sábado, 17 de setembro de 2016

Wall-E e o Sonho de Jung

Wall-E é um robô obsoleto, catando e classificando lixo no planeta Terra, desertificado pela intervenção humana. Os habitantes da Terra viraram nômades perdidos pelo Universo, vivendo em estações e naves interplanetárias, presos na frente de telas de computador e de profunda apatia. O enferrujado e valente WaIl-E finalmente encontra, na paisagem devastada do planeta deserto, um pequeno broto de planta, um quase microscópico trevo, que representa a recuperação da terra, o chão, e da Terra, o planeta, de abrigarem a vida. Wall-E dá o alarme e uma pequena e mais moderna robô fêmea atravessará as galáxias para pegar a amostra e levar para os humanos sem lar. Essa é a prova que o planeta está ganhando vida, de novo. Finalmente o homem vai poder voltar de seu exílio.
Esse filme da Pixar me remete para um sonho muito antigo de Jung. Em seu sonho, ele anda com três amigos nas ruas escuras e empoeiradas de Liverpool. Ele fica sabendo que um de seus amigos havia optado por morar naquele lugar sujo, o que causa estranheza a todos. Chegam em um parque quadrado, que tem um lago em seu centro. Com a luz muito fraca, ele enxerga uma ilha no meio do lago, onde tem uma árvore, uma magnólia de flores vermelhas e nesse lugar, o sol nunca deixava de banhar as flores. Vendo esse milagre, entende como alguém tinha ido morar naquele lugar.
O sonho de Jung e a descoberta de Wall-E tem provavelmente a mesma origem simbólica: no meio da situação mais desesperadora e soturna, no meio da secura, do deserto ou da fuligem, nasce a nova vida, e nada detém a força que faz com que a vida floresça. É particularmente bonita a imagem do sonho, onde a árvore central é sempre banhada pela luz. Será que Jung descobriu a Árvore da Vida, sempre iluminada no mundo após a expulsão do Paraíso?
Uma das hipóteses junguianas para a nossa época repleta de doenças mentais epidêmicas é a sensação profunda de aridez de significado de nossa civilização tecnicista. Nascer-Crescer-Consumir-Morrer não parece um caminho inspirador ou com significado. Jung associou o sonho ao período de sua vida, que era especialmente difícil. Tinha sido expulso em pequeno espaço de anos da Psiquiatria e da nascente Psicanálise. Fora abandonado pelos poucos amigos e pesquisava, sem saber ao certo o que estava buscando, o núcleo central de sua teoria. Esse sonho mostrou para ele que sua busca estava indo no caminho certo, mesmo que ele, como o amigo do sonho, estivesse morando num lugar sujo e cheio de fuligem, e que ninguém entendesse como ou porque ele tinha se enfiado naquela situação de vida. Jung não tinha problemas financeiros, era um médico conceituado e procurado por pessoas de todo mundo e suas alunas montaram uma escola para ele transmitir as suas ideias. Mesmo assim ele se sentia perdido e sem saber se a sua busca iria dar em algum lugar. O sonho indicou que no fundo da Psique estava o facho de luz e a planta solitária do desenvolvimento. Difícil era fazer as pessoas olharem com os olhos de dentro.
Vivemos em um mundo unilateral, onde as pessoas compensam a ausência de orientação interna com a gana de acumular e adquirir. É feliz quem compra, é desesperado quem não pode comprar. Está muito fora de moda a ideia de que há, em nosso mundo interior, um núcleo de vida que sempre vai achar um caminho de manifestação.
Como Wall-E, Jung descobriu um broto de vida no deserto espiritual do homem moderno. A psicoterapia é um dos últimos lugares que convidam as pessoas a olharem para dentro. Bem no quintal de seu mundo interno, há um tesouro enterrado. Um tesouro que ninguém quer desenterrar. Só quem espera e escuta pode voltar a ouvir e ver. E precisa procurar muito para encontrar o trevo perdido.

Um comentário:

  1. Que lindo texto !
    " Só quem espera e escuta pode voltar a ouvir e a ver ... "
    Belas e sabias palavras , dr Marco !

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