segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Mundo Interno

No final de sua vida, Jung escreveu uma carta em que expressava uma profunda frustração por não conseguir fazer as pessoas ouvirem o que tinha para dizer. O vazio espiritual levava o mundo a estados de tensão insuportáveis e pela primeira vez na história o homem tinha o poder de destruir a vida no planeta. Jung morreu no início dos anos 60, quando o mundo chegou ao auge da Guerra Fria e uma guerra nuclear entre Estados Unidos e União Soviética parecia estar batendo em nossa porta. Jung dizia nessa carta que a Filosofia e a Religião estavam em um estado lamentável, e que temos um tesouro enterrado em nossa alma. A sua mensagem não foi ouvida, mais de meio século depois.
Não existe a polaridade clara daquele final de Guerra Fria. Americanos e Russos levaram as suas disputas para a Síria, onde o Estado Islâmico passou a exportar o terror ao mundo, o terror como um ato individual, imprevisível, irrastreável. Um outrora pacato trabalhador aluga um caminhão e o arremessa em alta velocidade contra uma multidão assistindo aos fogos na beira da praia. Essa é a guerra globalizada: o ato individual de violência e terror em nome de minha crença.
Um velho junguiano proclamava em suas aulas, quando eu engatinhava como psiquiatra e terapeuta, que a Contra Reforma Católica, com toda a violência da Inquisição, havia criado a dissociação de nossa Cultura, onde Religião e Ciência ficariam completamente separadas e em campos opostos em nossa Psique. Caetano disse num texto sobre americanos que um americano vai fundo no que vê, mas não no próprio fundo. Essa é a própria definição do que aconteceu e acontece ao mundo que só confia no que vê e toca, e duvida do que está no próprio fundo. O mundo interno deixa de existir. Esse é o resultado do divórcio entre Ciência e Religião.
Ao contrário do velho junguiano, não acho que nosso atual estado psíquico lamentável tenha sido causado pela Santa Inquisição. A Idade Média, também chamada de Idade da Trevas, foi um período de Introversão doentia, o mundo separado por muralhas e as pessoas presas em medos e superstições. O Mercantilismo rompeu as muralhas dos feudos e isso trouxe ao mundo a Tecnologia e a Ciência. O homem passou a ir fundo no que vê, mas não no próprio fundo. O movimento de Extroversão teve na Contra Reforma a tentativa de impedir o movimento para fora. Como toda Repressão, só acelerou o processo que tentava impedir. Se antes havia uma Introversão patológica, hoje estamos no campo oposto. A Idade da Razão está longe, muito longe, da razão.
Jung percebeu que a fabulosa tensão que ameaçava destruir a Raça Humana se originava na tensão entre nosso Mundo Interno e Externo. Temos uma crise permanente da nova Religião, que só acredita no que é palpável e se ri do Invisível e da Psique. Não há uma Realidade Profunda, só o que nossos instrumentos podem medir.
O Tesouro que Jung dizia que está enterrado em nosso quintal é nosso quase esquecido Mundo Interior. As pessoas procuram desesperadas por ele no meio da profunda sensação de Vazio e silencioso desespero que atravessam as nossas esquinas. Os que pedem pela mudança de olhar, agora para o próprio fundo, queimam nas fogueiras do descrédito. Mas isso, como Nova Inquisição, vai fortalecer aquilo que quer impedir.

2 comentários:

  1. po, Dr., vc devia ficar feliz...é mais fregues pro consultório...é claro que estou brincando...mas não tem jeito: a fruta só cai do pé no tempo certo...vc me sugeriu reler Siddartha..se vc bem lembra, o verdadeiro mestre, o barqueiro, espera que Siddartha entenda por sua vez...sem interferir ou direcionar nada...

    qto a nós: viva a dor..e ela que nos faz querer imergir.

    valeu pelo texto :)

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  2. Olá Spinelli,

    O seu texto é excelente! Uma análise extraordinária. Seus textos são sempre bons, mas este, realmente...
    Você deveria escrever um livro!
    bjos,
    Lucia Andrade

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