domingo, 29 de janeiro de 2017

Consciência Unitiva

Um homem estava deitado sobre uma maca, com o corpo coberto de feridas. O seu rosto traduzia o maior dos sofrimentos. Jesus e seus apóstolos se apiedaram daquela dor e ofereceram ao homem a cura, como já ocorrera com tantos cegos, mancos e leprosos. O homem delicadamente recusou a oferta, dizendo que não precisava daquilo. Os apóstolos ficaram atônitos com a recusa, mas Jesus falou: “Em verdade vos digo que há mais entre esse homem e Deus do que todos nós aqui reunidos”. A pequena parábola está contida em um livro de Bert Hallinger, criador das Constelações Familiares. Como muitas de suas pequenas histórias, causam um pequeno desconforto, como se alguma coisa fugisse à nossa percepção. Outra coisa seria a abertura para qualquer ângulo de interpretação. Donald Trump diria que trata-se de um vagabundo que não quer parar de depender da caridade e ganhar a própria vida. O corpo coberto de feridas seria seu ganha pão miserável. Outra pessoa diria que é uma parábola que enobrece e estimula o sofrimento humano, como um hino ao masoquismo.
Como a interpretação é livre, eu diria que essa pequena parábola seria o maior mistério da vida e a resolução do pensamento dualista. Talvez um dos maiores mistérios, que é aceitar profundamente a própria ferida e os estranhos caminhos do destino. No livro de José Saramago, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, Jesus impõe a mão sobre os doentes e os livra de suas dores, mas volta aos seus discípulos entristecido de saber que logo aquelas pessoas vão cometer os mesmos erros e logo voltarão com as mesmas doenças que Ele acabara de curar. Um correspondente moderno dessa história são os estudos que demonstram que os pacientes revascularizados, que recebem quase que um novo Coração após diagnóstico de doenças coronarianas graves, tem uma evolução muito diferente se conseguem ou não mudar sua vida e hábitos. A grosso modo, esses estudos demonstram que as pessoas que permanecem com os mesmo hábitos alimentares, de estresses ou de falta de exercícios físicos vão ter uma sobrevivẽncia bem menor do que aqueles que percebem a doença como um alerta e modificam seus hábitos e seus estressores. O leitor atento deste texto poderia questionar a contradição entre as parábolas: devemos aceitar incondicionalmente nossas feridas e destino ou cuidar melhor delas para evitar a morte prematura?
Como o Jesus de Saramago, não adianta nada curar a doença sem um entendimento profundo de seu Significado e o que vai precisar mudar em nossa vida a partir disso. Não acho que o leproso que recusa a cura mágica seja a representação da resignação, pura e simples, diante de nossas feridas. As feridas nos convidam à ação, e não à inércia. Quando Jesus afirma que “há mais entre aquele homem e Deus que todos nós”, não acho que seja o elogio da resignação. Em termos junguianos, eu diria que representa a Coniunctio. Um palavrão alquímico que representa a união de opostos. Para nosso pensamento dualista, sempre vai existir o certo e o errado, o preto e o branco com poucos tons de cinza. Somos todos compostos de nossas feridas, e procuramos todos os dias a melhor forma de nos livrarmos delas. A tentativa de suicídio em muitos casos é uma tentativa de acabar com a dor que não quer passar. Está muito longe da nossa consciência a gratidão pela dor. A dor é um erro e deve ser retirada cirurgicamente.
Uma vez pediram uma interconsulta para uma paciente que estava com uma doença oncológica avançada, sem possibilidade de tratamento, e parecia completamente alheia ao que acontecia. O colega temia que ela estivesse deprimida ou em Negação. A paciente, como o homem coberto de feridas da parábola, estava iluminada de uma consciência que já havia ultrapassado a vida e a morte. Estava muito longe da Negação. Ela teve uma vida plena e aceitava também plenamente o fim de sua jornada. Era impressionante a ausência de dor física, dada a sua condição clínica. Fiquei com vontade de dizer ao meu colega que, em verdade, havia muito mais entre aquela mulher e Deus do que entre todos nós. Ela estava em Coniunctio, o que poderia chamar de Consciência Unitiva. Seus olhos estavam brilhantes de amor e ausência de medo. Naquele dia, foi ela que me tratou e não o contrário.

2 comentários:

  1. Iluminada 29/01/2017/um dia após meu aniversário, muita emoção o texto . Beijos

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  2. Adoro seus textos. Me ajudam a crescer, ser resiliente. Conheci a Constelação há alguns dias. Queria saber sua opinião sobre ela.

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