sexta-feira, 6 de abril de 2012

O Sonho de Jung

Para os poucos, e bons que acompanham essas mal traçadas, vou ser mais técnico nesse post, então se ficar chato ou incompreensível, continuem navegando.
Há uma passagem no filme de David Cronenberg, que já comentei em outro post, “Um Método Perigoso”, em que Jung está viajando com Freud para a América e conta para ele, no deck do navio um sonho interessante: “Jung estava fazendo uma viagem, na fronteira entre Áustria e Suiça. As bagagens estavam presas na fronteira e havia um barqueiro se movimentando. Era um homem triste e alguém comenta que ele não estava realmente lá, mas era um homem que já havia morrido, mas não sabia como morrer direito”. Freud interpretou o sonho como uma alusão à relação deles. A fronteira entre Suiça e Áustria era a relação entre eles, já que Freud era austríaco e Jung, suíço. Para ele, o barqueiro morto-vivo era uma alusão à opinião de Jung sobre ele, alguém que já estava superado. Mencionou também que o sonho expressava a hostilidade inconsciente de Jung,o filho, contra Freud, o pai. Jung ficou perturbado com essa interpretação e, na minha opinião, com toda razão. O rompimento entre eles estava a caminho e Freud tinha uma certa fixação na estrutura arquetípica do Grande Pai sendo destituído pelos filhos. No começo da relação com Jung pensou que ele seria o seu Príncipe consorte, o continuador da senda psicanalítica por ele criada. Com o tempo, Jung passou a discordar de vários pontos de sua teoria, até o que era uma grande amizade caminhou para a rivalidade e o rompimento. A briga persiste até hoje, um século depois do quiproquó. Mas não é sobre isso que eu quero escrever.
As diferentes interpretações marcam as diferenças entre a interpretação redutora e a amplificação simbólica. Jung tentava sempre uma amplificação dos conteúdos dos sonhos para além dos esquemas interpretativos da teoria, psicanalítica ou não. Vou me arriscar nesse sonho. Jung explorou as várias fronteiras da Psique: a fronteira biológica, as mitologias, e, por que não dizer, as fronteiras da espiritualidade. Não há nenhuma alusão do sonho ao barqueiro como figura paterna, Freud ou qualquer outra figura. As malas presas na aduana era realmente uma alusão ao momento que Jung estava passando, tentando transpor as fronteiras de seu pensamento. O barqueiro morto-vivo era uma alusão a várias experiências que Jung teve da fronteira entre a Psique inconsciente e a espiritualidade, o que lhe valeu até hoje a classificação de místico, romântico, religioso e outros “xingamentos” no campo da Psicologia.
O barqueiro que não consegue morrer representa as coisas que não deixamos morrer em nossa vida, o que nos impede de transpor as fronteiras de nossas neuroses. Mas representa também a fronteira que Jung descreveu, mas não entrou, a fronteira do que chamamos de Espiritualidade. Quando tratamos de nossos pacientes e de suas dores, podemos afetar a própria relação com as mágoas e as dores que carregamos, os mortos vivos de nossa tristeza. Isso afeta as coisas que devem e podem, acabar.

4 comentários:

  1. As vezes, pacientes trazem os ventos de Shiva!

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  2. O Barqueiro na Mitologia Grega é a representação da figura do Psicopompo, Mercúrio - o transportador de almas. Somente esse Deus tinha livre passagem para entrar e sair do mundo de Hades, era o mensageiro entre o Olimpo e o Inferno, entre todos os deuses. O Morto precisava ter um Óbulo (moeda de ouro) em sua boca e tres "bolinhos" para sua viagem. O óbulo era o pagamento ao barqueiro e os bolinhos alimento para o Cão Cérbero de 3 cabeças quando o morto chegava no seu "novo lar", os bolinhos serviam para distrair Cérbero enquanto o novo hóspede adentrava nessas terras sem ser destruído.
    Bjs

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  3. Odeio o barqueiro no hospital. Aquele que leva os pacientes em macas/barcas - para a cirurgia - Dizem as enfermeiras: _Estamos esperando o barqueiro... Horrível! Por que escolheram chamar de barqueiro?

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  4. Não há como não respeitar os pensamentos e interpretações de Jung. Ele sempre, ou através de outros feelings, estava a frente de seu tempo, deixando para trás até Freud. Tenho que concordar com o que vc disse no final. Magnífica sintonia com o momento vivenciado por Jung. Se eu estiver errada, que se Freud!!!!!!

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