sábado, 23 de setembro de 2017

Até o Osso - A Pedra

Para quem não leu o último post, uma rápida atualização: 1 - Faltam mais três posts para esse blog terminar; 2 - Estamos falando das fases de uma Transformação Psíquica, usando como base o filme do Netflix - “To the Bone” , traduzido (?) como “O Mínimo para Viver”. As fases da Transformação foram chamados por esse escriba de : 1 - A Perda; 2 - A Pedra; 3 - A Letra; 4 - O Perdão. Na verdade, gostei dos Pês que iniciam e da sonoridade das palavras. Os sons e os trocadilhos. Mas não é disso que vou falar.
A Perda inicia a jornada. Pode ser uma perda boa. Quando nasce um filho, você perde tudo o que foi a sua vida antes disso. Nada será como antes. É uma ótima perda. Existe uma porcentagem de pais tendo Depressão Pós Parto. Será que somos uma geração pilhada demais? Depois de 612 posts desse blog, podemos concluir que sim. Somos. O fato que a Perda seria melhor chamada de “Ponto de Mutação”, “Ponto de Virada”. Algo assim. No caso do filme “To the Bone”, Ellen faz um blog ou posta nas redes sociais seus desenhos e sua cultura anoréxica. Sim, existem grupos de Cultura Anoréxica, onde se partilha qual o melhor caminho para a morte por inanição. Ellen posta seus desenhos e fala sobre o que sabe, que é o Desespero e o mergulho na Dor. Vivemos uma civilização tão Apolínea em sua obsessão pelo correto, o simétrico, o design perfeito para a sua vida e o Photoshop magnífico para seu perfil no Instagram, não é? Ellen mostra o seu caminho de dor e de visceralidade, na mutilação do próprio corpo que não consegue evitar. Ellen é Dioniso despedaçado. É o espelho invertido de nossa sociedade obesa. Uma de suas fãs se suicida, e deixa o bilhete dedicando o ato a ela, sua musa. Ellen descamba na Anorexia, entra e sai de clínicas e fica pulando entre as casas dos pais separados. Ela não sabe, mas esse é o Ponto de Virada.
Uma família despedaçada, se engalfinhando na terapia familiar. Um pai ocupado demais correndo atrás de dinheiro. Ananké berrando entre as refeições (se o leitor quiser saber sobre Ananké, favor ler o post anterior). Descer ao Inferno é mais fácil que voltar. Para voltar, a Pedra. Ela vai achar o caminho ou se perder de vez.
No treinamento dos feiticeiros e xamãs mexicanos, uma das passagens da iniciação era viver ou trabalhar com o Tirano. Chefes, cônjuges, figuras parentais, tudo serve para treinar esse núcleo indestrutível que precisamos criar internamente, quando vivemos sob pressão. Os xamãs passam por provas inacreditáveis e vibram quando encontram um bom Tirano para treinar a resistência ao sofrimento. Ficariam felizes hoje com a vida no Mundo Corporativo. Temos muito tiranos por lá.
Enquanto a Pedra não se forma, estamos sempre dilacerados pelas dúvidas, os medos, os fracassos. A Internação de Ellen na Clínica Limiar tem essa característica de trabalhar, a todo custo, a Pedra. Ellen tem horror de engordar. Se comer, imagina que vai ficar gorda, e mais gorda e mais gorda até explodir. Ela tem pavor de comer. Pavor das calorias. Para tomar as decisões, para enfrentar o medo aterrorizante, ela precisa tolerar a frustração, o medo, as inevitáveis decepções que todo dia a vida joga em sua cara. Para passar o limiar, é preciso ter um núcleo forte. Resiliente. Essa é a Matéria Prima da Pedra Filosofal. Quem não cria a Pedra Interior, passa a vida escorregando em um Ego de gelatina. Por isso é importante passar pelo crivo da vida. E muitos se perdem no caminho.
Na Perda e na Pedra, Ellen sente a dureza da caminhada. O calor da prova, e vai ser provada quase todo dia. Ela e as outras meninas internadas tentam a todo custo fugir da Comida, que significa Engordar. Engordar significa crescer. Todas sabem que Ananké, a deusa da Necessidade, manda que comam, que voltem para a Vida, que enfrente o Medo terrível de perder o controle.
Terapeutas passam o dia moldando as pedras, ou vendo as pedras se fortalecerem muito, muito devagar. São muitas tentativas e muitos erros para se ganhar consistência. E consciência. Vivemos numa época em que ninguém mais quer bater o creme de leite até ele virar manteiga.
O filme mostra o papel da equipe, mostrando os nervos expostos do Real: a balança, as refeições, a necessidade de encontrar a vida onde ela se perdeu, em meio aos vômitos e os laxantes. Acho que perdemos, como sociedade, a capacidade de dar esperança para essas crianças durante a jornada. Não tem nada mais cruel nesse filme do que o retrato dos pais, egoístas, autocentrados e, acima de tudo, autocomplacentes. Talvez esse narcisismo primário que deixe os jovens à deriva.

3 comentários:

  1. nossa, Dr., que presente esse epílogo do blog...muito bom mesmo...talvez por estar passando pelo momento de fortalecimento da minha pedra (após dez anos vagando com um ego de gelatina) consigo compreender suas palavras e sorve-las com um imenso prazer....fazendo uma analogia com a contraparte oriental da psicanálise o budismo (e pra mim,o zen em específico) lembremos que o primeiro "mandamento" é o no-self, o que causa profunda confusão nos neófitos....junto tudo (mitologia, psicanálise, budismo e neuroplasticidade) chegamos às mesmas percepções e conclusões..

    Joseph Campbell e Xaquiamumi Buda teriam orgulho desse grupo derradeiro de posts :)

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  2. O Blog fará falta...

    Pra você Marco:

    Companheiros

    quero
    escrever-me de homens
    quero
    calçar-me de terra
    quero ser
    a estrada marinha
    que prossegue depois do último caminho

    e quando ficar sem mim
    não terei escrito
    senão por vós
    irmãos de um sonho
    por vós
    que não sereis derrotados

    deixo
    a paciência dos rios
    a idade dos livros

    mas não lego
    mapa nem bússola
    porque andei sempre
    sobre meus pés
    e doeu-me
    às vezes
    viver
    hei-de inventar
    um verso que vos faça justiça

    por ora
    basta-me o arco-íris

    em que vos sonho
    basta-te saber que morreis demasiado
    por viverdes de menos
    mas que permaneceis sem preço

    companheiros

    |Mia Couto|

    Beijo.............

    Rosana

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