sábado, 11 de outubro de 2014

Me Dê Motivo

Estava falando com uma cliente que descrevia sinais e sintomas que desenhavam, delicadamente, um quadro depressivo se instalando: cansaço constante, choro fácil e imotivado, intolerância a pequenas frustrações e uma reação de quase desespero quando as coisas não vão do jeito que ela gostaria. Particularmente, uma profunda angústia diante de qualquer tarefa nova ou inesperada, como ter que chamar um técnico para consertar a máquina de lavar. Como muita gente, ela tem o estranho hábito de discordar dos próprios sentimentos, sobretudo, de ficar muito contrariada quando os tais “sentimentos negativos” aparecem. Estava ouvindo a sua decepção por estar daquela forma. A conversa transcorreu bem até a frase quase fatal: “Mas está tudo bem, estou fazendo tudo o que eu quero e gosto. Se eu tivesse motivo...” Quase ouvi o vozeirão de Tim Maia bradando em meus ouvidos: “Me dê motivo...”
Nos anos noventa eu fiz uma pesquisa numa enfermaria de Leucemias, que hoje são muito graves, mas tratáveis, na época eram menos tratáveis e mais graves. Além de todo o sofrimento e perplexidade de estar com essa condição extremamente delicada, eu ainda testemunhava o sofrimento adicional dos pacientes ficarem procurando pelo erro, ou pela sua culpa em gerar a doença: “O que eu fiz de errado?”, como se a doença fosse uma punição por algum erro ou gerada por algum motivo oculto.
Nesta mesma época eu estudava e enchia o saco de meus orientadores com muita Filosofia da Ciência. Uma figura dessa filosofia é o “Demônio de Laplace”. Este pequeno e inofensivo ser era apenas uma metáfora sobre o conhecimento prévio dos fenômenos. O Demônio de Laplace era o cara que conhecia todas as variáveis, todos os fatores que determinam um determinado acontecimento científico. Sabendo de todos os fatores, pode prever com absoluta precisão tudo o que vai acontecer. Uma de nossas fantasias mais comuns é que somos pessoas formidáveis que sabemos quase tudo a respeito da vida e de nossa vida em particular: com pensamento positivo e uma vida espiritualizada e holística nada de ruim pode nos acontecer. Os problemas só acontecem para o vizinho, que fica ouvindo Gustavo Lima o dia inteiro e grita com o seu cachorro entre uma música e outra.
Lamento dizer que as coisas não funcionam assim. Não é preciso ser pobre, nem infeliz no casamento, nem parte da equipe de campanha da Dilma para ter bons motivos para ter uma Depressão. Um quadro depressivo reflete um estado de esgotamento de neurotransmissão e pode acometer pessoas felizes, com uma vida bacana e muitos cuidados holísticos. Depressão acomete ricos e pobres, gregos e troianos. Duvidar dos sintomas ou discordar deles é tão produtivo quanto xingar São Pedro pela seca no Sistema da Cantareira.
Ficar doente já é suficientemente desagradável. Discordar dos sintomas, do cansaço, da melancolia diária, da angústia e da falta de gosto em fazer qualquer coisa, agradável ou desagradável, achar que é frescura, ou falta de tanque de roupas para lavar, é uma violência muito comum que as pessoas com quadros depressivos sofrem. É duro de se ver que sofrem esse abuso de si próprias ou de pessoas queridas e no mais das vezes bem intencionadas que, querendo ajudar e motivar o doente, acabam colocando mais gotas de lágrimas no copo que já transbordou. Melhor dizer que é uma doença e, como tal, deve ser encarada e tratada. Os resultados são bem melhores do que procurar motivos e culpados.

Um comentário:

  1. Marco, eu já disse que te amo hoje? Eu te amo há mais de uma década, mas acho que hoje ainda não tinha dito... :)

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