domingo, 22 de novembro de 2015

Amanhã

Prometeu era um Titã, irmão de Zeus. Como muitos, cobiçava o poder de seu irmão deus, o mais poderoso do Olimpo. Tentou ludibriá-lo divindo os despojos de um touro sagrado. Depois roubou o fogo dos deuses e deu aos homens. Passou a eternidade preso por correntes numa rocha. Durante a noite, os abutres lhe comiam o Fígado. Pela manhã, ele se renovava, para voltar a ser comido na próxima noite. Na Mitologia Grega, é muito comum o combate entre o mundo dos deuses e o mundo dos homens. Normalmente porque os homens tentam sobrepujar os deuses com uma invenção recente de nossa jornada evolutiva, que é a astúcia, a capacidade de esconder as nossas verdadeiras intenções e trapacear os deuses, o que sempre acaba sendo um mal negócio, já que os deuses tem acesso às verdadeiras intenções dos humanos. A maldição continua, entretanto, quando o homem e sua Razão tenta manipular o mundo à sua vontade, tentando operar na Matéria e duvidando de tudo que seja Metafísico, isto é, fora do campo do mundo físico. A Psique, por exemplo, que existe num campo paralelo e interdependente com o mundo físico, mas não faz parte dele, para muita gente, não existe, ou é um produto dos nossos neurônios.
Para um budista, a metáfora prometeica poderia facilmente representar a natureza impermanente da vida. Nossas aspirações prometeicas, de atingir o mundo dos deuses através de nossa astúcia e das capacidades da Mente terminam em um permanente sofrimento, que se renova o tempo todo. A Mente tentar superar o sofrimento é como tentar se levantar segurando os próprios cabelos. A Mente não pode curar a ferida que a própria Mente criou. Talvez por isso que a Psicologia Cognitiva esteja se aproximando do Budismo, através do Mindfulness. Determinadas memórias, determinadas feridas, não podem ser reparadas pelo entendimento. É preciso olhar para elas, integrá-las, para que possam, um dia, deixarem de doer ou mudar a sua característica. Jung chamou isso de Função Transcendente: a capacidade da Psique de saltar para além de seu Conflito, gerando uma nova síntese. Haveria como aproximar a Função Transcendente com o Mindfulness? Pensa esse escriba que sim.
O Mindfulness tem como princípio um treinamento constante em estar completamente presente no Presente. Nossa Mente divagadora está sempre preocupada com o Futuro, ou com o que ocorreu no Passado. Quando viajamos, levamos fotos e lembranças para podermos ficar presentes na recordação. Podemos viver então o vivido na hora que prestamos atenção ao que passou.
O Mindfulness tenta talvez provocar uma saudade do Presente. Um exercício usado em suas vivência é dar uma uva passa e pedir para a pessoa mastigá-la por uns cinco minutos, até ela se dissolver no ato de mastigação em si. Eu diria que é mastigar a uva passa com saudade dela, pois o seu gosto vai se transformando tanto durante o processo que as pessoas notam que nunca comeram verdadeiramente uma uva passa na sua vida. Ou talvez nunca tenha realmente sentido o gosto da comida e da vida.
Uma Psicoterapia de base analítica é, em grande medida, uma expedição ao Passado, onde as experiências lá vividas são recuperadas, muitas vezes revividas e colocadas em perspectiva. Só que não é a Mente que cura a Mente. O ato de Atenção a esses conteúdos e o Olhar do terapeuta sobre essas cenas faz com que mudem esses nós que se estabelecem em nossa Psique por tantos anos. Essa é a Função Transcendente: de repente, o que doía muito, já não dói tanto assim e os ressentimentos, tão longamente alimentados, deixam de ter tanto valor ou de ocupar tanto espaço na vida psíquica do paciente.
Como na música de Guilherme Arantes: "Amanhã/ Ódios aplacados, temores abrandados/ Será pleno..." Esse é um projeto terapêutico de cada dia: aplacar os ódios, abrandar os temores. Mas não será o Amanhã que será pleno. Será o Agora.

4 comentários:

  1. bom texto, Dr. Marco..se tiver interesse e 5', sugiro a leitura do texto do link abaixo, do Dr. Roberto Cardoso...trata-se do mesmo paradoxo - a mente tentando interpretar a própria mente - porém no contexto da meditação...

    ps: não nos conhecemos, porém lhe envio saudações alvinegras...06 para ser mais exato...:)

    Um abraço

    http://www.redepsi.com.br/2010/06/05/o-ladr-o-n-o-pode-pegar-o-pr-prio-ladr-o/

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  2. Por isso espero por esses textos toda semana ����

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  3. Grande Mestre, a semana não comece bem sem seus textos !!!

    Edison

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  4. A primeira vez que estive com o Dr. foi no workshop "Quando não ouvimos os Deuses Adoecemos". Sou da área do Direito.
    O tema me ajudou profundamente, inclusive ao poder compartilhar as informações com duas pessoas que estão se tratando de panico. E o compartilhar ajudou muito essas pessoas queridas.
    Novamente lhe agradeço por postar esse texto, pois o final dele é o resumo do estado que me encontro. E tambem está no texto detalhes para se identificar o trabalho de um excelente analista.
    "O ato de atenção a esses conteudos e o olhar do terapeuta sobre essas cenas..."

    Não é magica, porque no meu caso demorou muitos anos para isso acontecer. Mas estava la minha analista, com o olhar em todas as cenas, e como isso foi importante para mim.

    E quando a função transcedente aconteceu... realmente o que é pleno é o agora!
    E quando compartilhamos a plenitude, sem alerdear nada de nossas vida, as vezes nos perguntam: Para que voce faz terapia ?
    E eu penso, realmente acho que não há como responder.
    Apenas um gesto nesse momento: respirar, olhar profundamente o outro, e sorrir.


    Patricia Euf.

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