segunda-feira, 20 de março de 2017

Nascida para Brilhar

Desde criança ela ouvia a sua mãe dizer que ela tinha nascido para brilhar. Nas peças da escola isso se confirmava, pois era a mais jeitosa e desinibida com os papéis, além de ser uma menina bonita. Quando as coisas não corriam como queria, ou naqueles dias em que o desânimo parece engolir toda a nossa vida, sua mãe aparecia com um sorriso e perguntava: Quem nasceu para brilhar? Ela acabava se animando. Quando foi procurar ajuda já não se sentia tão brilhante: casou com um homem crítico que gostava de atacar, sempre, a sua vontade de fazer coisas e ter destaque. Junto com a vontade de brilhar havia o medo, principalmente o medo de não ser assim tão brilhante, nem tão nascida para brilhar. O marido insistia em frisar que nada havia nela de brilhante, mas apenas que ela era uma mulher mimada e pouco prática, vivendo a vida de selfie em selfie. Na verdade a sua maior dúvida, a mais profunda, era essa: deveria se livrar do marido e dar expressão à sua necessidade de atenção, ou de expressão artística, ou, no limite, deveria abrir mão da projeção de sua mãe e levar uma vida comum, com trabalho, marido e filhos e cheiro de alho na mão depois de fazer o macarrão no Domingo?
Talvez nosso mundo infestado com imagens e informações acabe criando essa indisposição contra a vida Real. E isso hoje começa na infância, com a infantolatria, a transformação de bebês e crianças em estrelas de filmes, montagens e álbuns intermináveis no Instagram. Andy Warhol falou que no futuro todos teriam direito a 15 minutos de fama. Os Snapchat tornaram esse tempo próximo a segundos. Fotos, vídeos, exposição das crianças em todas as mídias criam essa necessidade de brilhar. Já posso ver claramente as crianças entrando em processos de luto quando crescem e perdem a fofice que chamava tanto a atenção. Ficam perdidas sem os olhares encantados da infância. Algumas procuram por esse olhar a vida toda.
O mercado de trabalho reclama dessas crianças “nascidas para brilhar” no ambiente de trabalho, querendo atenção, reconhecimento e um cuidado particular com sua autoestima. Imagine o que encontram em nossos tempos de crise econômica devastadora. Não é à toa que muitos ficam presos no meio do caminho entre a adolescência e a vida adulta, recusando-se a entrar no jogo ou assumir responsabilidades. As responsabilidades são a porta de entrada para o Real.
A moça que segundo a mãe, tinha nascido para o brilho e o glamour continuou vivendo a vida com a sensação que ela lhe pregou uma peça. Talvez seja candidata a um divórcio ou cair na lábia de algum colega de trabalho que toque naquele ponto que o marido sufoca: que ela é linda, é maravilhosa, é especial. Ela evita impor aos filhos a fantasia de que nasceram para brilhar. Prefere dizer que nasceram para viver e viver é uma construção. Mas ela deixou o tratamento antes do maior entendimento: que ela é bem mais feliz deixando as pessoas brilharem do que querendo toda a atenção para si. Oferecer a sua atenção é muito melhor do que disputar, em desespero, quem brilha mais, quem recebe mais admiração. Fazer o macarrão de Domingo pode ser um jeito de colocar seu brilho no mundo, e isso deixa a sua marca, a sua impressão. O que não deu tempo de perceber, mas talvez um dia ainda aconteça, é que vivemos num tempo de zumbis narcísicos se arrastando pela energia que pensam, está no Outro ou na superfície, no número de curtidas de uma foto.
Viver a vida no presente permite uma impressão profunda. Isso é o que brilha, em cada minuto que se segue. Vivemos o grande dilema de uma vida que não se sustenta na correria e na disputa dos espelhos.

2 comentários:

  1. Belo texto! O segredo é não ofuscar nosso brilho interno, que reflete verdadeiramente quem somos diante do invisível e nítido espelho da alma. O resto é "perfumaria".

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