domingo, 27 de setembro de 2015

Duração

Já contei essa pequena história Budista, mas vale a pena repetí-la: “Um homem caminhava por uma ravina, apreciando a beleza da manhã, quando ouviu um rugido terrível, e logo percebeu que seria devorado por tigres selvagens. Correndo desesperadamente, acabou caindo de um despenhadeiro, e sabia que a queda seria a sua morte, mas acabou se agarrando numa planta, um arbusto. Olhando para baixo, viu que a queda seria fatal e, se não fosse, mais dois tigres esperavam por ele. Olhando para cima, também era observado pelos tigres. No arbusto, que estava começando a ceder, havia um morango. Ele comeu o morango. Lentamente.”
Como toda parábola, esta pode ter muitas leituras. Para mim, que sou psiquiatra e psicoterapeuta junguiano, ela representa o nosso estado habitual de medo da vida e da morte. Na primeira metade da vida, fugimos do sentimento profundo de insegurança, normalmente da insegurança do Ego: “Eu sou amado?”; “Eu realmente existo?”; “Vou conseguir sobreviver?”; “Vou conseguir construir a minha vida?”. Fala-se muito mal do Ego: ele é a causa de nossos medos, de nossa insegurança, de nossa necessidade de controle. Ele enche os consultórios de psiquiatras e terapeutas com as suas infinitas demandas. É o causador do Aquecimento Global, da Crise Hídrica e do governo Dilma, não necessariamente nessa ordem. Mas posso dizer uma coisa, com toda certeza: há uma coisa pior do que ter um Ego; é não ter nenhum Ego. Ou um Ego malformado. Nosso complexo do Ego foi desenhado pela Mãe Natureza para cuidar de nossa sobrevivência e perpetuação da espécie. Este é o significado, para mim, dos primeiros tigres: na manhã de nossa vida, no meio de uma passeio pelo caminho da Inocência, de repente levamos um pontapé da vida para defender a sobrevivência, nosso sucesso, nosso senso de pertencer ou valer alguma coisa. Acho que na verdade não deveriam ser apenas dois, as três tigres: o Fazer, o Ter e o Ser. Nosso mundo define bastante o que se É pelo o que você Faz e, mais do que tudo, pelo o que Tem. Isso ocupa uma boa parte de nossa vida. Para muita gente, ocupa a vida inteira e é uma fonte importante de medo e infelicidade. Mas causa também imensa infelicidade não ter ideia do que Fazer, achar q ue os outros devem te dar de graça para Ter ou não ter nenhuma noção de Ser, ou não, alguém. Daí vem a Lei de Spinelli: “É preciso ter um Ego antes, para depois me livrar dele.”
A queda da ribanceira representa as tijoladas que a vida impõe, sobretudo após a segunda metade da vida: sonhos não realizados, divórcios dolorosos, limitações físicas, perdas de status ou de posição profissional, tudo massacra o pobre Ego que percebe, ou não, que não pode comandar a vida nem o próprio destino, não importa o que dizem os livros de autoajuda. Para piorar a situação, olhando no fim da ribanceira, tem mais tigres esperando. Esses são mais fáceis de entender: a Velhice e a Morte (de preferência, nessa ordem). Já vi gente dançando com a velhice e com o arquétipo da Morte, numa abertura pacífica e larga, mas sabemos que, no mais das vezes, não é assim que acontece. Os tigres representam, em última instância, o que seria uma dádiva para nós, humanos: nosso Córtex Pré Frontal e sua capacidade de fazer antecipações do futuro. Vamos à escola para construir o futuro, adiamos os sonhos para garantir o futuro e seguramos no arbusto o quanto podemos, pois lá embaixo está o futuro. Mas, pergunta o (a) visitante desse blog: e o morango?
Se a Física diz que a flecha do tempo é uma construção de nossa Consciência, temos dois eventos bastante visíveis para a nossa construção: o Nascimento e a Morte. O resto é Duração e Participação. O medo costuma roubar as duas coisas. O morango, para mim, representa o que está entre esses eventos importantes. Tudo o que é Real, segurando um arbusto que vai ceder, é a duração do mastigar e a participação na experiência. O medo tenta sempre encurtar a duração, já que coloca a todos no meio da pressa. Também aparta da experiência, já que a ênfase é no reforço do arbusto, para que ele dure o máximo de tempo possível. E ninguém repara que vive pendurado, mesmo.
Viver da duração é arredondar o tempo. Vou voltar a esse assunto no futuro, mas depois de sentir o gosto do morango.

7 comentários:

  1. espetacular. vejo que há muita confusão no conceito de Ego e individualidade, principalmente depois que os textos orientais passaram a fazer parte da nossa cultura.

    Caio

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  2. Engraçado, lendo o último parágrafo (ou parágrafo do morango) pensei muito na minha terapia, que fiz com o autor deste texto.
    De longe o melhor morango da minha vida!!!!
    Bjk,

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  3. Porque você é tão incrível? ;)

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  4. Let me take you down
    Cause I'm going to strawberry fields
    Nothing is real
    And nothing to get hung about...

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  5. Caramba, obrigado, gente. Mas assinem o comentário, por favor?

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  6. Que parábola bacana! E que link legal com a música dos Beatles. Adorei! Obrigada!
    Valdelis

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  7. Vc é top mesmo, Mestre !

    Edison

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