frente.
Para quem já teve uma crise de Pânico a imagem da fúria de Pã não é nem um pouco estranha. Siringe diz não diante de seu desejo, Pã se enfurece e avança para tomá-la à força, mesmo que isso a destrua. Ela pede para sair de lá, ir para outro lugar. As pessoas vítimas de extrema violência, como torturas e estupros, podem usar essa estratégia, de se mudar para outro lugar dentro de sua cabeça para sair dali, não participar daquilo. Quem passa por uma crise de Pânico nem sempre tem essa opção: é sufocante demais, aterrorizante demais.
Freud diria que as pessoas perderam o contato com seus instintos, mandando-os para o calabouço do Inconsciente. Exilado no escuro, Pã aproveita a primeira ocasião para possuir quem o abandonou. Depois disso, ele não vai mais tolerar a indiferença. Ele vai ser ouvido, por bem ou por mal. Ele não lida bem com rejeição, pode-se assim dizer.
Jung diria que a doença é sim uma porta voz dos deuses famintos. Que o sintoma pede para ser ouvido e exige que o homem partido em mil pedaços comece a juntar seus cacos na direção de um ser mais completo e integrado. Aqui temos um ponto muito importante: Freud clama pela recuperação do deus morto, pela recuperação de nossa capacidade desejante. Ele procura o Daimon, que é o nosso fauno interior. Nossa sociedade inflamatória afunda nosso daimon em tijelas imensas de Corn Flakes. Nosso desejo virou obesidade. O desejo de Pã não pode ser contido e deve ser trazido à Consciência.
Jung acredita em Siringe: o desejo de Pã pode e deve ser contido. Quando fazemos isso, sofremos. Não é fácil dizer não, como bem sabia a ninfa. A dor, a perda, a doença, tudo isso pode ser transmutado em harmonia. Em totalidade. Percebem? Ambos, junguianos, freudianos, procuram pela recuperação do que está soterrado e restauração do humano aleijado de seu instinto, ou separado do Significado. Os caminhos não são distantes, mas terminam em lugares muito diferentes.

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