segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Vale das Sombras

Lembro de um episódio de um seriado americano, tipo Law and Order, onde um terapeuta ensinava aos seus pacientes um mantra para os momentos de aflição e desespero: “Eu sou a Rocha no meio da tempestade. Eu sou a Rocha que resiste ao mar”. No episódio o tal do terapeuta acabava sendo o psicopata que se aproveitava de sua ascendência sobre adolescentes perturbados e perdidos no meio da tempestade para abusar, de várias formas, de sua confiança, aumentando a sensação perigosa de que nada faz sentido para esses pacientes. O terapeuta era ruim, mas o mantra, não.
Ninguém descobriu onde fica o Ego em nossa Neurociência. O lugar mais próximo é o Cortex Pré Frontal, onde somos capazes de planejar, executar e corrigir erros em nossos planos futuros. Jung descreveu que a nossa Consciência se amplia em meio a uma fabulosa tensão de tendências opostas. A santidade e o pecado lutando diariamente dentro de nosso corpo e alma. Talvez a Neurociência tenha descoberto uma das sedes dessa tensão eterna: os Hemisférios Cerebrais. O Esquerdo cuida de nosso mundo linear, lógico, baseado em nossos sentidos e racionalidade. Quando algo acontece que subverte ou desafia essa visão racional, esse lado tende a simplesmente ignorar o que não se encaixa. Não precisamos ir muito longe para perceber este comportamento na Ciência, que ignora ou desmerece todos os fenômenos que não se encaixam em sua visão materialista do mundo.
O Hemisfério Direito responde por uma visão não linear, sintética e intuitiva do mundo. Está constantemente criando novas visões ou percepções não lógicas que existem em estado de tensão com a visão linear e sequencial do outro lado. Quando o equilíbrio entre esses lados se rompe, a capacidade do Ego de organizar a sua experiência interna e externa acaba se dissolvendo. A sensação é de que o mundo está desmoronando, num imenso terremoto interior. Quem olha de fora não consegue entender, pois nada aparentemente está acontecendo e, ainda assim, a mente da pessoa está derretendo na sua frente. Lembro de um caso antigo, onde o paciente sentia que estava possuído por uma sensação maligna e queria se matar para não ser tomado por essa presença. Era como se um hemisfério se sentisse invadido pelo outro, perdendo a capacidade de modular os próprios afetos e pensamentos, e tudo vira medo. Em alguns casos, o medo vira terror.
Jung chamou de Self o centro organizador que, acima do Ego, mantém a integridade dessa Psique que parece se esfarelar no meio dos sintomas. Penso no Salmo 23 “Mesmo que eu ande no Vale das Sombras e da Morte, nada temerei pois sei que estás ao meu lado”. Longe de mim psicologizar a Bíblia, mas este salmo é particularmente belo para descrever os momentos de medo, incerteza e desequilíbrio que uma pessoa pode atravessar em sua vida e a sensação protetora e apaziguadora que este centro pode trazer, ajudando na travessia. Essa capacidade organizadora vem da união dos hemisférios opostos? A criação de um plano lógico junto com a força de nosso afeto cria uma força interna para atravessar o Vale das Sombras? Este vale está dentro das áreas que processam o medo e o terror, em nosso Cérebro Profundo?
O mantra do terapeuta maluco do Law and Order funciona desta forma: identificando o Ego com esta rocha que resiste à tempestade de medos que temos em nosso mundo interno. Uma escritora brincou que seus pensamentos são uma área perigosa da cidade, onde ela não gosta de andar sozinha. Muito já escrevi neste blog sobre os pensamentos circulares, reverberantes, que ganham vida dentro de alguns quadros psiquiátricos até que a pessoa não consegue, simplesmente, parar de ser engolido pela tempestade desses pensamentos, que escalam em espiral. A imagem da Rocha no meio da tempestade dá um sentido de orientação no meio da bagunça. Cria um novo centro, onde a pessoa pode se agarrar e esperar pelo fim das marés de medo.
Há muito eu percebi que os verdadeiros curadores são aqueles que acreditam que a tempestade vai passar e a rocha vai, mais uma vez, resistir.

4 comentários:

  1. excelente texto..pena que poucos lerão pois é comprido....o interessante é refletir - falo por minha experiencia - que poderiamos/deveriamos tomar consciencia dessa rocha enquanto saudáveis..durante as crises - ou qdo doentes - a mente fica descontrolada e o processo se torna quase impossível...nos identificamos totalmente com ela e aí o bixo pega..

    quem sabe um dia deixemos de precisar das dores para crescer...

    valeu, dr!

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  2. Que máximo !
    "Meus pensamentos são uma área perigosa da cidade onde não gosto de andar sozinha "
    Esse post está demais !
    Bjo

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  3. Top, Mestre !
    O texto está de bom tamanho, fácil de ler.
    O problema é quando a "rocha" é um outro ser humano, de carne, osso e alma.
    Fale um pouco disso, please !

    Abraços.

    Edison

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  4. Também não achei o texto longo,degustei. Agora se entendi bem,a rocha sou eu. Ela não está fora de mim,nenhum outro Ser pode ser a minha rocha. Aí que estaria o segredo.
    Pedro

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