sábado, 15 de abril de 2017

Uma Única Razão

Recebi um e-mail apavorado da mãe de uma paciente me confidenciando que a filha estava assistindo a nova série do Netflix, “13 Reasons Why”, que trazia uma advertência, sobre “cenas gráficas de estupro e suicídio”. Ela tentou perguntar sobre a série, a filha desconversou e fechou o computador. Minha filha vai ser contaminada por esse vírus? Sugeri que ela assista a série, mesmo sendo muito chata, com personagens caricatos e pouco verossímeis, e discuta a trama com a sua filha.
A série trata da história de uma adolescente que cansa de sofrer vários tipos de abuso na torturante jornada do Ensino Médio e comete suicídio. O nome da série “Treze Razões Pelas Quais” se refere à descrição, em fitas cassetes deixadas gravadas para as pessoas que, direta ou indiretamente, causaram a sua morte, de todos os abusos que levaram à tragédia. Parece que a série é sobre a menina que se matou, Hannah Baker. Eu discordo. A jornada de transformação é de Clay Jensen, um colega que era apaixonado por Hannah e que vai ouvir, fita após fita, os horrores que a menina passou debaixo de seu nariz. Clay vai tentar entender a morte absurda e, mais absurdo, a própria incapacidade de viver a sua vida com alguma coragem e alguma verdade. Aliás, acho que o tema verdadeiro dessa série não é o suicídio, mas a Verdade e o que fazemos para evitá-la. Clay mente o tempo todo, para os pais, os professores, os colegas e, sobretudo, para si próprio e para Hannah. Pessoalmente, acho Clay uma somatória de covardias e esquivas que o levam sempre a chorar o leite derramado. O leite mais derramado de todos é a morte da menina que ele amava e deu o maior mole para ele, e nada. Nada. Dá um tempo, Clay.
Não sei se devia ter mandado a mãe da paciente ver a série. É um autêntico filme de terror para os pais: Hannah deixa as fitas para seus inimigos, desafetos e amigas falsianes, mas não deixa um mísero bilhete para os seus pais, que, até onde assisti, eram pais amorosos e presentes. Talvez eu descubra que eram alcoólatras e abusadores, mas mesmo assim, os perseguidores tem muito mais consideração da menina do que as pessoas do mundo mais afetadas e devastadas pela sua morte.
Na série, país, professores e pessoas do mundo adulto são um bando de retardados sendo constantemente engrupidos pelos adolescentes, pregando mentiras o tempo todo. A mãe de Hannah, particularmente, implora feito um zumbi para receber um fragmento de verdade que a ajude a compreender a perplexidade da sua perda. Todos a mantém dentro da mentira e da omissão. Um terror. É claro que os filhos adolescentes imaginam estar tapeando os pais o tempo todo. Mas não somos assim tão sem noção. Dá um tempo.
Quanto ao título da série, também pode ser mudado. Não há treze razões para a morte de Hannah, mas apenas uma: todos temos uma Ferida e um Imprinting na vida. A tarefa de uma boa análise é encontrar os dois e cuidar deles. No caso de Hannah, a Ferida é a sensação de Exclusão: todas as tentativas de fazer parte, de se inserir, terminam mal e pior, terminam em violência. Hannah tem a Impressão profunda do não pertencimento, o que gera mais e mais decepções. A principal é a sensação de que, de alguma forma, vai acabar sofrendo abusos. E isso realmente acontece. Essa é a Única Razão.
A série é construída em torno da noção que esse microtraumas vão criando uma chaga na alma até levar ao suicídio. Talvez seja a única questão verdadeira sobre suicídio que está abordada no roteiro. De fato, essas fantasias darwinianas de disputa de espaço e poder, as microcovardias e as tempestades de mentiras podem abrir uma fenda que vai virar um terremoto mais adiante.
Para os alarmistas de plantão que esperavam um aumento de tentativas ou de suicídios por conta dessa série, acho que não vai ser o caso. A maior causa de morte em adolescentes e adultos jovens nos Estados Unidos é o Suicídio. No Brasil não é assim porque nossos jovens morrem mais vítimas de violências como acidentes e balas perdidas, mas os números estão aumentando. A série coloca uma lupa no assunto e abre debates sobre esses microtraumas que as pessoas sofrem, sobretudo se a pessoa for mulher e com a sensibilidade de Hannah. Isso é um efeito sem dúvida benéfico.
É importante colocar o foco nessa direção e debater, confrontar, esmiuçar o assunto sem medo e sem se esconder atrás do medo e da omissão. Isso vai ajudar o debate a sair do clichê e colocar dedos em feridas, antes que seja tarde.

Um comentário:

  1. Dr. Marco, comecei a assistir a série na dúvida se deveria porque acho esquisito o assunto morte sempre me chamar atenção e eu estar fazendo tratamento para a depressão. Estou na metade e, pelo menos até o momento, realmente o que chama mais atenção na série, é a apatia que muitos de nós temos em relação ao que acontece, queremos ou incomoda em relação aos nossos próximos ou a nós mesmos, assim como o Clay. Parece que o suicidio que está sendo contado é o dele na verdade, que o faz em vida, lentamente, pela simples ausência de viver sua vida: seus sonhos, suas experiências, vencer seus medos e viver seus desejos. Espero que A grande lição da série seja não permitir tudo na vida passar sem fazer nada a respeito. Esse seria o valor real da série, já que existem mais formas de suicidio, além da física.

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