sexta-feira, 5 de junho de 2015

Spinosa e Eu

Sou muito grato ao filósofo Baruch Spinosa por dois grandes constructos de sua obra: o paralelismo psicofísico e a doutrina dos afetos. Imagino os leitores e leitoras desse blog com uma interrogação na testa: de onde vem isso, cara pálida? Sabemos que esse blog já elogiou o Felipão antes do Sete a Um, já fez previsões sobre resultado de um Big Brother, já discutiu a qualidade de uma média com pão na chapa, e fez recentemente a crônica sobre um cachorrinho puxado na rua por sua dona esquizofrênica, ou seja, há uma variedade de temas possíveis. Podemos falar, eventualmente, até de Psiquiatria. Aliás, falar do incrível Spinosa é falar de Psiquiatria.
É grande a minha admiração pelo filósofo que antecipou em sua obra o Iluminismo, dando preferência à Razão sobre os dogmas de qualquer Religião, o que lhe custou a desgraça e a expulsão de sua comunidade judaica e que viveu uma vida de solidão modesta, de estudos e construção de sua obra. Isso em pleno século XVII.
Irving Yalon, autor de “Quando Nietzsche Chorou” é um psicoterapeuta que gosta de escrever livros de Ficção Histórica, tomando muitas vezes como base a vida de um grande filósofo, que acaba psicanalisado por outro personagem, o que historicamente é um samba do crioulo doido, mas como leitura de entretenimento é divertido. Eu pessoalmente fico sempre frustrado por Yalon se dedicar mais a algumas fofocas da vida dos filósofos do que ao seu sistema de pensamento. Li o seu último livro: “O Enigma de Spinosa”, onde esse defeito não pôde muito se reproduzir: não havia como falar das fofocas da vida do homem de quem não se conhece quase nada de sua vida; até seu retrato pintado é fictício, ninguém sabe como era a cara de Baruch. Yalon fez uma ficção sobre o processo de exclusão de Spinosa de sua comunidade e imaginou que a mesma se deu por conta de suas ideias. Em paralelo, Yallon conta a história de um oficial nazista, Alfred Rosemberg, que confiscou os livros do Museu Spinosa durante a Segunda Guerra, para tentar entender como um judeu, uma raça que ele se dedicou a odiar e perseguir, tinha conseguido construir uma obra gigantesca. Yalon vai construir as trajetórias dessas duas vidas separadas por quase três séculos, unidas pela obra do filósofo.
Spinosa me ajuda de duas formas em minha prática clínica: supera a dualidade cartesiana e delineia uma doutrina de afetos. Descartes fez uma distinção clara entre a Mente e a Matéria, entre Corpo e Espírito. Praticamos uma Medicina baseada quase unicamente no Corpo e suas disfunções. Tem um dedo de Descartes nisso. A Mente seria uma produção do Corpo e estaria sujeita a ele. Nossas doenças mentais são fruto de problemas de nosso Cérebro. Spinosa tinha uma concepção mais avançada que essa, quase um século antes. Para ele, Corpo e Mente são instâncias diferentes mas que operam em paralelo e se influenciam mutuamente. A Neurociência moderna confirmou essa ideia. Os pensamentos e as formações mentais podem produzir mudanças em nosso corpo. A Mente pode produzir desde doenças inexistentes ou até criar situações que determinam pior funcionamento inflamatório ou da resposta imune. O Corpo influencia a Mente e a Mente também cria alterações corporais. Isso parece óbvio para qualquer um, mas tem muita gente que duvida e faz piada desta teoria até os dias de hoje.
Outra ideia spinosiana diz que você não consegue derrotar ou dominar um Afeto, uma Paixão, com a sua Racionalidade. Um Afeto só pode ser suplantado por um afeto mais profundo. Para escolher entre comer ou não a torta deliciosa que está na geladeira não adianta que nosso Cérebro Racional indique que isso vai atrapalhar a dieta, é melhor comer uma maçã ou descascar uma mexerica. Spinosa já sabia que essa argumentação não dá nem para o começo e só serve para comer a torta, a pizza e o sorvete que estão por lá. O único afeto que derrota um afeto é uma paixão visceral por manter a dieta, ou, num caso mais dramático, a paixão de um alcoolista de não recair, tornando o objeto da tentação uma coisa boba, sem graça. A Paixão pelo objetivo tem que ser maior do que a Paixão pelo fruto proibido e pela recaída. Tudo isso eu aprendi com o incrível Spinosa. Uma paixão, um afeto, só pode ser vencido por outro afeto: força de vontade na verdade é força de desejo.

2 comentários:

  1. Mestre, sensacional:
    -"Corpo e Mente são instâncias diferentes mas que operam em paralelo e se influenciam mutuamente"
    -Um Afeto só pode ser suplantado por um afeto mais profundo.

    Obrigado por esses momentos ricos.

    Edison

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  2. It's all about love, anyway...

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