domingo, 13 de outubro de 2013

Cada Vida, Um Mistério

Campbell disse em uma de suas inúmeras entrevistas que os personagens da Mitologia estavam naquele exato momento em alguma estação de metrô, esperando o próximo vagão. Isso quer dizer que todos nós, sem excessão, vivemos dentro de histórias, de mitologias pessoais, como os personagens das velhas epopeias.
As pessoas em sua maioria, terapeutas inclusive, costumam achar que as velhas histórias da Mitologia não passam de histórias da Carochinha, feitas na aurora dos tempos, quando não havia TV a Cabo e os homens se divertiam inventando lorotas em torno da fogueira. Outro dia estava vendo o documentário sobre os seis títulos brasileiros do São Paulo, o “Soberano”. Careca descreveu o épico gol de empate na prorrogação contra o Guarani, na final do Brasileiro de 86. Para ele, Pita subiu no terceiro andar e desviou a bola epicamente, ela quicou na entrada da pequena área, ele encheu o pé como se não houvesse medo nem amanhã, levando a decisão para os pênaltis, vencida pelo tricolor. Wagner Basílio, um dos piores beques que já vestiram o manto sagrado tricolor, participou diretamente da vitória: foi ele que deu o chutão que acabou na cabeça de Pita e no chutaço de Careca. Mas não é dele que vou falar. Vendo o documentário, posso afirmar que esse Pita que subiu no terceiro andar e deu um passe magistral só existe na mitologia pessoal do grande Careca. Pita subiu todo torto, mal raspou a cabeça na bola e os deuses do futebol, que naquela noite sorriam para o São Paulo, fizeram a bola cair bem ao feitio do gênio da camisa 9 ( se fosse o Luís Fabiano, já teria sido expulso ou estaria machucado, pois o rapaz é pouco afeito aos momentos em que o time precisa dele. e bactéria chamada Affinococcus acaba por acometê-lo. Mas essa é outra história).
Apesar do exagero da narrativa mitológica, como acima demonstrado, não há nenhuma vida que não seja percorrida, todo dia, pelos mitos. Tenho mencionado muito isso nos últimos posts. Sobretudo no tema da Jornada Arquetípica, a que começa com um pequeno evento, um erro, chamado por mim de Erro Fundamental, que arremessa o candidato a herói em seu caminho, em sua peregrinação por essa vida estranha. Uma das coisas que me ajuda a acordar e continuar atendendo, estudando, atendendo, estudando, é essa certeza de que cada vida tem o seu Mistério. Mesmo as vidas trágicas, ou malogradas, ou as pessoas que se agarram a seus medos para não se moverem em nenhuma direção, ainda assim, essa vida tem o seu Mistério e não cabe nem ao médico nem ao terapeuta julgar aonde esse mistério vai dar. O terapeuta deve, antes de mais nada, ser aquele que está ali e lá fica, mesmo quando a maioria das pessoas já teriam desistido ou saído correndo dali.
Uma moça tinha acabado de terminar um casamento que não deveria ter ocorrido. Uma menina mimada como tantas que existem por aí, pequenas ninfas perdidas pelo Facebook e Youtubes, vivendo na inconsciência patrocinada por seus pais cheios de grana mas mendicantes de ideias. Ela resolveu fazer uma cirurgia plástica para celebrar a nova fase de sua vida. O procedimento não deu certo, mudou seu rosto, ela detestou. Foi em outro cara, ficou pior. Em desespero, queria ir para a mesa de novo e aí a coisa ficou realmente complicada, porque os médicos começaram a farejar o perigo. Operar a moça de novo era sinônimo de encrenca. Fisioterapias, tratamentos estéticos, medicamentos e cremes, nada traria de volta o seu rosto antigo. Contei para ela do Erro Fundamental, da ganância do último saque que lançou Ulisses no mar e o fez atrasar em dez anos a sua volta para casa. Esse erro é terrível, as consequências, no caso dela, mais terríveis ainda, mas aquilo também seria uma oportunidade de aprender a esperar, a cuidar de sua saúde estética tanto quanto de sua saúde mental. Pela primeira vez na vida, ela teria a chance de iniciar uma jornada, pois quem tem um desejo, tem um caminho. Ela não teria o seu rosto antigo de volta, mas talvez encontrasse um rosto ainda mais bonito. Ela me olhou com descrença, prometeu pensar no que eu falei. A sua mãe ligou no dia seguinte cancelando o seu retorno. Ela nunca mais voltou e deve continuar a sua peregrinação de cirurgião em cirurgião, procurando pelo rosto que não existe. Ou que talvez nunca tenha existido. Cada vida, um Mistério.

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