domingo, 20 de setembro de 2015

O Sol sobre os Guardachuvas

Em meados dos anos 90 um rapaz lançou um livro sobre a sua própria experiência com a Doença do Pânico. Para quem me perguntava, eu enfaticamente contraindicava a leitura de seu livro. Hoje a contraindicação seria absurda, já que qualquer fórum no Facebook sobre o assunto coleciona dezenas de histórias muito mais cabeludas do que a do livro. O meu mau humor derivava da descrição dos efeitos da doença na vida do rapaz: era um roteirista que trabalhava em uma rede de TV aberta, razoavelmente bem sucedido. Teve a primeira crise na estrada de Santos e o quadro foi progredindo com crises diárias. Sua carreira foi interrompida, ele deixou o trabalho e ficou praticamente seis anos enfiado no apartamento de sua mãe, visitando o psiquiatra de tempos em tempos para ele aumentar a medicação e insistir para ele enfrentar seus medos, com “’ótimos” resultados. Quem lia o livro depois de experimentar uma crise de Pânico ficava obviamente apavorado com a perspectiva de passar seis anos enclausurado e sem chance de recuperação. Como dizem os clínicos antigos (e, de Deus quiser, os novos também) “Cada caso é um caso”, mas é muito raro, pelo menos na minha experiência, que um caso evolua tão mal assim. Uma parte muito boa do livro foi um sonho que o cara teve, decisivo para a sua recuperação, que era mais ou menos assim: “Ele tinha finalmente conseguido sair de sua casa, mas carregava um pesado guardachuva, pois o tempo estava carrancudo e ameaçando chover. De repente olhou para o céu e dentre as nuvens surgiu um feixe de luz, e uma voz em off dizia que ele não precisava daquele guardachuva”. Acordou assustado com o sonho e a voz em off e, a partir desse sonho, o seu tratamento tomou um rumo completamente diferente, com melhora progressiva e recuperação de sua vida profissional, agora como autor e palestrista. Óbvio que os pacientes que liam o livro descartavam o final feliz e se atinham ao sofrimento necessário para buscar a cura.
Esse era um dos sonhos que eu tinha no colete na aula de ontem, anunciada no post anterior desse blog, mas acabei não utilizando. Aliás, obrigado a todos que foram e aos que tentaram. O sonho é um sonho especial, daqueles que nos acordam no meio da noite. A voz em off parece de Deus em pessoa, ou de um anjo de cura. A mensagem parece banal, mas gerou no paciente um salto de consciência, de um estado identificado com a doença, representada no sonho pelo guardachuva ou, como sujeito oculto, o medo profundo da vida que o deixava agarrado a guardachuvas. Esse medo infestou toda a vida do paciente até ele passar a se enxergar como o medo em pessoa. Houve a formação de uma Neuroidentidade nova, e falsa: o paciente passou a ser o medo em pessoa.
Uma coisa é ter que lidar com o medo e com nosso mundo cheio de guardachuvas, outra coisa é tampar o sol com eles. O sonho trouxe uma imagem muito intensa e carregada de afeto, que mudou fundamentalmente a vida do sonhador. Para um junguiano, o sonho causou uma Função Transcendente que lançou a Psique do sonhador para fora do campo da doença. Com uma imagem que parece bastante óbvia, a Psique do paciente pulou de um mundo escuro e carregado de medo para um sol entre as nuvens mostrando que a chuva passou e que ele não precisava mais ter medo dela. O Ser- para- o- Medo tinha sido ultrapassado. Mas o que é a Função Transcendente?
Nossa Psique se transforma em períodos de crise. Normalmente essa crise se manifesta por uma tensão interna profunda e muitas vezes dolorosa: mudar ou não de carreira? Sair ou não de um relacionamento? Casar ou comprar uma bicicleta? No dia a dia do consultório, operamos no meio do conflito. O próprio conflito está muitas vezes lá, debaixo dos sintomas da doença.
O trabalho de elaboração do conflito e a energia psíquica do paciente podem provocar esse salto, onde tudo parece igual, mas está profundamente diferente. O paciente recupera a sua identidade e o personagem apavorado sai de cena. A vida volta ao normal. A Psique encontrou o seu caminho de cura. Pena que não temos um protocolo onde esse salto de cura possa ser previsto, ou programado.

2 comentários:

  1. Precisando muito de um sonho assim...

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  2. Mestre, voce me ensinou a dar valor aos sonhos, mesmo os mais estranhos.

    Qq hora apareço pra te contar alguns novos, com muitas bicicletas... :-)
    Abraços.

    Edison

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