domingo, 17 de maio de 2015

Do Trauma e Da Cura

Recebi uma paciente que apresentava um quadro depressivo e ansioso razoavelmente grave. Durante a sua primeira entrevista já surgiu logo de cara um evento traumático de sua adolescência, quando foi atacada sexualmente por um desconhecido. Muitos anos depois, a cena ainda era descrita de maneira vívida, como se tivesse ocorrido na semana anterior. A paciente descrevia que a sua terapeuta estava “indo fundo” na experiência, e não havia uma semana em que a mesma não era repassada detalhadamente e aos prantos. O medo da repetição do evento em muito afetara a vida da moça: estava bastante acima do peso, não conseguia confiar em ninguém, sobretudo do sexo oposto. Tinha problemas com autoridade e um medo antecipatório em qualquer situação nova, o que a fazia passar muito tempo em casa. A família era contra a sua terapia e relatava que depois de passar com aquela psicóloga o seu quadro só fazia piorar. Pediam para eu contraindicar a sua terapia e dar os remédios para ela ficar melhor. Muita calma nessa hora.
Dr Sigmund Freud descobriu, ao final do século XIX, um método psicológico que vinculava alguns sintomas da doença mais misteriosa de sua época, a Histeria, com alguma experiência anterior, traumática, que provocaria uma espécie de colapso e sintomas como paralisias, cegueiras ou emudecimentos, com alta carga afetiva, sem lesão orgânica ou neurológica que as justificasse. Após a revivência do trauma, em sessões de Hipnose, o conteúdo de forte emoção emergia, em situações clínicas que ele denominou Catarse. As tais experiências catárticas revertiam temporariamente os sintomas histéricos, como um passe de mágica. Alguns anos depois, Freud abandonou o método catártico, mas a sua influência se nota ainda hoje em profissionais bem intencionados que ainda procuram o “Trauma Original” e sua cura pela revelação catártica. Era exatamente o que fazia a tal terapeuta, tentando esmiuçar o tal do trauma e trazê-lo à consciência para expurgar seus efeitos maléficos. O efeito foi justamente o contrário: a paciente, revivendo o trauma várias vezes, foi repetindo e reeditando o trauma várias vezes, mantendo a mesma fixada em sua posição de vítima, o que lhe dava direito a desacatar pessoas próximas e chefes, afinal, ela “tinha sido ferida”.
Há duas semanas eu publiquei um post que falava dos efeitos tardios que certas experiências ruins podem provocar na vida das pessoas, com jovens corajosos virando adultos covardes. Essas experiências podem vir à tona muito tempo depois do ocorrido e deixar marcas profundas. Comprar livros de Autoajuda ou reforçar os pensamentos positivos não dão conta desses esqueletos no armário. As feridas precisam ser exteriorizadas, lavadas e retiradas das sombras, onde podem fazer muito estrago. Isso não significa que fazer terapia seja ficar cavocando cenas traumáticas e repetindo-as até a exaustão. Focar no negativo pode fazer com que ele se perpetue.
O uso da medicação ajudou a paciente a melhorar. Pedi para a sua terapeuta tirar um pouco o foco do tal do trauma e trabalhar com ela uma coisa muito mais grave em sua vida, que foi a sua autopiedade e identificação com o papel de vítima, o que criou uma cápsula protetora impenetrável em sua Psique. O pior resultado de todos foi o isolamento afetivo e social, que aumentava em muito o seu sofrimento. Hoje o namorado pode abraçá-la inesperadamente sem risco de tomar uma cabeçada. E a sua terapia não precisou ser abortada.
Trazer o trauma para a luz de nada serve se não for para deixá-lo para trás, para a vida seguir em frente.

Um comentário:

  1. Sensacional, Mestre !

    "Hoje o namorado pode abraçá-la inesperadamente sem risco de tomar uma cabeçada...
    Trazer o trauma para a luz de nada serve se não for para deixá-lo para trás, para a vida seguir em frente."

    Abraços.

    Edison

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