quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Até o Osso

Numa das cenas iniciais do filme do Netflix “To the Bone” (“traduzido” lamentavelmente em “O Mínimo para Viver”) a madrasta de Ellen, a personagem principal desse filme novamente polêmico, mostra o corpo desnutrido e caquético de sua enteada com o celular e pergunta: você acha isso realmente bonito?
Desta vez, a polêmica do Netflix é com a Anorexia Nervosa, Em Thirteen Reasons Why, a polêmica era sobre suicídio em adolescentes. Podemos reunir todo o material do gênero e criar um grupo, sobre Relatos de um Amadurecimento Difícil. Álcool, Drogas, Bullying, Skin-Cutting, Violência e Suicídio, são muitos os Mata Burros que obstruem o caminho do jovens, que há tempos espelham nossos tempos revoltos.
A madrasta de Ellen é um personagem bem interessante, pelo estereótipo de madrasta perua e sem noção, que parece estar empurrando a enteada para a morte. Com o decorrer do filme dá para perceber que ela é a única figura parental que persiste no tratamento e enfrentamento do inferno pessoal que Ellen está passando. Ela que trás um bolo inacreditável. com hamburguer de açúcar escrito : “Coma Ellen”. Dois erros brutais. Na Anorexia, o objetivo nunca é a beleza em si, a magreza é um valor absoluto. Uma pessoa portadora desse Transtorno Alimentar não consegue enxergar como está o seu corpo, muito menos atribuir alguma beleza àquele corpo de prisioneiro do Holocausto.O que está em questão é o medo, o horror de ganhar peso. O medo carregado de terror de ver o corpo mudando e ganhando forma. Portanto, mostrar o espelho e perguntar se acha aquilo bonito é duplamente errado na Anorexia Nervosa: a pessoa não enxerga a magreza e não quer ser bela ou desejável, apenas quer evitar o ganho de peso mesmo que à custa da própria vida. Um bolo escrito (“Coma Ellen”) vai apenas criando um nojo e uma repulsa progressiva por qualquer tipo de comida. Num trecho do filme, Ellen menciona que morre de fome e sonha com comida a maior parte de tempo. Mas morre de medo do ato de comer.
Na Internet e na blogosfera existem grupos de apoio para Anorexia Nervosa. A questão é os Pro Anas, grupos que defendem e estimulam o comportamento de restrição alimentar, magreza extrema e uso de medicamentos para reduzir o peso. Ellen tem um desses blogs, o que acaba criando um problema. Uma de suas “seguidoras” morre, e seus pais enviam e publicam as fotos do que restou de seu corpo. A dificuldade de inserção de Ellen, sua tendência autodestrutiva se exacerbam depois desse evento. Não ganha mais peso e vive sendo expulsa das clínicas e dos tratamentos.
Ananké é a deusa grega da Necessidade. Não sei se alguém percebe, mas ela aparece na Bíblia bem cedo. E eu sei que Bíblia não é um tratado de Mitologia Grega. Pois logo no Genesis, quando Elohim expulsa Adão e Eva dos Jardins do Eden, ele profere as tarefas, ou os castigos: “Eva, parirás em dor”; “Adão, ganharás o pão com o suor de teu rosto”. Aí está Ananké. Ou a boa e velha Realidade. Toda a criação da vida envolve a dor. E ganhar o pão é uma tarefa bem complexa desde que deixamos o Eden. Trabalhar, se formar, produzir, consumir. Nasça, estude, cresça, consuma, morra. Essas são as leis da deusa Ananké. Elas pareciam mais simples no tempo de meus pais. Parecem mais difíceis no tempo de meus filhos. Eu sei que Ananké anda fazendo a festa nesse tempo de transição de Economia, de mundo, de Consciência. Muita gente está sentindo o descolamento e a falta de encaixe nas leis de Mercado. Sim, as leis de mercado são o lugar de Ananké.
Ellen parou a faculdade, não tem amigos e seu blog foi encerrado pela morte horrível de uma seguidora. A sua mãe é uma Bipolar em constante enfrentamento de quadros depressivos e seu pai trabalha o tempo todo e não aparece no filme. Mas é sempre um personagem das conversas. “Seu pai queria ter vindo, mas teve uma reunião importante”; “houve um imprevisto e seu pai não vai voltar”; “Você sabe, alguém tem que pagar as contas”.
A mãe destroçada e o pai obcecado pelo trabalho deixam Ellen nas mãos de Susan, moderna madrasta dos contos de fada. Susan não para de falar. Não entende nada do que está acontecendo e lembra a Ellen que ela não tem para onde ir. Ananké? Sim, ela mesma.
Ananké é a deusa da passagem estreita. Angústia e a sensação de aperto na garganta deriva de Ananké. Como escrevi no último post, nossa vida é como uma sequência de estações e transições. As transições estão cada vez mais difíceis e muitos jovens estão morrendo para fugir da passagem apertada do Real. Os terapeutas trabalham freneticamente nessas transições. Como o psiquiatra de Ellen, que vai receber as chicotadas de sua língua irônica.
Acho que o filme começa com a Perda: Ellen perde seu único contato com o mundo. Como diria Rita Lee: “Não adianta chamar/ Quando alguém está perdido, procurando se encontrar”. Ellen está perdida. O filme vai descrever a sua jornada em meio à Escuridão. Vamos falar sobre isso nos próximos e derradeiros posts.



Um comentário:

  1. excelente texto, Dr. "Relatos de um amadurecimento dificil" foi preciso...obrigado

    ResponderExcluir