domingo, 4 de setembro de 2016

Esculpir a Vida

Eu lia os livros de James Hillman no estacionamento do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, na época de minha Residência Médica. Para encontrar lugar eu chegava muito cedo e meu jeito de fazer hora era ler a prosa fluente desse escritor e psicoterapeuta junguiano, falecido há poucos anos. Hillman dizia que a nossa mitologia e os relacionamentos são notas de rodapé do livro do Genesis. Passei muito tempo para entender do que ele estava falando.
O homem toma consciência da existência do Bem e do Mal e é expulso do Paraíso por Elohim. Não há dúvidas a respeito desse trecho. Ele vai ganhar o pão com o suor de seu rosto e a mulher vai parir em dor. Os homens de Brasília demonstram todo dia que suar para ganhar o pão é coisa para nós outros, os otários. Bom mesmo é intermediar a compra de uma nova sonda para a Petrobrás. A moderna anestesia também diminuiu em muito as dores do parto. Num país recordista mundial, não de medalhas olímpicas, mas de Cesarianas, as dores do parto são desconhecidas de boa parte das parturientes. Teria o Brasil eliminado as pragas bíblicas? Seria esse mais um “jeitinho brasileiro”?
Ganhar o pão com o suor do rosto representa a instalação do Real, coisa que muita gente não consegue em toda a vida: achar um caminho, procurar achar os meios de alimentar a si e aos seus. É tarefa muito séria e para muita gente uma benção. Não é nada fácil viver sem o vetor do Real e da necessidade diária de se aperfeiçoar e não perder o bonde. A lassidão leva ao vazio e ao desespero. Perder a fome pela vida pode ser uma perda definitiva.
Parir em dor também é uma manifestação do Real. Estou há mais de duas horas estudando, vendo vídeos e procurando inspiração para escrever esse post. Isso dói, incomoda e também é uma benção. Criar ou parir alguma ideia, projeto ou tarefa dói, incomoda e tira o ser humano de sua inamovível zona de conforto. Parir em dor e ganhar o pão criam dificuldades para se vencer todos os dias. Já descrevi em outros posts o termo para esse bom estresse, Hormese. Hormese é o quantum de dificuldade que nos deixa ligados e prontos para o constante e doloroso processo de recriação e transformação de cada dia. Sem esse processo, nossa evolução pode estagnar. Como se pode notar, sair do Jardim do Eden não é tarefa para maricas. Nem para senadores da República.
Ser expulso do Paraíso é um passo no desenvolvimento. Ganhar consciência do Bem e do Mal, também. O próximo estágio, a Árvore da Vida, tem sido a nossa lição de casa desde então. Mas isso é assunto para outro post, com muitas dores de parto.
Vivemos dentro de um sistema invisível de controle que se utiliza muito mal dessa estrutura mitológica. A doutrina do Pecado Original já traz o freguês ao mundo com dois pesos eternos para carregar: a Culpa e o Desmerecimento. Para piorar, Jesus ainda morreu por você. É mais uma culpa para a coleção.
Vivemos perdidos do Paraíso nos eternos ciclos de autorecriminação. Deveríamos ter mais sucesso, perder peso, ter uma vida diferente. Muito já foi escrito nesse blog sobre esse chat interior infinito. Nada é como deveria ser, não é mesmo?
Desejamos e temos culpa por desejar. Foi o desejo de poder que nos tirou do Paraíso, então temos que acatar o que padres, pastores e gurus no dizem: o bom é se conformar com uma realidade insípida, pois assim é a vida.
Eu muito espeto a nossa Civilização Autoestima e a incrível necessidade de aprovação e likes em redes sociais. O desejo de existir se estiver sendo visto. Mas há outra forma de alienação perpétua, que é a ditadura da realidade. Ou do desmerecimento. Ou de esperar pouco de si.
Expulsos do Paraíso, dependemos de nosso suor e dor para encontrar o caminho. Amar e odiar a si mesmo não nos leva muito longe. Mas ver a vida como uma massa de escultura que é minha tarefa martelar é mais difícil do que esperar que alguém venha modelar para mim. O Ego inflado é tão burro quanto o Ego deprimido. o Ego é um meio, não um fim. Um dia, quem sabe, vamos abandoná-lo na estrada, com alguma gratidão por seus serviços prestados. Até lá, vamos tentar deixar na vida uma marca que dure. Mesmo que pouca gente veja essa marca.

Um comentário:

  1. Dr., obrigado pelo texto..suas dores do parto certamente trazem ganhos não apenas para vc mesmo mas para os seus leitores.

    Muito bom o tema e a evolução..concordo 100%...na minha visão, tanto a necessidade extrema de aprovação quanto o autodesmerecimento (esse termo existe?) são faces da mesma moeda: a ainda incapacidade - não por falta de inteligencia mas por ser parte intrínseca do processo - de "be your own lamp" (como prega a mitologia budista)..e sigamos trilhando o caminho de nos encantarmos pela vida, por nós mesmos e pelas armadilhas..

    grande abraço

    ResponderExcluir