domingo, 9 de abril de 2017

Matrix

No início desse novo século um filme sacudiu a nossa concepção de cinema, que foi o Matrix. Acho que foi uma das maiores realizações dessa jovem arte, a fusão e a espiral de mitologias e a questão fundamental que assola a modernidade: apesar de tanto acesso a um quantum inimaginável de conhecimento, talvez estejamos mais presos na Matrix do que nunca. Isso apesar de toda porradaria, que era o tributo a se pagar para ver o que interessava.
Para que não lembra, os humanos seriam autômatos vivendo uma vida dentro de um estado de sono ou de alienação permanente, ligados a um gigantesco sistema chamado de Matrix. Os medos, o sofrimento, a própria vida seria um estado de sono e de imersão num esquema de repetição de desejos e frustrações que nos deixam em uma vida circular, repetitiva. Os budistas chamam essa repetição infinita de Samsara. Matrix é o Samsara? Pode ser.
Um filme mais recente, The Discovery, lançado recentemente no Netflix, tem uma frase muito bonita que resume o Samsara. Vai ficar um pouco deslocada, mas se eu tentar explicá-la vai gerar um grande spoiler e não vou fazer isso. O filme é sobre um cientista que descobre e revela aos mundo provas da continuidade da vida após a Morte. Haveria uma troca de nível com a mesma, uma ampliação de consciência, coisa que os místicos afirmam há muito tempo. Isso gera, no filme, uma epidemia mundial de suicídios. As pessoas começam a morrer para atingir o próximo nível. O filho do cientista é um neurologista cético que tenta demover o pai dessa pesquisa. É dele a frase mais importante, que “ A vida é uma sequência de erros que vamos repetindo infinitamente, até a velhice e a morte” .
A Mitologia grega tem uma imagem parecida: após a morte, os homens seriam condenados repetir no Mundo dos Mortos os erros se não bebessem da água da lagoa da Memória: só o relembrar de tudo pode nos libertar de nossos erros ancestrais. Talvez por isso que o trabalho terapêutico produza uma viagem no tempo para relembrar o que foi esquecido ou freudianamente reprimido. Nossos medos, nossas mágoas, nossos ressentimentos podem criar uma vida de repetição permanente dos mesmos esquemas, os mesmos erros, as mesmas neuroses que nos deixam apartados de nós mesmos e dos encontros amorosos que poderíamos ter.
Nossa Matrix é a repetição inconsciente do mesmo sistema de crenças, dos mesmos preconceitos e buscas vazias que carregam o dia a dia. Dinheiro, segurança, beleza, sucesso, iluminação, tudo o que se busca pode ser usado pela Matrix para manter as pessoas correndo em suas rodinhas como ratos. A Matrix pode ser a Mente e a sua tentativa de tudo dominar e reduzir: a Mente acredita poder fazer tudo isso. Quem fica encantado com um bebê sorrindo e olhando maravilhado para a Vida está contemplando um estado psíquico em que a Mente Autocentrada ainda não se instalou. Desde Piaget sabemos que esse estado iluminado não dura muito. Com dois anos aquele bebê encantador já virou um monstro de egocentrismo. Levamos a vida inteira para tentar transformar esse monstro que precisa de atenção, segurança , afeto, pode é tudo que puder engolir em alguém sintonizado com algo maior que a própria falta. Sair do padrão infinito de repetição, então, é para poucos. Tentamos criar faíscas de Consciência entre os martelos e as bigornas da existência é a nossa tarefa, em ambos os lados dos divãs.

Um comentário:

  1. Belo texto, que me fez lembrar outro título cult dos anos 80: Blade Runner. Repetir a si mesmo leva ao extermínio da melhor versão idealizada de si próprio.

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