domingo, 15 de dezembro de 2013

O Divã do Dr House

Estava revendo um episódio da terceira temporada de House. O hilário e irritável personagem fica completamente desconcertado quando uma jovem paciente lhe pede para conversar. Mas conversar sobre o que? Sobre o tempo? Isso. Sobre a temperatura ou o resultado do último jogo. House fez o possível para fugir da tarefa, inclusive, literalmente, fugir do Hospital e matar serviço dentro de um parque. Tudo para fugir dessa coisa esquisita, que é uma conversa.
Há um bom tempo, participei de uma Banca para escolher o grupo de residentes do Instituto de Psiquiatria do HC. Um dos entrevistadores perguntou para o candidato se ele apreciava a Psicoterapia como forma de tratamento. O rapaz respondeu meio assim: “Claro que aprecio: Psicoterapia, bate papo, tudo é válido...”. Depois de divulgada a lista de aprovados, fui com alguns candidatos e futuros colegas comer uma pizza e avisei ao rapaz que se chamasse psicoterapia, bate papo, de novo, iria ter problemas comigo. Psicoterapia envolve alguém que Escuta e outro que Discursa e expressa as suas angústias, medos e o que mais quiser colocar para fora de seu peito. A Escuta possibilita em si, uma melhora para o Sujeito, que pode observar/organizar internamente suas grandes questões. Não é bate papo. Já falei que Placebo era a pqp no último post, não vou repetir a malcriação, com uma frase do tipo “bate papo é a pqp”. Mas, repito, não é bate papo, embora existam muitos papos de boteco extremamente terapêuticos.
A moça do episódio havia sofrido uma das piores violências que se podem impor a um ser humano, o estupro. House dá uma de Freud manquitola e tenta estabelecer uma Escuta, sobretudo, quer que a moça fale sobre o episódio traumático. Ela se recusa, não quer falar sobre isso. Quer falar sobre o tempo. Ou sobre o noticiário. Gostei muito da interpretação da jovem atriz. Ela está no episódio todo crispada, sempre com os olhos marejados e argumenta com o médico como uma roteirista adulta, não como uma menina violentada. O divertido foi a estranheza em iniciar uma conversa sem objetivo nenhum. As conversas terapêuticas sempre procuram descascar mais e mais as cebolas de nossas dores. A moça só queria papear e se sentir normal, longe da dor e do absurdo da vida. O papo que se segue é cabeça: falam sobre Deus, sobre eternidade e sobre significado da vida, ou a sua ausência de significado. A moça acredita em Deus e acredita que as coisas tenham realmente significado. House se desespera e fala da estupidez humana e que Deus, se existe, é um sádico e um ausente.
O final da conversa se dá no mesmo parque que House usava para fugir da conversa. Ela fala que sentia nele uma ferida profunda, como se tivesse passado por uma violência semelhante. Ele fala sobre os abusos de seu pai. Ela, finalmente, pode falar sobre o estupro que sofrera e chorar no ombro improvável do Dr Gregory House. O bate papo termina em Psicoterapia de melhor qualidade. A dor revelada, reexaminada e, se tudo der certo, transformada.
Nessa época em que muita gente séria acredita que a Psicoterapia é uma indústria de enganação e de “Bate Papo” infrutífero, que agoniza diante dos remédios e manipulações de genes, esse episódio me tocou (é na verdade um episódio bobo, melodramático e falsamente psicológico, portanto, delicioso) no âmago dessa grande questão: a sessão de psicoterapia deve mudar muito no decorrer dos anos, como tudo muda nessa vida, mas não vai acabar nunca. Nesta época que as pessoas não conversam mais pessoalmente, só por e-mail, ou que ninguém está disposto a ouvir, só a falar, o espaço terapêutico pode ser um dos últimos lugares onde alguém se dispõe a ouvir, em profundidade, o que o Outro tem a falar e a calar.

3 comentários:

  1. ´Você é sempre brilhante!!!

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  2. Não podia fechar o ano com texto melhor !

    Bom Natal, Boa Páscoa, Grande 2014, 15... !!!


    Edison

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