domingo, 10 de julho de 2016

Bom Dia, Tristeza

Meus filhos cresceram com os filmes da Pixar, e eu, claro, virei um fã. Os filmes invariavelmente tem um tema junguiano da Jornada Arquetípica, do herói de origem humilde que, por acaso ou por cometer um pequeno erro, é lançado numa jornada heróica onde vai enfrentar monstros e perigos nunca imaginados. Não assisti o “Procurando Dory”, devo reparar essa falha na minha filmografia até a próxima semana, mas posso usar o primeiro filme da série, o Nemo, como um bom exemplo de Jornada Arquetípica. Nemo desenvolve um Estresse Pós Traumático quando perde a sua companheira e filhotes num ataque de barracuda. Ele vira um pai superprotetor e neurótico de seu único filho, Nemo. O Erro Fundamental ocorre durante uma brincadeira de Nemo com seus amigos, que o faz sair dos limites protegidos pelos corais. Ele é capturado por um mergulhador e seu pai vai ter que superar seus medos e traumas para atravessar o mar infinito atrás de seu filho perdido. Ele vai ser ajudado por muitos amigos e situações onde pequenas coincidência e acasos vão indicando o caminho até Nemo. Essa é a Jornada Arquetípica, uma metáfora da nossa vida e desenvolvimento.
A última obra prima da Pixar foi o Divertida Mente. O filme contou com a assessoria de um time de Neurocientistas para criar o mundo interno de uma menina de 11 anos, Riley, que passa por uma difícil transição em sua vida. As Emoções Básicas comandam sua Cognição na Sala de Controle. Como nos outros filmes, ocorre um Erro, e a Alegria e Tristeza se perdem dentro do Cérebro da menina. As suas reações passam a ser comandadas pela Raiva, o Medo e o Tédio. Ela se torna claramente uma pré adolescente, portanto. Alegria comete o erro fundamental, quando tenta a todo custo controlar a Tristeza que está contaminando a Psique de Riley. No meio da briga, elas são sugadas para as zonas de Memória e vão precisar atravessar um longo caminho para voltar à Sala de Controle. O problema é que as pontes que poderiam levá-las de volta também estão desmoronando: as relações com a Família, a Amizade, a Brincadeira e o Hóquei sobre o gelo, que fundamentavam a identidade de Riley, começam a desmoronar no meio da desadaptação à nova vida em San Francisco.
O filme fala sobre muita coisa interessante e poderia gerar uma dezena de posts, mas hoje vou falar sobre a função estruturante da Tristeza. Como o pai de Nemo tem a ajuda da desmiolada Dory e através de suas trapalhadas vai achando o caminho até seu filho, a decidida e algo obsessiva Alegria vai precisar rebocar a Tristeza no começo, mas no decorrer da jornada vai ser aconselhada e algumas vezes salva pela Tristeza. Uma cena particularmente bonita é quando a Alegria revê uma cena muito alegre de Riley sendo jogada para cima por sua equipe de Hóquei, em triunfo. Com a ajuda da Tristeza, ela recupera a cena inteira. Riley tinha errado a última jogada e seu time perdeu o jogo. Ela estava sobre o galho de uma árvore chorando e seus pais se aproximaram, acolhendo a Tristeza. Foi aí que seu time chegou e a jogou para cima, reconhecendo a sua importância. Dona Alegria percebe que só entrou em cena pela função estruturante da Tristeza e a interiorização da perda e do luto. Ninguém começou a cena comemorando uma derrota ou uma frustração.
Acho que as crianças são muito pressionadas em nossos dias pela tirania da Alegria. As mães ficam como cães de caça vigiando o tempo todo se as crianças são suficientemente felizes e surtam completamente quando as outras emoções tomam conta da Sala de Controle de seus filhos. Um de meus consultórios tem uma criança na vizinha que chora desconsolado por horas. A sua mãe varia o lidar com a situação com gritos que aumentam a choradeira até a perfeita apatia de simplesmente não fazer nada para acolher a Tristeza. Ele chora, chora, e ninguém faz nada. Do lado de um consultório de Psiquiatria e Psicoterapia. Quando a cena é dominada pela Alegria, aí tudo dá certo, todos brincam e se divertem no quintal. Mas a Tristeza, o Cansaço e a Raiva desencadeiam uma profunda intolerância e Raiva silenciosa em sua mãe. A criança fica abandonada no meio desses sentimentos. Parece que ela só será amada se estiver alegre. Essa é a tirania da Alegria, que aparece nas famílias esfuziantes dos comerciais de Margarina (esse deve ser outro efeito colateral da margarina, além da gordura Trans).
Jung pensou a nossa Psique como um sistema continuamente em Equilíbrio/Desequilíbrio, onde o Caos demanda muita energia para sua Organização. Não existe nesse sistema uma emoção boa ou ruim em si. Há lugar para a Alegria, a Tristeza, o Medo, a Raiva, a Repulsa e a Atração: todas tem a sua função Estruturante/Desestruturante dependendo da ocasião. Acho que ele estaria muito incomodado com a ditadura da Puerilidade que determina o nosso tempo.

Um comentário:

  1. muito legal, Dr...agora fiquei com uma dúvida (responda qdo e se puder..)..como saber a medida da saúde mental? já vimos que a idéia de felicidade sempre é fantasiosa mas qto de emoções indesejadas devemos aceitar? E qual o limite entre aceitação e resignação? Nem se se há respostas pra isso..

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