sábado, 4 de dezembro de 2010

Harry Potter e o Herói Ferido

Quando Sidarta Gautama atingiu a iluminação sob a árvore Bodhi, teve alguns momentos de dúvida, mesmo sendo o Iluminado: como transmitir ao mundo das pessoas perdidas na roda infinita de nascimentos e morte a Verdade que encontrara? Com certeza, as Quatro Nobres Verdades foram um método compacto e didático de ensinar o caminho da Libertação. Vamos nos concentrar na primeira Nobre Verdade: a natureza de nossa vida é o Sofrimento. A boa notícia é que podemos cuidar do sofrimento, alcançando através dele a nossa transformação.
Freud redescobriu essa Nobre Verdade quando descreveu a sensação de Falta, de insatisfação na base de todo ato ou pensamento humano. É como uma coceira que nunca termina, como uma sensação permanente de incompletude que impulsiona nossos melhores e piores atos.
Harry Potter tem uma cicatriz bem no topo de sua testa. Ela é o resultado do pior momento de sua vida, do qual nem se recorda: o arquivilão, Voldemort, tentou matá-lo quando era bebê, a sua mãe se colocou na sua frente e esse ato levou à morte de seus pais e à dissolução do corpo de Voldemort, que levou bem uns quatro livros para ir se materializando de novo. No último livro da saga, dividido em duas partes nos últimos filmes da série, J.K. Rowling vai descortinar a ferida de um grande personagem, Alvo Dumbledore. Aparece também as dores de um vilão que não era tão vilão assim, Severo Snape. Dumbledore, na sua fúria de bruxo brilhante e sedento de poder, causou não intencionalmente a morte de sua irmã. Snape perdeu a mulher de sua vida, a única que verdadeiramente amou, a mãe de Harry. Tom Ridle, que viria a ser o Lorde das Trevas, passou a sua infância em orfanatos. J.K. Rowling maneja com elegância a saga desses heróis, trágicos e feridos. Durante toda a saga, vemos os medos, as dores e a busca inconsciente de redenção de todos eles. Sucesso, poder, reconhecimento, reparação, tudo isso desfila na tela e nas páginas como parte intrínseca do drama humano. O futuro ameaçador, o medo desse futuro, perpassa também todos os episódios e todos os anos da vida desse personagem Harry Potter que, como nós, vai ter que tolerar a frustração e o medo de não cumprir a sua missão, falhar diante de seus amigos e diante de si mesmo. No momento de seu confronto final, Harry vai oferecer um sacrifício. Voldemort, que representa nosso Ego prepotente, tentando impor a sua vontade ao mundo, não cosegue entender o amor, sobretudo o amor de quem pode oferecer a própria vida para salvar a vida de quem nem conhecemos. Nesse momento, Harry ultrapassa a própria ferida e a transforma em via de transformação. Talvez este seja o caminho menos percorrido: o caminho de se encontrar, finalmente, a paz de espírito, depois de uma longa jornada.

Um comentário:

  1. Ao ler os posts sobre Harry Potter, fiquei pensando sobre o inerente sofrimento humano.Vendo-o como natureza de nossa vida, percebi o quanto isso é verdadeiro pois nos agarramos a qualquer tema que nos traga algum sofrimento, algo por que precisemos lutar, transformar, investir energia para que o transformemos em algo diferente.O sofrimento nos impulsiona a mudanca, ao crescimento.
    Refletindo sobre heroísmo, não consegui lembrar-me de um herói que não tenha sofrido dores profundas para retirar de seu âmago tamanha forca que fizesse jus a seus titulos.
    Somos todos heróis lutando com os próprios sentimentos, negando essa natureza numa cegueira dolorida e disfarcada que exacerba o sofrimento.
    Tomar consciência de nosso envolvimento com o sofrimento nos traz percepcão também da felicidade e bem estar, pois como nos saberíamos felizes sem o contraste da tristeza e da dor?

    Abracos,
    Sonia

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