domingo, 4 de dezembro de 2016

Como Lágrimas na Chuva

Ontem estava num Shopping fazendo hora quando a loja de eletrodomésticos despencou em dezenas de telas de LED as imagens dos caixões chegando no estádio da Chapecoense, Chovia forte e as gotas de chuva se misturavam com as lágrimas das pessoas nas arquibancadas. Familiares abraçavam os caixões, com olhares ocos e cansados. Pensei que eu mesmo já estava cansado de ter passado a semana enterrando os mortos e ouvindo os relatos médicos sobre os poucos sobreviventes. Soquei o ar no carro quando soube que o lateral Alan Ruschell tinha mexido os seus dedos, após cirurgia delicadíssima em sua Coluna. Isso sim foi um gol de placa. As famílias com as fotos dos caras que menos de uma semana antes estavam em campo no jogo morno e feio que deu o título brasileiro ao Palmeiras. Uma sensação clara do absurdo e da morte absurda.
Eu estava cansado das homenagens, das lágrimas sempre vindo ao ouvir e saber das histórias, como a estarrecedora imprudência e ganância que gerou a tragédia. A Chapecoense é um time pequeno, com orçamento apertado, assim como a LaMia, empresa boliviana cujo dono pilotava o jato sem combustível que se espatifou a poucos quilômetros de Medelin. Esse é o resultado de nossa moderna gestão, aumentar o lucro e diminuir os custos? Diminuir o custo a qualquer custo?
Existe, nas sessões de análise lacaniana uma técnica, do Tempo Lógico, em que a sessão é interrompida após uma Fala de extrema significância ser proferida. O corte abrupto e o silêncio que se segue jogam o analisando no meio de um grande desconforto. Não adianta se perguntar os porquês daquela interrupção. O que fica são as frases, os hiatos, as fendas do que se estava falando e como isso pode lançar o sujeito em outros significados. Para isso ele tem que tolerar o silêncio no meio de tanto barulho e tanta fala vazia intoxicando nossos ouvidos. Só assim podem surgir novas leituras, novos entendimentos.
Essa tragédia teve o efeito de um tempo lógico lacaniano: um time pequeno, de uma cidade pequena, todos de origem humilde e carreiras feitas em times de segundo escalão, finalmente chegavam a uma final de um torneio sulamericano, contra o campeão da Libertadores, de uniforme verde e branco como o dele. Era o grande momento de todos eles, da cidade, dos jornalistas da empresa que cobria esse campeonato esvaziado pelos cartolas da CBF. Tudo isso foi interrompido abrupta e violentamente. Depois da explosão, um terrível e cortante silêncio.
A maioria das pessoas começou a sentir a falta de pessoas que nem sabiam que existiam. O pequeno time, da pequena cidade, passou a ser o nosso xodó. Passou a representar todos os projetos inacabados, todas as perdas e as derrotas abruptas que nos deixam com as lágrimas misturadas às gotas de chuva. A morte prematura nos deixa com o gosto amargo do quase. As faixas proclamam a Chape campeã. Não foi. A Chape é a campeã das coisas inacabadas. Para nós, que ficamos e olhamos as imagens nas TVs dos shoppings, resta a tarefa de terminar o que foi interrompido e completar o incompleto. O silêncio é muito incômodo e, no meio dele há o absurdo. O absurdo nos convida à ação.

3 comentários:

  1. Dr.spininelli : como não chorar ! Emocionante.... Beijos

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  2. Colocando em dia a leitura do seu blog, me deparei com esse texto onde cada palavra foi escolhida com cuidado para tratar sutilmente de uma tagédia coletiva recheada de apelos sensasionalistas, incansavelmente explorados pela imprensa. Parabéns por esse trabalho irretocável e encerrado com chave de ouro pela linkagem entre silêncio, absurdo e ação.

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