domingo, 18 de dezembro de 2016

O Espelho de Eco

Muito se fala sobre Narciso. A psicanálise tornou-o uma figura central, gerando o termo Narcisismo. O meu babado mesmo é com Eco e com Nêmesis nessa história. Sim, eu sei. Parece um início meio maluco de post. Mas vamos contar a história.
A mitologia conta a história dessa Ninfa chamada Eco. Era dessas mocinhas que falam o tempo todo e não toleram o ruído do próprio silêncio. Onde estava Eco, a conversa não parava. Sobretudo o barulho de sua voz. Zeus, que não era bobo nem nada, começou a aproximar a ninfa de sua esposa, Hera, para distraí-la enquanto dava suas escapadas. Hera descobriu, como sempre, o ardil de seu marido. E castigou a pobre Ninfa, tirando-lhe a capacidade de iniciar a conversa. Eco só poderia responder se alguém lhe dirigisse a palavra. Estava inaugurada a Psicanálise, e não é à toa que o primeiro paciente era um Narciso.
Eco teve que engolir esse desaforo, pois fora a mais poderosa das deusas que lhe deu essa condição. Não sabia que seu infortúnio estava apenas começando. Foi passeando pelos bosques da Mitologia que Eco se apaixonou perdidamente por um rapaz mais belo que os deuses. Sim, ele mesmo, Narciso. Eco fez o impossível para atrair a atenção dele, mas não conseguia usar a sua voz. Os seus gritos ficavam abafados, como em nossos piores pesadelos. Narciso era meio pop star e não dava atenção para os apelos das fãs. Eco feneceu em sua tristeza, até morrer. As ninfas foram a Nêmesis, a deusa temida por restabelecer as medidas e o equilíbrio das coisas. Nêmesis pronunciou que Narciso iria também viver um amor impossível. Sabemos qual foi. Narciso apaixonou-se pela sua imagem refletida no lago, e ficou tão absorvido por esse amor que também definhou e morreu. O final do mito é belíssimo, como é a poética dos mitos: Narciso tornou-se uma flor muito bela e Eco passou a morar nas cavernas, ecoando as vozes das pessoas.
Muito se fala sobre a nossa época de excessos e de narcisismos enlouquecidos, mas nosso tempo de hipermídia é o tempo de Eco. É ensurdecedor o barulho nas mídias sociais e antissociais. Todos querem ser ouvidos. Uma grande avenida da cidade ou uma escola podem ser invadidas por vinte gatos pingados protestando contra PEC dos Gastos ou contra a máfia das merendas. A PEC é aprovada e as merendas continuam ruins, e os trabalhadores se atrasam no congestionamento e os alunos perdem as suas aulas e fecham o ano com metade da matéria que precisavam aprender. Ou menos.
As redes sociais gritam, os grupos de WhatsApp gritam, tudo viraliza como um blábláblá vazio. Esse é o paradoxo de Eco: quanto mais fala, mais vazia é a sua fala. Hera parece cruel, como a vida também parece, mas tenta ensinar Eco a fazer algo impossível em nosso tempo, que é ouvir antes de falar. Ou tolerar o próprio silêncio. Eco não aprende com a primeira lição, e isso não é bom, nem na Mitologia, nem na vida. Eco precisa, de qualquer forma, ser vista. Chamar atenção sobre si. Precisa ter mais likes, mais visualizações e retweets. Só quando ela é vista, ou ouvida, ou obriga o Outro a ouví-la e a reconhecê-la, só nessa situação que Eco sente que existe. Sou vista, logo Existo. O Outro pode ser tão cego quanto Narciso. Eco pode morrer buscando o olhar que não vai estar lá. Caetano disse que Narciso acha feio o que não é espelho. Eco só se enxerga no espelho dos olhos do Outro. Ou acha que é lá que vai se achar.
Nêmesis parece o Juízo Final em pessoa, mas promove uma transformação delicada das duas situações: Eco para de se procurar nos olhos dos outros e para de falar pelos cotovelos. Ela passa a espelhar a voz do Outro, para que ele possa se ouvir. A dor, o sofrimento da busca infrutífera termina quando Eco vira a Receptividade e a Escuta. Ela pode, enfim superar o próprio narcisismo e devolver para quem busca o reconhecimento tão esperado. Se parar de buscar a fama e o reconhecimento, pode começa a ver, realmente, o que antes não via. Ou ouvir, pela primeira vez, a beleza de sua voz.

2 comentários:

  1. nossa, Dr., que texto bacana...parabéns!

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  2. Muito legal mesmo!

    É o que falta no mundo: ouvir, para depois falar!

    Obrigada pelo texto!
    bjos,
    Lucia Andrade

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