domingo, 31 de maio de 2015

Sobre Rios e Travessias

No último capítulo da série brasileira “Psi”, o psicanalista Carlo, alter ego do também psicanalista Contardo Calligaris está cansado de si mesmo e da prática clínica: reclama que as suas falas estão repetitivas e suas frases parecem ter sido tiradas de um biscoito da sorte chinês. Um colega observa que o trabalho de um psicoterapeuta leva o paciente para a beira do rio, e cabe a ele descobrir a hora de fazer a sua travessia. Carlo responde, de maneira sincera, que bem que dá vontade de dar um pé na bunda de muita gente para ver se caem na água, finalmente. Ao final da série, ele vai tirar um ano sabático, encaminha todos os pacientes e vai para a Europa em busca de nova análise, estudo e algum oxigênio para as suas ideias.
É muito comum em algum momento o cliente se compadecer do destino do terapeuta : coitado, passa o dia inteiro ouvindo problemas dos outros. Não é ouvir os problemas dos outros que cansa o psicanalista da série; provavelmente ele se cansa quando muita gente vai a seu consultório para aperfeiçoar as próprias neuroses, buscando a conivência e a confirmação do terapeuta, investido na posição de Mestre e Juiz. Um dos primeiros casos que atendi em terapia foi de uma senhora que passou mais de um ano tentando demonstrar para mim que o diagnóstico de Esquizofrenia de sua filha estava equivocado: ela estava com uma infecção, internada e teve alucinações em seu delírio febril. Acho que eu era um promissor aprendiz de terapeuta, pois escutei e esmiucei a sua história por todos os ângulos possíveis para introduzir, lentamente, a compreensão que a sua filha talvez precisasse de ajuda psiquiátrica, mesmo que seu delírio tivesse sido de causa infecciosa.
Impressionantes são os casos em que a doença exerce um efeito hipnótico sobre a terapia, com a repetição ad infinitum do mesmo argumento, que exime do paciente de qualquer responsabilidade sobre a própria vida. A atual clínica psiquiátrica cria esse tipo de justificativa infinita. Outro dia conversei longamente em uma entrevista com uma pessoa cujo casamento fora devastado por uma doença psiquiátrica do cônjuge. Tratamentos longos e dispendiosos e uma evolução negativa do quadro foram as tragédias de sua vida e casamento, agora chegando a um colapso. O relato foi ficando cada vez mais angustiante na medida em que a história e evolução que eram descritas não batiam com o tal quadro psiquiátrico diagnosticado há muito tempo. Parecia alguém que se estabelecera na função de “Café com leite” e se escorava em angústias crônicas e incuráveis, sobretudo uma angústia hamletiana de Ser ou não Ser. Para ser é preciso inserção no mundo do Real: ter um ofício, correr riscos, fazer parte de um grupo e poder ser criticado, abandonado e todo tipo de frustração de estar no mundo e ganhar o pão com o suor do rosto. Não fazer nada, optar pela posição de Não Ser, tem um custo alto e muitos sintomas psiquiátricos a reboque e era isso que provavelmente tinha acontecido naquele caso.
Carlo estava provavelmente fatigado do paciente que usa a sua terapia para ficar à beira do rio da vida e nunca sequer molhar o pé nas águas da adversidade. Muita gente pode se agarrar ao pé de seu divã ou aos cordões dos sintomas para justificar a sua paralisia e a falta de vontade de enfrentá-la. Como eu já escrevi em outros posts desse blog, não há problema algum em ouvir o dedilhar de sentimentos, as histórias que levam a pessoa a ouvir a si mesma na presença de um ser que cria o silêncio necessário. Vivemos num mundo de ruídos e nos Castelos de Caras do Facebook, pouca gente tem disposição para enfrentar os sentimentos reais e as palavras que não gostamos de proferir, como medo, perda, angústia. Não há problema nenhum em escutar e dividir esses sentimentos e histórias. Mas o terapeuta deve ter a coragem de dizer não, quando o seu espaço terapêutico é usado para evitar qualquer transformação, e a terapia é um álibi para a paralisia. Neste ponto, não adianta chutar a bunda de ninguém, mas deve o profissional deixar de ser a escora para quem não quer molhar o pé no rio da vida.


2 comentários:

  1. Carlos está cansado de si mesmo e da prática clínica... Então Entendo!

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  2. E qdo vc acha, crente q abafa, q está sendo, e de repente desconfia q não está? Medo...

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