sábado, 27 de agosto de 2016

Nise

Uma leitora desse blog, Luana, deu a dica que eu pedi no post de 24 de Julho. O episódio de House em que ele investiga uma professora de alunos especiais que é apaixonada pelo seu ofício e por seus alunos é “Big Baby”, o décimo terceiro episódio da quinta temporada. House imagina que o estado de imensa alegria da professora em contato com alunos tão irritantes pode ser um sintoma da doença que fez a moça tossir sangue dentro da sala, na frente de seus alunos queridos. O animado Kutner, um dos médicos da equipe, fica particularmente ofendido com a visão cínica e desapaixonada do Dr House, sempre pronto a desmascarar milagres ou atos de fé. A professora é torturada por toda sorte de procedimentos diagnósticos esdrúxulos e num deles fica numa banheira gelada para ver se vai ter uma parada cardíaca induzida pelo frio. Enquanto treme debaixo dos cubos de gelo, Kutner puxa assunto para distraí-la, ela começa a contar de um aluno que gostava de tocar em jornais. Não chegava a ler nenhum deles, mas tocava as folhas gostando da textura. Ela pensou que talvez pudesse criar o que se chama de Objeto Intermediário com Papel Maché, para criar um sistema de comunicação e ter acesso ao mundo interno do menino. Deu certo, e foi um longo encontro afetivo no meio do papel de jornal molhado. House fez cara de nojo, perguntando quanto tempo faltava para a Parada Cardíaca.
Eu não tinha conseguido ver o filme – “Nise: O Coração da Loucura” no cinema. Agora chegou em DVD e pude assistí-lo, finalmente. O filme fala sobre o trabalho pioneiro da psiquiatra Nise da Silveira no Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro, em meados do século passado. Quando Nise morreu, eu estava internado por uma Apendicite Supurada. Lembro de ter chorado muito, não pela sua morte em si, pois felizmente ela foi muito longeva e morreu pacificamente e cheia de aniversários para contar. O meu choro se deu pela nota curta do jornal que falava de seu trabalho pioneiro de recuperação dos pacientes através das artes como pintura e escultura, que deu origem ao Museu “Imagens do Inconsciente”, e da obra grandiosa dessa mulher, que em tudo estava à frente de seu tempo. Fiquei com pena de um país que dedicava tão pouca atenção à uma brasileira de tamanha envergadura e importância. Aquela psiquiatra e terapeuta espetacular mereceu apenas algumas poucas linhas de obituário. Agora, felizmente, está retratada em um filme.
Na época também tinha ocorrido um atentado em que um jovem estudante de Medicina disparou uma metralhadora num cinema. O rapaz era um paciente psiquiátrico e está preso até hoje. Foi uma triste sincronicidade a morte da mulher que ouviu a alma da doença mental armada de pinceis e tintas, com um rapaz vivendo em isolamento dentro de seus demônios, que ninguém conseguiu fazer pontes de papel maché para conseguir escutá-lo. Nise foi uma das introdutoras do pensamento de Carl Jung no Brasil, e levou ao mestre as pinturas de seus pacientes tidos como incuráveis. Jung ficou impressionado e grato com o trabalho da pequena grande psiquiatra brasileira, que coletou mais material que qualquer um de seus seguidores.
Nise, como a professorinha do episódio de House, encontrou um caminho para chegar na psique soterrada pela doença. Uma paciente querida me contou que, quando estava em estado catatônico, ouvia as vozes das pessoas longe, como se estivesse em outro planeta. Ela tentava responder ao que lhe falavam, mas sua voz não saía, como em nossos piores pesadelos. Ela lembrava de meus esforços para fazer contato e da tristeza de não conseguir responder. Mas acabamos achando o caminho. Ë disso que se trata todo gesto terapêutico, toda tentativa de tratamento: achar o caminho, restabelecer a comunicação, recuperar a capacidade do paciente de lidar com a sua doença e transformá-la em outra coisa. No caso dos loucos de Nise, transformaram a sua dor em arte. Jung chamaria isso de Função Transcendente.
Já escrevi em outro post que compaixão não é pena. Compaixão é se apaixonar junto. É conexão com o outro que sofre ou que ri. Nessa época em que as pessoas vivem com o nariz enterrado em seus celulares e que compaixão se mede pelo número de “Likes” nas redes sociais é um alento trazer as pessoas de volta para o bom e velho encontro presencial. Aquele que pavimentamos com camadas de lágrimas e de olhares atentos. E é um prazer lembrar de Nise da Silveira.

domingo, 21 de agosto de 2016

Solve e Coagula

Depois de uma Era de Ouro, com seus cavaleiros da Távola Redonda, o Rei Arthur caiu doente e a sua terra secou, pois ela dependia de seu Rei para frutificar e criar vida. O Reino empobreceu, os ideais se dispersaram e a tristeza tomou conta das conversas abafadas. Os cavaleiros que restaram saíram ao mundo à procura do Cálice Sagrado, pois só tomando a água mágica, sorvida de dentro do Santo Graal, a doença do Rei poderia ser curada enfim. Sir Percival vagou pelo mundo por muitos anos procurando pelo caminho do Graal. Fo preso em um bosque cheio de sortilégios, onde via as armaduras dos seus companheiros apodrecendo junto com seus cadáveres. Percival foi levado, a partir desse supremo desespero, à presença do Senhor do Graal e fracassou. Fugiu assustado da responsabilidade. Vagou pelo mundo carregado em sua vergonha. Foi atacado por um mendigo, que reconheceu ser o maior dos cavaleiros, Sir Lancelot. Caiu em um rio pútrido, onde foi despojado de sua armadura e sua força. Foi levado novamente ao Castelo Invisível, e, diante do Senhor do Graal, respondeu que o Cálice servia a Ele, a quem chamou de Senhor e de Mestre. Percival obteve assim o Santo Graal e salvou o seu Rei.
Essa história belíssima para mim representa a importância do erro e da derrota. Sobretudo do que acontece depois. Diego Hypólito fracassou bisonhamente em duas Olimpíadas, caindo de bunda e de cabeça na prova que levou quatro anos treinando. A seleção de vôlei masculino de Bernardinho ganhava a final da Olimpíada de Londres com uma certa facilidade, de dois sets a zero, quando a Rússia, comandada por um gigante fora de sua posição, pulverizou os brasileiros virando o jogo para três a dois. Nunca uma medalha de prata foi tão sofrida. Hoje no primeiro lugar do pódio, Bruno e Serginho estavam aos prantos, provavelmente lembrando de uma sequência inédita de vice campeonatos nesses anos, como uma maldição. Com certeza, a lembrança mais intensa deve ter sido da medalha e do pódio amargos de quatro anos antes. Dessa vez, a cor da medalha era diferente.
A Alquimia dos antigos repetia em seus textos: “Solve e Coagula”. Talvez eles não soubessem, mas estavam resumindo os movimentos intrínsecos da vida e da Psique. Passamos por ciclos de início, crescimento, apogeu, decadência e morte. Todos nós e todos os processos. É por isso que os budistas insistem que a Impermanência é uma lei inexorável da vida. O Rei Arthur viveu isso na própria carne, como um jovem armeiro que virou o mais glorioso dos reis, para ver os seus cavaleiros e seu reino padecer de seus próprios erros. O “Solve e Coagula” dos alquimistas representa as coisas que se dissolvem na água e são lentamente aquecidas e trabalhadas para virar a Matéria Prima da Pedra Filosofal. Representa as fases da vida que se expandem e retraem, como as próprias estações do ano. Saímos do estado de solução para o estado de firmeza onde não vamos mais tremer diante da responsabilidade ou do perigo.
Diego Hypolito mergulhou numa profunda depressão depois de suas derrotas, duvidando de si e de suas opções. Pensou em desistir de tudo e levar uma vida tranquila, longe dos holofotes. Ouvi ou li mais de um jornalista dizendo que Bernardinho estava superado no início titubeante da seleção de vôlei na RIO 2016. Serginho estava cansado e aposentado da seleção, imaginando que nessa Olimpíada seria apenas um torcedor. Todos eles voltaram inteiros, para não titubear dessa vez.
Depois do período de dissolução, que para muita gente pode ser uma noite escura de alma, o Coagula representa a retomada do treino, da luta, da busca, até criar em nossa Psique um núcleo muito firme, um diamante interno que aguenta qualquer temperatura. Ou qualquer adversidade. Muita gente se desmancha, ou se perde, na dureza dessa forja.
Sir Percival perdeu tudo o que tinha e o que era, para, do meio do rio de lama, ser testado uma segunda vez e, dessa vez, sentir-se digno diante de seu Senhor. Somos todos Percival. Ou tentamos ser.

domingo, 14 de agosto de 2016

Tente Outra Vez

Estava revendo um texto de Agosto de 2012, desse blog, sobre a derrota da judoca Rafaela Silva na Olimpíada de Londres. Estava bem treinada e era superior à adversária, quando pegou a perna da mesma no chão. O golpe era irregular e isso determinou a eliminação de Rafaela, que ficou pregada no tatame, em prantos, sem acreditar que tudo se perdeu de maneira tão definitiva numa fração de segundo. Depois da derrota, ainda chorando muito, lembrou de uma passagem da sua infância que acabou inspirando o meu post: Rafaela viveu uma infância muito pobre na favela da Rocinha. Ganhou de seu pai um par de sandálias e foi brincar. Com medo de gastá-los, deixou-os de lado. Quando voltou, eles não estavam mais lá. O pai falou que nunca mais ela iria ganhar outras. Certamente imaginou que a menina não dera valor ao presente, comprado com seu dinheiro suado. Rafaela Silva, em Agosto de 2012, sentiu que tinha perdido de novo as suas havaianas. Eu acabei o post, em tom profético, dizendo que no Rio em 2016 o povo brasileiro daria para ela um par de havaianas de ouro. Quatro anos depois, Agosto de 2016, e Rafaela foi buscar a única medalha de ouro do Brasil até agora nessa Olimpíada que é mais uma cagada do Lula que temos que limpar.
Na Copa do Mundo, em 2014, a seleção brasileira dava sinais muito cedo de seu estado de nervos. Chorava no hino, chorava nos (poucos) gols, chorava no túnel, no aquecimento. O capitão Tiago Silva caiu em desgraça quando ficou à beira do campo, aos prantos, enquanto o Brasil decidia nos pênaltis a sua sorte contra o Chile. Lugar de Capitão do time era com os colegas, acalmando, incentivando, passando confiança. Para ficar chorando na beira do campo sentado na bola eu poderia fazer por muito menos dinheiro. Nessa Olimpíada vejo atletas brasileiros saindo das derrotas se descabelando de chorar, ou comemorando de maneira enlouquecida vitórias em fases classificatórias que, diga-se, servem para classificação. Vivemos há muitas décadas numa sociedade de espetáculos e todo mundo quer virar um trend topic por algumas horas. Fico imaginando se essa choradeira é para sair nas fotos das agências ou faz parte da nossa querida companheira de jornada histórica, a autoindulgência. Fico com muita inveja de ver esses monstros, como Michael Phelps ou Simone Biles, olhando a subida já algo rotineira da bandeira e do hino sem choradeira nem descabelamento. O olhar é de absoluta serenidade. Uma alegre e contida serenidade de quem sabe que fez o que se preparou longamente para fazer. Nada mais do que isso. Simone Biles, a pituca de 1,45m que está ganhando tudo e pulverizando recordes na Ginástica Olímpica, chegou a afirmar que sente que está mostrando com alegria para as pessoas aquilo que ensaiou. Como se fosse uma competição estudantil, não o maior evento esportivo do planeta.
Escrevi um post recente sobre a função estruturante da tristeza e agora estou implicando com a choradeira de nossos atletas olímpicos? Quem escreve esse blog? Numa semana é o Médico, na outra é o Monstro?
Vou responder com Rafaela Silva. A sua dor em 2012 foi legítima e intensa. E serviu para ela concentrar toda a dor e, sobretudo, toda a sua raiva em quatro anos de treinos e dedicação, com a medalha de ouro na cabeça. Antes da luta ela entrava no tatame gritando e esmurrando o peito, como se dissesse: agora é minha vez, não tem para ninguém. E saiu com a medalha de ouro, falando impropérios para quem a linchou nas redes sociais 4 anos atrás.
Fico feliz de estar escrevendo esse post agora à noite, porque se fosse cedo também iria desancar o Diego Hypólito, que também teve um ataque quando conseguiu completar a sua série há dois dias sem cair de cabeça ou de bunda, como nas Olimpíadas anteriores. Iria incluí-lo na lista da choradeira irritante da derrota. Hoje ele ganhou uma bela e inesperada medalha de prata, e citou, em sua entrevista, que já caiu de bunda, já capotou de cabeça e agora caiu em pé com uma medalha no peito. Nessa sarabanda de derrotas e decepções chorosas que tem sido várias modalidades da Rio 2016, Diego venceu quando já é um atleta bem pior do que nas outras edições, mas dessa vez estava inteiro em cada movimento.
Rafaela e Diego canalizaram toda a frustração e derrota na vontade de escrever outra história para eles. Nisso, podem ser um alento para esse país que anda tão derrotado.
Como na música de Raul Seixas: “Basta ser sincero e desejar profundo\ Você será capaz de sacudir o mundo\ Tente outra vez.”

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Sintonia Fina Emocional

Uma palavra mágica hoje nas terapias comportamentais é Regulação Emocional, e isso tem bons motivos. A primeira vantagem do termo é substituir a fantasia de Controle. Muita gente chega em terapia com a queixa: “Eu não consigo me controlar”. Isso deriva de décadas de observações do tipo: “Controle-se; Calma!; Engole o choro”. Os Afetos e as Emoções são animais ariscos, e quando alguém tenta controlá-los ou engoli-los, os resultados não costumam ser bons. E olha que tem uma grande parcela da humanidade tentando. Tem um ditado oriental que diz: “Você quer controlar o seu rebanho? Dê um pasto grande para ele”. Esse é um ótimo ditado para nossas Emoções e Sentimentos: eles dão menos coices se encontram um espaço interno de desenvolvimento. Um espaço para serem observados, cuidados, de preferência alimentados, para que não sejam animais no cativeiro. Nossa cultura darwiniana pode muitas vezes entender sentimentos como fraquezas; a funcionária “espanou”, o gerente “surtou”, fulano “não dá conta”. Sentimentos são pontos fracos a serem controlados, e tome ansiolíticos e indutores de sono para aguentar o tranco.
Outro aspecto do lidar com os afetos é a cegueira emocional. Muitos chefes focados apenas em resultados estão perdendo seus empregos, não porque as empresas se incomodem tanto assim com os maus tratos, mas antes pelo aumento de custos de processos de assédio moral que estão começando a receber. E os caras tem razão de reclamar quando demitidos: na hora da cobrança e da pressão, o que vale são os números, na hora da demissão, você deveria ter sido mais humano com as pessoas? Não é incomum que chefes não se lembrem ou não consigam notar a sua própria rispidez, ou ter gritado durante uma reunião. A cegueira emocional não permite perceber as alterações no seu próprio estado de humor ou o impacto das palavras nos olhos das pessoas. A cultura do “Apenas faça!”gera prejuízos humanos, recalls e contabilidade criativa, o que já levou empresas grandes à quebradeira. Investir em Atenção e Regulação Emocional gera lucro pessoal e coletivo. Mas como regular afetos?
O primeiro passo já foi mencionado: um bom jeito de regular afetos é percebendo-os em mim e no outro. Dar espaço não significa fazer reuniões em que todo mundo dê gritos primais ou esmurre travesseiros, nem chore gritando pela mamãe. Dar espaço é dar validação aos sentimentos. Tem uma cena no filme da Pixar já tão mencionado nesse blog, Divertida Mente, em que a Tristeza se aproxima de Bing Bong, o amigo imaginário da menina Riley. Ele começa a lembrar de como era divertido ser o amiguinho daquela menina alegre e amada. A Tristeza, para desespero da chatinha Alegria, vai dando validação para os sentimentos de luto e saudade da época em que Bing Bong era uma figura central na Psique de Riley. Bing Bong chora lágrimas de balas e caramelos. Após manifestar e ter seu choro validado, ele “enxuga” as lágrimas e volta para a jornada. A Alegria pergunta para a Tristeza: “Como você fez isso?”. A dona Tristeza responde: “Eu só deixei ele falar”.
Vivemos numa ditadura da Alegria que torna a modulação de afetos uma tarefa e tanto: as mães querem que a infância seja um paraíso de brincadeiras e boas lembranças, evitando o grande vilão que espreita todas as cabeças maternas, e que não está no Divertida Mente: o espectro do Trauma. Nenhuma criança pode sofrer traumas, a infância tem que ser um oásis de alegrias e divertimento. Isso gera outra consequência futura, que é muita gente não querer virar gente grande por medo da terrível responsabilidade. Ou dos trancos que a vida dá em todo mundo. Se eu não crescer, não sofrerei traumas. Esse é o trauma por medo do trauma.
Na vida corporativa, temos outro fantasma, a Motivação: funcionários tristes ou insatisfeitos ganham a pecha de desmotivados, ou, pior, criadores de problemas. Não dão conta. Em tempos de degola de empregos, como os atuais, isso pode fazer muita diferença. Nos feedbacks, a palavra de ordem: “Você precisa se controlar”.
Regular emoções é antes de tudo, lidar com elas.Envolve identificá-las, manifestá-las, elaborá-las. Vamos precisar disso em família, no trabalho, nas relações. Como tudo o que propomos, é mais fácil falar do que fazer. Mas para fazer é preciso praticar. A partir de aqui e agora.