sábado, 15 de novembro de 2014

A Pálpebra dos Lagartos

Depois de duas semanas sem publicar nada neste blog, atendo aos apelos de um de seus doze seguidores para voltar a essas mal tecladas. Não sei se a vitória da senhora Dilma me emudeceu, ou foi melhor me calar para não me juntar ao coro de sandices que se publicou de lado a lado, com direito a racismos, fascismos e outros bichos que ainda estão por aí. Sobre isso, me calo. Vou começar este post com algo bem mais divertido que isso, um poema de Manoel de Barros, falecido aos 97 anos, cheio de luzes e de cores de passarinho, há dois dias. Vamos lá: “No descomeço era o verbo/Só depois que veio o delírio do verbo/O delírio do verbo era o começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos” (Livro das Ignorãças, Ed Record).
Para quem não conhece, Manoel de Barros era o maior poeta vivo deste país que não se importa com poesia. Mais do que poeta e escritor de hai kais pantaneiros, Manoel era um mestre Zen, um cantor de urinóis enferrujados, formigas, do ínfimo, do desimportante, ou, no caso desse trecho de poema, um restaurador da visão de criança que a vida nos subtrai por volta dos sete anos de idade. A criança que diz: eu escuto a cor dos passarinhos. Jesus disse aos apóstolos que deixassem vir a eles as criancinhas, pois deles é o Reino dos Céus. Manoel de Barros nunca citou este trecho, mas levou-o para dentro de suas poesias. A criança escuta a cor, desenha o canto, alucina as folhas e os galhos.
O Zen procura sempre desconstruir em seus koans a nossa estrutura de pensamento, nossa organização cognitiva, nossos a prioris kantianos de Tempo e Espaço. O mestre Zen abole o tempo, o espaço e o encadeamento cognitivo que nos organiza o mundo. Um poeta beatnik, cujo nome me foge, definiu o Zen como “O mundo subtraído de si mesmo”. Manoel, neste poema, começa invertendo o Genesis, que começa com o gigantesco No Princípio: “No Princípio era o Verbo” (este é um princípio retumbante). O poeta não quer saber de começos, só de descomeços, onde o Verbo delira de si e a cor pode ser escutada no canto.
Mais trechos, do mesmo livro: “As coisas que não tem nome são mais pronunciadas por crianças”; “Não tem altura o silêncio das pedras”; “Poesia é voar fora da asa”; “Ando muito completo de vazios”; “Hoje eu desenho o cheiro das árvores”.
Uma criança se delicia com o nonsense, quando colocamos um sapato na cabeça ou viramos o mundo de ponta cabeça. Vivemos num mundo cheio de senso e com pouco bom senso, e tudo queremos sobredeterminar com nossas intencionalidades: para tudo temos metas, objetivos, tarefas a cumprir. Não temos a menor ideia do que é estar completo de vazios ou qual é a altura do silêncio das pedras. Manoel desenhou o cheiro das árvores e as pálpebras dos lagartos.

3 comentários:

  1. Mestre, não desista, seus 12 apóstolos continuam a te seguir...

    Talvez esteja faltando maior divulgação do seu Blog e poucos o conhecem... Agite no Facebook e no seu consultório...

    Hoje te mandei um email que pode ser combustível para um bom texto...

    Abraços.


    Edison

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  2. Duvido que sejam só doze!!
    Valdelis :)

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