domingo, 2 de junho de 2013

A Forca (não a Força) do Hábito

Uma piada antiga entre especialidades médicas, muito provavelmente feita por um cirurgião, é que o clínico sabe tudo mas não resolve nada, o cirurgião não sabe nada mas resolve tudo, o legista sabe tudo mas chega sempre atrasado. E o psiquiatra? O psiquiatra não sabe nada e não resolve nada. Até passar pela primeira crise de Pânico os cirurgiões podem dar boas risadas dessa piadinha.
No livro de José Saramago: “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, um livro profundamente cristão escrito por um ateu anticlericalista, Jesus cura as pessoas e pede para elas não pecarem mais, mas suspira com tristeza ao saber que as pessoas vão repetir exatamente os mesmos erros que causaram suas doenças e logo vão estar precisando de novos milagres. “People don´t change”, diria o Dr House (“As pessoas não mudam”, em tradução livre). Vários estudos demonstram que as pessoas que passam por um evento cardiovascular grave, como um Infarto do Miocárdio, podem ter dois cursos diferentes: mudar radicalmente os seus hábitos alimentares e seu estilo de vida, ou se propor a fazer isso, mas, como as pessoas vistas pelo Dr House, fingir que mudam mas fazem tudo exatamente do mesmo jeito. Não é preciso ser um gênio em estatística para saber que o grupo que se propõe a mudar tem uma sobrevida muito maior do que o grupo que repete os mesmos erros. Tenho um amigo que trabalha no INCOR e me dizia que podia prever o prognóstico dos pacientes observando-os na pista. Aqueles que faziam os exercícios pendurados no celular não demorariam a reinfartar, os que faziam tudo rapidinho para se livrar da tarefa e voltar para a correria também voltariam logo para o cateterismo. Aqueles que começariam a curtir o momento, bater um papo relaxado com os colegas e cumprimentando os funcionários como velhos amigos, esses iriam passar um bom tempo sem dar trabalho. Provavelmente teriam alta. Isso me traz à lembrança uma frase terrível em um livro budista: “as pessoas podem morrer por uma causa mas não abrem mão das causas de seu sofrimento”. (Esse blog anda muito budista ultimamente, o que tem derrubado bem os Page Views. Compaixão, relação com a Morte e outros assuntos espinhosos tem derrubado o Ibope dessas mal traçadas linhas). A frase é uma porrada porque muito verdadeira. Levanta uma lebre ainda mais doída, que é a hipótese que nos agarramos ao sofrimento como se ele fosse o nosso maior patrimônio. A Psicanálise apontou muito bem: a vítima está sempre no poder. Fazemos vários e repetidos concursos para apurar quem sofre mais, quem passou pela infância mais terrível. Mais um dado estatístico: as pessoas que passaram pelos campos de concentração e sobreviveram ao Holocausto tiveram um índice de suicídio e de Câncer bem maior do que a população em geral. As explicações são várias e sempre multifatoriais, mas eu arriscaria dizer que ficar rememorando, ruminando e revivendo as perdas e os abusos impensáveis dos anos de campo de concentração levaram inevitavelmente ao desejo de morrer e se juntar aos que pereceram na insanidade nazista. Borges escreveu que não há perdão, só esquecimento. Ele estava pra lá de certo: quem pode deixar as lembranças se diluindo nos anos que vieram, sobreviveu. Quem ficou rememorando, não. A identificação com o papel de Vítima, sobretudo quando, de fato, a pessoa foi vítima de um abuso impensável, multiplica o sofrimento. E o sofrimento, como já descrito em outros textos desse blog, pode virar uma droga pesada e causadora de dependência.
Não adianta o clinico diagnosticar corretamente, o cirurgião corrigir com seu bisturi, nem o psiquiatra medicar com precisão: modificar os hábitos de sofrimento é sempre o x da questão. A Psiquiatria, que bate de frente com esses hábitos todo dia, é a mais sublime das medicinas (forcei um pouco nessa, não foi?).

2 comentários:

  1. Acho que seus posts andam realmentente muito bons talvez pelo budismo, discussão sobre a morte e compaixão. São assuntos que tocam o fundo da alma....
    Acho que nós seres humanos temos o hábito de sempre lembrarmos mais do que causou sofrimento do que causou alegria e felicidade. A memória é mais forte para o sofrimento....infelizmente...
    bjos,
    Lucia

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  2. Poucos ismos, além do budismo e do junguianismo, explicam o fato de seu texto versar sobre quase tudo o que falei em terapia anteontem, sem tê-lo lido.

    Continue budista,Dr!Eu leio.E gosto.

    Bj;

    D.

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