domingo, 22 de abril de 2012

A Dialética da Duração

Há uma frase do escritor James Joyce que é muito citada: “A História é um pesadelo do qual eu tento acordar”. Sempre achei que a sua tradução está errada. O artista não tenta acordar da História. Tenta, antes, escapar da prisão do tempo. Sidarta Gautama, o Buda, dizia que o começo de todo sofrimento de nossa condição humana deriva da ânsia, da eterna sensação de vazio que nos impele e tortura, o tempo todo. Pois a ânsia pode ser derivada de nossa compreensão limitada do tempo.
Um dos trabalhos do terapeuta é a recuperação de lembranças. Particularmente das lembranças que produzem um estrago permanente. Não é à toa que muitas psicoterapias buscam uma arqueologia de nosso sistema de crenças e dos sistemas de medos que determinam, mais do que o desejável, nosso comportamento e nossa busca. Como isso se manifesta? Lembro de um caso antigo, onde uma menina era bastante pressionada por um medo irracional de seus pais. Ela era rebelde, já tinha aprontado algumas, mas nada justificava tanto medo. Conversei com os pais que me revelaram uma história trágica e oculta de todos, de um avô que cometera um crime, algumas décadas antes. Se não me engano, ele matou a própria avó da paciente, o que era um segredo de Estado na família. Os cientistas poderiam debochar muito disso, mas o fato é que esse ato assassino ficou gravado como medo nos pais, que estranhamente projetavam o medo da repetição da tragédia em sua filha. O terapeuta é o arqueólogo que vai desenterrar essas memórias e esses medos que muitas vezes pautam o comportamento e o mito fundador de uma família.
Podemos dizer, então, que uma forma de sofrimento humano deriva da transmissão contínua desses medos e dessas mágoas que passam de geração em geração. Outro dia, ouvi essa frase, traduzida do Inglês: “Trabalhe como se você não precisasse do dinheiro; Ame como se você nunca tivesse sido machucado e dance como se não tivesse ninguém olhando”. Parece piada, mas essa pequena frase resume as três formas de sofrimento que temos com a passagem do tempo: trabalhamos, gostando ou não, com a percepção que precisamos da grana. O dinheiro traz a percepção do medo de ficarmos sem ele. O nosso medo do futuro. Lembramos também das dores, das experiências que nos machucaram. Perdemos a capacidade de amar, pois já sofremos decepções. E dançamos com medo do ridículo.
Sabemos da nossa finitude e de que o nosso tempo é finito. Temos medo da passagem do tempo e do que ele possa trazer. Tentamos criar salvaguardas, seguros, poupanças. Gastamos muito tempo com a antecipação do devir e do que ele possa trazer. Temos medo das dores reais ou imaginárias de nosso passado, como fantasmas que aparecem para nos assombrar. Perdemos, entre esses dois medos, a experiência da duração, o único lugar onde a vida se passa. Estou escrevendo na frente da TV. O Corinthians está perdendo da Ponte Preta, a torcida roendo as unhas com a passagem do tempo. Ninguém consegue aproveitar o passe bem dado, o chute colocado, a duração do jogo. Alguém torce para o tempo passar devagar, outros rezam para que ele corra. Essa é a cilada que a nossa mente intencional nos propõe: queremos apressar ou brecar o tempo, ele se comporta sempre ao contrário de nossa vontade. Não conheço quase ninguém que goza da passagem do tempo e de sua duração.
Hoje vi uma criança tomando um sorvete muito lentamente. Ela gozava o melhor dos tempos, o tempo que deixa de existir, como se estivesse congelado.

8 comentários:

  1. Parabéns por mais esse post sensacional, doutor!
    Tema para refletir... sempre.
    Adorei.
    Obrigada
    Sonia

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    1. Obrigado, Sônia. Depois acertamos a sua comissão pelos elogios. Beijão.

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    2. Obaaaa!!! Até que enfim você entendeu, doutor!!
      Finalmente... a comissão!!!
      Rsrsrssrrss
      Abraços
      Sonia

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  2. Oração ao tempo _ Caetano _ http://www.youtube.com/watch?v=2NUdznkCZ74

    Tempo Tempo Tempo Tempo
    Quatro Tempos
    Quatro Ventos
    Quatro Cavaleiros

    “Trabalhe como se você não precisasse do dinheiro; Ame como se você nunca tivesse sido machucado e dance como se não tivesse ninguém olhando”.

    Querido, obrigada pela mensagem. Um abraço.

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    1. Oi Spinelli,

      Isto é bíblico: "Olhai os lírios do campo.....Não vos inquieteis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã já terá as suas preocupações. Bem basta a cada dia o seu trabalho"
      Bjos,
      Lúcia

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    2. Obrigado. Uma das músicas que tocava na minha cabeça enquanto eu escrevia esse post era a Oração ao Tempo, do Caetano. Abç

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    3. Que Legal! Em qual outra música pensava?
      Você poderia falar um pouco sobre os Obrigada.

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  3. Oi, Lúcia. Acho que esse trecho do Evangelho vale um post só para ele. Abç

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