domingo, 15 de novembro de 2015

Ideologia

Há dez anos atrás estava no Congresso Brasileiro de Psiquiatria em Belo Horizonte e na porta do Centro de Convenções tinha um carro de som de um pessoal da luta antimanicomial protestando contra nós, psiquiatras vendidos aos interesses dos laboratórios, a máfia do Prozac, pode-se assim dizer. Eu acompanhava com algum interesse os discursos enquanto subia as escadas do predião antigo. Um rapaz de cabelo e barbas compridos tomou o microfone e relatou sua história de anos de tratamentos caros, quando foi diagnosticado como Bipolar e só fazia piorar. O seu equilíbrio só se estabeleceu quando finalmente alguém parou para ouví-lo e finalmente, compreender o que se passava com ele, libertou-se de toda a medicação e, provavelmente, do estereótipo de doente mental. Estou melhorando e dando um corpo ao seu discurso e omitindo os palavrões contra a máfia que estava naquele convescote psiquiátrico. Nunca mais fomos recebidos por esse carro de som em nenhum outro Congresso, o que eu acho pessoalmente uma pena.
Neste Congresso, dez anos depois, encontrei um velho amigo, com quem tramava contra a onda da Psiquiatria Biológica há muitos anos. Não ficamos muito animados em relembrar aqueles tempos. Parecia a música do Cazuza: "Meus heróis morreram de overdose/Meus inimigos, estão no poder...". Na verdade a história não é tão melancólica assim. Não temos tantos heróis nem tantos inimigos assim, os medicamentos são uma parte importante do arsenal terapêutico, mas a crítica daquele rapaz encima do carro de som continua muito, muito válida. Ficar avaliando os casos com escalinhas de sintomas é o fim da picada. Nada substitui a boa e velha Compreensibilidade, nada é melhor do que entender como aqueles sintomas se manifestam na vida da pessoa e achar um jeito de manejá-los. A palavra da moda: Modulação. O bom e velho Cérebro Racional tentando se haver com o mais antigo e contundente Cérebro Emocional. Ou a Emoção regulando a Emoção, com serenidade, afim de modular a melhor resposta.Mas no que essas velhas pendengas psiquiátricas interessam aos visitantes desse blog?
No último post escrevi sobre outra paciente com diagnóstico de Bipolaridade que mencionou a seu médico, em emocionado encontro, que na hora de maior aflição ouvia uma voz, ou uma presença tranquilizadora, falando para o seu interior que tudo acabaria dando certo. Ela ficou particularmente confiante quando foi ouvida por seu médico, que acreditou nela. Acreditou em sua vivência. Foi como se aquele estado caótico em que se encontrava tivesse começado a se autorganizar. O último post sugere que nosso organismo psíquico tem a mesma capacidade que nosso organismo biológico de se autorganizar e encontrar níveis progressivos de equilíbrio e complexidade.
Infelizmente, dentre tantas capacidades que a hipermodernidade está abolindo, a mais crucial é a capacidade de escuta. Para compreender, é preciso escutar. Com atenção. A escuta coloca esse sistema autorganizador em ação. Uma capacidade de olhar para si mesmo de fora e organizar os sentimentos é o resultado dessa autorganização. Há uma mudança muito grande de paradigma, entre achar que se tem uma doença crônica, que só vai piorar com o tempo, para um modelo em que o paciente aprende a modular a sua reação aos sintomas e a enfrentá-los.
Isso vale para muitas situações de nossa vida. É crucial saber se vamos ser vítimas das dificuldades ou vamos interagir com elas. O rapaz encima do carro de som tinha toda a razão. Pena que nunca pude dizer isso naquele microfone.

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