domingo, 3 de setembro de 2017

As Pedras nas Mãos

Um caso que esteve e está nos jornais de hoje e da semana é situação repetitiva de homens sendo presos em transporte público após ataques sexuais a mulheres. A situação causou escândalo quando os agressores foram soltos pelos juízes sob alegação de que era um Ato Libidinoso, não um Estupro. Os juízes foram execrados e espinafrados pela mídia, que sugeriu que a brandura da deliberação se deu porque o objeto da agressão sexual não era irmã ou filha dos juízes. Não sei sobre o caso do Rio de Janeiro, mas vou colocar a minha colher no caso do rapaz de São Paulo, Diego de Novais, preso novamente neste final de semana por repetir o mesmo ato, na mesma região (entre a Avenida Paulista e Brigadeiro), tendo sido dominado pelos passageiros e levado para a Delegacia e para as manchetes de jornal.
A moderna Neurociência foi inaugurada em meados do Século Dezenove, quando um operário chamado Phineas Gage sofreu um acidente de trabalho, na construção de uma ferrovia em Vermont, EUA. Uma carga de explosivo fez entrar uma barra de ferro abaixo de sua bochecha, destruindo sua órbita ocular e saindo pelo Crânio. A barra de ferro atravessou massa encefálica da região Frontal de seu Cérebro. Para assombro dos médicos e colegas, Phineas Gage sobreviveu ao acidente praticamente sem sequelas e pode, depois do período de convalescença, voltar ao trabalho. Mas nunca mais foi o mesmo: passou a ser desatento, desrespeitoso às ordens e à chefia. Passou a beber demais e a perder empregos. Não obedecia mais comandos nem aceitava conselhos. Terminou a vida como atração de circo, o homem que sobreviveu à uma barra de ferro na cabeça. Seu caso elucidou o papel do Córtex Orbitofrontal no controle de impulsos e organização de cognição e de comportamento. O seu Crânio e a barra de ferro são hoje peças de museu.
Diego de Novais é nosso Phineas Gage trágico e tupiniquim. Mais de um século depois ele sofre com a mesma ausência de tratamento e recursos que Phineas sofreu há um século e meio atrás. A sua tragédia não se dá por falta de conhecimento científico, mas pela conjunção de uma família pobre e com extrema privação social e cultural e a dificuldade de estabelecer e manter esses casos em tratamento. Diego sofreu um acidente com história de TBI (Traumatic Brain Injury), lesão cerebral por trauma. Ficou quinze dias internado no Hospital das Clínicas, passou por duas cirurgias e saiu praticamente ileso, como Phineas Gage. Como Phineas, nunca mais foi o mesmo: não parou em emprego, tornou-se isolado socialmente e quieto. Três anos depois do acidente, começou a ter o comportamento sexual abusivo/impulsivo. Já teve muitas passagens e BOs por repetir o ato impulsivo de se masturbar se esfregando em mulheres dentro de coletivos. A característica orgânica de seu comportamento se mostra na repetição pueril do ato, sem controle da ação e previsão de consequências, mesmo com a repercussão que teve nessa semana. Ouvi uma entrevista de seu pai na rádio e fiquei tocado por aquele senhor, evidentemente muito simples e semianalfabeto, dizendo que esperava que seu filho recebesse tratamento para poder entender o que tinha feito e pedir desculpas às mulheres atacadas. Lamento dizer que isso não vai acontecer. O que o tratamento pode fazer é reduzir a sua impulsividade e ensinar a modular os impulsos, mas, depois de onze anos do acidente, o rapaz já perdeu muito de sua reserva cognitiva. Ele não vai entender a complexidade da situação ou o sentimento das vítimas.
O problema se deu pela conjunção do despreparo e dificuldade de entendimento de sua família para a busca de ajuda e a falta de recursos de nossa Saúde Pública. Some-se o fato que Diego tem um quadro clínico que está na franja, na exata interface entre a Psiquiatria e a Neurologia. O seu quadro é psiquiátrico, de perda de capacidade cognitiva e transtorno de controle de impulsos e comportamento sexual impróprio, mas a lesão que provocou o quadro foi neurológica. O quadro pode ficar pinguepongueando entre as especialidades, sem alguém que o assuma. Quem deve assumir o caso, na minha opinião, é o Psiquiatra, que deve estar aparelhado para entender e medicar o rapaz. Isso acontece, em nossa Saúde Pública? Melhor não perguntar.
O caso todo mobiliza uma imensa compaixão: compaixão até pelo juiz, que opera no meio de nossa desgraceira social e não pode encarcerar alguém que se masturba no ônibus, pois não temos mais onde alocar gente que comete crimes muito piores. Compaixão pela família e pelo rapaz, um excelente candidato a ser espancado e morto na rua ou na cadeia, agora que sua foto está em todos os jornais. Compaixão até pela Imprensa, tomada por justa fúria feminista diante das agressões sexuais que mulheres sofrem em coletivos diariamente, mas pinta como monstro um deficiente.
Vivemos um período de notícias e fatos transmitidos em tempo real que subtraem nossa capacidade de reflexão e entendimento. A falta de entendimento é a origem dessa e de outras tragédias de nossa Saúde Pública.

Um comentário:

  1. perfeita análise, Dr...eu mesmo, depois de tanto falar besteira, parei de dar opinioes sobre assuntos sem antes estudar um pouco...

    ResponderExcluir