segunda-feira, 9 de maio de 2016

Ponto de Mutação

Vivemos num estado de hipnose coletiva, então eu sempre fico curioso sobre quem está mexendo nas cordinhas que nos movem feito marionetes. No meu ofício, por exemplo, não são poucas as pessoas que acusam a Psiquiatria de criar entidades clínicas fantasmas, dando remédios que não passam de placebos, escravizando pacientes que passam a depender, ou acreditar que dependem, das balinhas mágicas que prescrevemos em receitas carbonadas. Como eu posso abrir mão de muita coisa nessa vida, mas não posso abrir mão de duvidar, não me canso de notar as técnicas de persuasão da indústria farmacêutica e a discreta e eficaz imposição de um jeito de diagnosticar e tratar o sofrimento psíquico. Mas não vejo a tal máfia de avental querendo sodomizar o mundo com remédios cada vez mais caros e geradores de dependências e dependentes. Vejo, antes, o mundo ficando cada vez mais maluco e a Psiquiatria correndo atrás da loucura vertiginosa de nosso tempo, sem conseguir alcançá-la. Outro dia soube da história de um paciente, dependente químico, que saiu de sua internação e voltou para matar o psiquiatra que o havia internado. Senti um gelo no Estômago ao perceber o risco que é tentar encontrar alguma ordem no mundo que sempre é puxado para o Caos. Mexer com a alma humana e suas dores pode colocar os profissionais em situação de risco, e do pior dos riscos, que é o invisível. Os profissionais de Saúde Mental ficam então esmagados entre o sofrimento que tentam aliviar, os interesses econômicos e sociais envolvidos nos tratamentos e a impotência diante da progressão em espiral das doenças. Ainda assim tem muita gente que, como eu, se diverte de ver as pessoas melhorando, superando dificuldades, ampliando Consciências. Mas não é sempre que isso acontece.
Nos últimos anos a Neurociência descobriu uma região do Cérebro, o Giro do Cíngulo Anterior, que é o X de muitas questões. Essa região funciona como uma espécie de maestro que modula a Atenção, a Execução, o processamento de emoções e o tempo da resposta das funções executivas. Quando alguém passa por um tratamento, pode achar que vai tomar um remedinho e tudo voltará a ser como antes. Se o tratamento for bem sucedido, nada será como antes. A palavra mágica passa a ser Modulação, e a tal Modulação passa pelo Cíngulo Anterior. Priorizar, manter um objetivo em mente, não jogar o computador na parede, não matar o chefe ou o psiquiatra, tudo isso tem a ver com Modulação. Quem não desenvolve essa capacidade apanha da vida todo dia: perde empregos, afasta namorados, aborta projetos e briga com tudo e com todos. Sobretudo e pior que tudo, perde a capacidade de fazer a leitura do Real e se posicionar adequadamente diante dessa leitura.
Os medicamentos, quando bem empregados, devolvem ao paciente a sua capacidade de leitura da vida e modulação de afetos. Quando mal empregados, acabam sedando e encurtando o repertório de resposta das pessoas diante das dificuldades. É claro que existem situações clínicas severas que a sedação é o recurso para o curto circuito dos afetos e dos riscos para a vida do paciente e dos que o cercam. Mas este é um último recurso, não o único.
O sofrimento psíquico permite que o paciente olhe para aquilo que não quer olhar. Os medos, as dores, os traumas e a necessidade de cuidar disso. Pode parecer piegas, mas o simples fato de olhar para isso já produz uma transformação. Olhar, compreender, reposicionar são algumas das coisas que se conversa num processo de tratamento, enquanto os medicamentos começam a fazer efeito.
Muita gente que ataca os tratamentos e as medicações nunca tiveram a experiência de ver uma pessoa que passa por um transtorno sentir o alívio de suas dores e a gratidão pelo bom emprego dos medicamentos. Olha para tudo pelo viés de suas teorias de conspiração.
Na língua chinesa, o ideograma de Crise tem em si o ideograma da Oportunidade. As doenças podem realmente funcionar como Ponto de Inflexão, onde deixamos para trás o que não serve mais. Pode ser uma longa travessia até a dor virar transformação, e muita gente não quer pagar o preço nem da travessia, nem da transformação. Mas Jung dizia que a vida quer sempre ser reconquistada. Vamos reconquistá-la, então.


Um comentário:

  1. Dr., exatamente..quem nunca passou por uma crise de ansiedade ou depressão profundas não tem a menor legitimidade para julgar qualquer tratamento ..é uma benção vivermos na época das desvenlafaxinas e alprazolans..mais um excelente texto. obrigado!

    ResponderExcluir