sábado, 14 de março de 2015

Maria, Marias

Uma moça vem ao consultório com um quadro de fadiga crônica. Uma característica de sua consulta chama a atenção: ela trabalha como empregada em casa de família e a sua patroa, vendo que seu estado só piora, resolve pagar por sua consulta que, é claro, recebe um desconto. Essa moça vagou por Centros de Saúde e Ambulatórios de Especialidades por meses, com crises de ansiedade que a acordavam durante a noite, um choro que aparecia nas horas mais impróprias e não queria parar, além de uma dificuldade cada vez maior para iniciar o sono, assim como uma dor no meio do peito na hora de acordar. Vagando de serviço em serviço de nossa Saúde Pública, ela acabou num Pronto Socorro, onde uma plantonista de bom coração imaginou que ela tivesse algo entre a Doença de Pânico e uma Depressão, prescrevendo para ela um antidepressivo com a recomendação de procurar um psiquiatra. Ela estava tão exausta de chorar que não protestou nem observou que já procurava por um especialista há meses. Tomou o Diazepam (já estou formado há um quarto de século, quanto tempo ainda vamos aguentar o paleontológico Diazepam nos Pronto Socorros?) que lhe deram e foi para a casa resignada. No dia seguinte tomou o antidepressivo à noite, antes de dormir. Os sintomas melhoraram, ela chorava menos e tinha menos pensamentos de morte. O que estava ainda atrapalhando era a sonolência que sentia o dia inteiro. Dormia no ônibus, dormia apoiada em seus cotovelos enquanto esperava a água do café ferver, dormia vendo a novela quando chegava em casa. Só não dormia na sua cama. Será que se fosse uma paciente abastada e tivesse essa hipersonia ela não teria ido parar em algum Laboratório de Sono e feito mil exames para estudar essa sonolência? Sinceramente, não sei. Um detalhe estava lá, saltando aos olhos: ela estava tomando seu antidepressivo à noite, como recomendara a plantonista. Esse medicamento estava interferindo em seu sono, provavelmente tornando seu sono pouco eficaz. Sonolência diurna intermitente sugere sono pouco eficaz. A conduta de sua consulta foi trocar a medicação para o período da manhã. Melhorou o sono, a choradeira e a sua disposição para trabalhar. Quando ela saiu da consulta de seu retorno, seus olhos estavam marejados. Falou que orava por mim todo dia. Sua vida estava de volta. Lembrei a ela que o que eu fizera foi trocar o remédio da noite para a manhã. “Pode parecer pouco, doutor, mas para mim significou muito”.
A parte difícil dessa história é imaginar quantas Marias (vamos dar esse nome fictício para ela) estão por aí, batendo de serviço em serviço precisando de um diagnóstico e tratamento que não chegam. O sintoma psiquiátrico tem esse aspecto particularmente cruel: não aparece a olho nú, não causa febre, não tem cheiro e não aparece nos exames convencionais. O doente ainda precisa ouvir que aquilo é frescura ou falta de tanque de roupa para lavar. Uma pessoa próxima pode sugerir que é falta de fé ou simplesmente preguiça. Quem dorme o tempo todo é vagabundo, não é mesmo?
Para quem pensa que Depressão é doença de madame ou de gente desocupada, saiba que as camadas menos favorecidas da população são as mais atingidas e sofredoras dessa doença que já é das causas mais importantes de sofrimento humano e de afastamento da força trabalhadora. Há milhares de Marias e Josés penando pelos corredores dos hospitais com uma doença que é grave, é crônica e é recorrente, mas também perfeitamente tratável. Agradeci mentalmente à patroa de Maria, que deu a ela e a mim a chance de tratá-la. Outra teria simplesmente mandado a empregada embora.
Espero viver e clinicar bastante para ver todas as Marias diagnosticadas e tratadas. Espero trabalhar num país em que o governo não culpe os médicos pelas mazelas da Saúde Pública. Mas espero também ter uma classe médica que encontre um jeito de fazer chegar a ajuda a quem ninguém se importa em ajudar.

3 comentários:

  1. Esperamos todos a melhora dos serviços de saúde!
    Muito bom o texto!
    bjos,
    Lucia Andrade

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  2. Parabéns a Patroa e a Você, Mestre !

    Tô longe, mas tô por perto...

    Edison

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  3. Olá, Marco!
    Interessante ler seu post nesta semana que será a formatura em Gastronomia da Maria Brasil. Compartilho com você minha alegria! Grande abraço...Sandra

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