domingo, 21 de setembro de 2014

A Cura

Andei metendo o pau na série escrita e produzida pelo psicanalista pop Contardo Calligaris, “Psi”. Falei que ele estava em processo de furioso enamoramento de si mesmo, termo que peguei emprestado de Nelson Rodrigues. Lembrei ao final do comentário que não iria perder nenhum episódio, pois para mim aquilo era diversão garantida. Cometi um grave erro ao afirmar que o personagem que é amigo do psicanalista Carlo e coveiro, tinha o nome de Caronte, o que eu achei uma forçada de barra daquelas. Errado. O personagem se chama Severino e deve ter sido chamado de Caronte por Carlo em alusão ao barqueiro que transporta em seu barco as almas para o Reino dos Mortos. Crítica apressada e desinformada, pela qual me desculpo.
Carlo repete uma frase que é de seu criador, Calligaris, afirmando que, em uma análise, o terapeuta é o Remédio. Que frase estranha, ainda mais na boca de um freudiano. Antes de fazer outra crítica apressada, imagino que a disposição do terapeuta em ouvir, seu interesse no outro e intenção sincera em ajudar contribuem, e muito, para o sucesso terapêutico de um tratamento. Imagino que o terapeuta ajude com a sua sanidade e com a sua Ferida que, se espera, esteja trabalhada e olhada em seu próprio processo de terapia. Outro dia estava vendo uma entrevista de um renomado colega, Psiquiatra e Professor de Psiquiatria, entrevistado por Marília Gabriela. Ele mencionou um estudo sobre a Doença do Pânico em que tomou uma substância que era capaz de induzir uma crise, e foi a sensação mais aterrorizante de sua vida. Marília Gabriela, entrevistadora matreira e experiente, aproveitou para avançar no tema e perguntar se ele, como ser humano, já tinha experimentado os sintomas que causavam tanto infortúnio em seus pacientes. Pressionado, o colega foi mal e respondeu: “Não, eu sou normal”. Os seus pacientes ganharam automaticamente o crachá de anormais com essa resposta. Um terapeuta não precisa ser um doente terminal para compreender um paciente com uma doença grave, não precisa ser um usuário de Cocaína para atender um dependente químico, nem precisa ter passado por uma crise de Pânico para entender o quanto ela é sofrida e desestruturante para um paciente. Mas nunca deve se colocar na posição de normalidade em contraposição à suposta anormalidade que está à sua frente. Talvez ele possa curar muito mais com a sua própria ferida do que com seu “Ego Forte”.
Lembro de um sonho muito marcante de um paciente que é visitante eventual desse blog e nem sei se vai lembrar que este sonho é dele: “Sonha que tinha uma ferida muito grande, uma chaga em seu tornozelo. Para curar esta ferida, tinham amarrado perto da ferida um pé de galinha. A proximidade do pé do animal fazia com que a ferida cicatrizasse...”. Imagino que o sonho descreva o processo lento de reparação que se dá num trabalho de psicoterapia. Imagino também que aquilo era uma crítica bem humorada do Inconsciente do meu cliente, brincando com uma tentativa excessivamente intelectual de entender o processo da parte de ambos, terapeuta e cliente. O que cura é o pé de galinha, ou seja, o Arquétipo da Cura. O paciente pode associar a imagem às boas canjas que sua mãe fazia quando estava doente, mas imagino que a imagem representa a capacidade de uma Psique encontrar os seus caminhos de Cura, o que pode e deve ser ativado pela Relação Terapêutica. O terapeuta não é o remédio, mas pode ajudar o paciente a limpar as suas feridas e transformá-las. E isso você só aprende fazendo; não tem nenhum manual que ensine. O Pé de Galinha é o processo de cicatrização que se inicia quando resolvemos cuidar de nossa ferida, em vez de fazer novas feridas nos outros.

Nenhum comentário:

Postar um comentário