domingo, 1 de maio de 2016

De Traumas e Feridas

Foi no final do século dezenove e no início do século vinte que um jovem neurologista, Sigmund Freud, começava a aplicar a hipnose a suas pacientes portadoras da pior e mais desconhecida doença da época, a Histeria. Histeria vem de Hystera, que é Útero em grego. Os médicos gregos acreditavam que a doença se originava por movimentos do Útero dentro do corpo, causando problemas nervosos. Histeria seria então uma doença nervosa que afetaria as mulheres, sendo muito rara em homens. O termo Histeria foi abandonado pela Psiquiatria por trazer dentro de si esse erro e preconceito.
Freud descobriu em suas sessões de Hipnose que a cena que aparecia na técnica trazia muitas vezes uma cena traumática. Voltando à cena, as pacientes experimentavam uma forte liberação emocional, que ele chamou de Catarse. Após a Catarse, as pacientes ficavam exaustas emocionalmente, mas o sintoma desaparecia como num passe de mágica. Mulheres cegas, paralisadas, catatônicas, subitamente voltavam a seu estado normal, para espanto dos jovens médicos apinhados nos anfiteatros. Freud desenvolveu, na fase inicial de sua obra, a Teoria do Trauma. Um trauma poderia ficar gravado em um estrato profundo do Cérebro. Uma Mente dentro da Mente, que Freud chamou de Inconsciente, foi revelada nessa teoria. Vivências traumáticas reprimidas, quando presas no Inconsciente, surgiriam à luz do dia como sintomas: medos, fobias, explosões de raiva e desmaios que deixavam atônitos os médicos. Nenhum Útero sairia do lugar. As experiências traumáticas reprimidas estavam na origem de tudo.
Freud abandonou essa teoria alguns anos depois, em favor da Teoria da Sexualidade, e isso acabou sendo uma pena. A Neurociência consegue validar de maneira muito mais clara a Teoria do Trauma do que a origem sexual das neuroses. As experiências traumáticas criam cicatrizes profundas em nossas psiques e estão muito relacionadas a sintomas e quadros psiquiátricos. Os Traumas criam mecanismos de defesa, como Esquiva, Projeção, Negação. Podem atravessar gerações.
Há alguns anos assisti um filme peruano chamado “A Teta Assustada”. Eu nem sabia que havia cinema no Perú. O filme descreve um fenômeno entre mulheres do interior do Perú de colocar uma batata dentro de suas vaginas, o que gerava todo tipo de doenças ginecológicas. Os médicos do país começaram a relatar o estranho quadro, que lembrava as histéricas de Freud. Depois de muito estudo, finalmente descobriram o motivo do estranho hábito: nas vilas arrasadas pela guerrilha do Sendero Luminoso, muitas mulheres foram repetidamente estupradas. A batata era uma forma de tornar suas vaginas pouco atraentes para os estupradores. A personagem principal do filme era uma moça que aprendera com sua mãe como afastar os agressores sexuais. Ela tinha a doença da Teta Assustada, sendo medrosa, tímida, passando a maior parte do tempo trancada em casa, não permitindo a aproximação de nenhum pretendente.
No livro “Mindfulness e Psicoterapia” há uma citação de um mestre Zen que muito nos interessa na ajuda ao Trauma: “O que não podemos Conter, não podemos Processar. O que não podemos Processar, não conseguimos Transformar; e o que não conseguimos Transformar nos assombra todo dia”. Essa frase resume a importância da descoberta de Freud, que ainda ajuda milhares e milhares de pessoas em todo mundo. Para Conter o que aconteceu, é preciso Revelar. A Escuta e a Atenção delicada do terapeuta permitem que a verdade seja dita em um ambiente seguro. Poder acolher a Ferida é o primeiro passo para a Cura. Muita gente tem vergonha de suas feridas e passa a sua vida fugindo delas. Isso costuma piorá-las. Ir de encontro à dor, criar um espaço para lidar com ela, ajuda a Processá-la e, finalmente, Transformá-la é um caminho difícil, frustrante, mas ainda hoje em dia, maravilhoso.
No filme, a moça que tem a tal “Teta Assustada” acaba indo trabalhar como empregada na casa de uma senhora. Inevitavelmente, ela acaba se relacionando com os outros criados da casa, homens inclusive, para ela fonte de pavor. Um caseiro mais velho vai se aproximando delicadamente, como que percebendo o medo da moça. Um trauma que atravessou uma geração. Ele se oferece a acompanhá-la até o ponto de ônibus, pouco fala, mas vai ganhando sua confiança e amizade. O filme descreve essa aproximação se transformando em amizade, a amizade em amor. Sem divãs nem medicamentos, ela vai superando os pavores com a capacidade de conter, processar e transformar que existe em toda relação amorosa. É daí que vem a Cura. Como no filme, vai ser necessário muito tempo e delicadeza para cuidar, limpar e cicatrizar as feridas. Mas pode ter certeza que vale a pena.

2 comentários:

  1. muito legal..caramba, dr., um post melhor que outro...obrigado por esse presente!

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  2. o caminho é longo.
    mas vale à pena, com certeza.

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