domingo, 18 de junho de 2017

Vivemos para Descansar do Sonho

Estava meio desavisado no Brain Congress de Porto Alegre há três dias. Neste ano, o Congresso foi mais pobre em conteúdo e me fez correr mais atrás de coisa boa, então lá estava eu desavisado numa palestra sobre a “Neurociência ajudando a repensar o ser humano”. Nem atinei para o palestrante, um certo Mia Couto, provavelmente homônimo do grande escritor português/moçambicano, aquele que pode dar um prêmio Nobel para a nossa língua, a última Flor do Lácio. Quase capotei na cadeira quando ouvi que Mia Couto era mesmo Mia Couto, convidado de honra do Presidente para a sua palestra. Imediatamente tive a sensação que deveríamos ter todos os dias de nossa vida, de uma imensa gratidão e privilégio de estar lá, num Congresso de Psiquiatria, Neurologia e Neurociência ouvindo aquele homem. A sensação foi incrível: e pensar que todos os dias temos o privilégio de ver, tocar e sorrir para tanta gente especial e nem percebemos. Pois a presença modesta e bem humorada do romancista me deu a sensação que devia cultivar todo dia, a de gratidão. Estava grato de estar lá, depois de um dia exaustivo de gráficos, tabelas e saber científico. E Mia começou a contar histórias. Em tudo que descrevia, em todas histórias que ele contava, havia um viés de um narrador que fala escrevendo. Quem já assistiu uma aula show do infelizmente falecido Ariano Suassuna também tinha essa impressão. Os “causos” que saiam de sua boca não eram relatos factuais, mas a mágica de uma história que nos transportam para outras histórias. Uma viagem nos caminhos da Memória.
Mia Couto contou uma história de um homem que conheceu em viagem para a África, acho que no Zimbábue. O homem estava perdendo a visão mas conseguia guiar a todos em suas expedições e caçadas. O velho africano falou para o maravilhado escritor, que transforma tudo o que ouve em livros, que "só consegue enxergar quando caça". Mia ficou perplexo, porque alguns anos antes escreveu um livro em que um de seus personagens era cego e dizia: “Eu só enxergo quando escrevo”. Dizem que a vida sempre acaba imitando a Arte. Um tempo depois, o homem morreu e o escritor/narrador voltou para a sua cidade. Ele não foi enterrado, mas “semeado” debaixo de uma árvore. Quando perguntou do que ele morrera, percebeu que não havia esse conceito na tribo. As pessoas não morrem de algo, mas morrem de “alguém”. Como morrer de sua mãe e volta para seu seio. Uma morte freudiana perfeita. Mia se lembrou, então, da primeira vez que morreu de “alguém”: foi de seu pai, que viu chorando espantado aos sete anos.Ver o pai chorando foi como morrer. Nunca imaginou que seu pai pudesse chorar. Eles estavam exilados em Moçambique nos anos setenta quando chegou o aviso que seu avô, pai de seu pai, havia morrido em Portugal. O menino amedrontado e perplexo tentou consolar seu pai, que falou que seu avô podia ter morrido em Portugal, mas naquela casa ele nunca morreria. No decorrer dos anos, eram tantas as memórias, os sons, os gostos e as cores que era como se a família corresse pelos quartos, rindo e contando histórias.E o menino escritor nunca sentiu a morte de seu avô que não conhecera. Ele passeava pelas salas, indiferente à Morte. Lembrei do meu pai assobiando um samba de João Nogueira. O assobio encheu a sala da Memória, no meio do Congresso. Talvez as duas qualidades que nos tornem humanos seja a Linguagem e a Memória. Através delas prosperamos, crescemos, desejamos e adoecemos. Através delas, o escritor virou um livro que falava. Em vez da Neurociência ajudar a repensar o humano, foi o humano que ajudou a repensar a Neurociência. Pois não há Ciência e não há cura se não houver Alma, daquele que cura e daquele que é curado. Na pratica clínica, nem sempre sabemos quem é quem. Só era perceptível, embora a voz do escritor não o tenha mencionado, que é a Alma que diferencia os técnicos dos curadores, e não existe cura sem preparo técnico. Mas o preparo técnico sem Alma também pode ser inútil.
Senti uma pena profunda de imaginar que o mundo está mudando para esse tipo de literatura, para o mundo que é percebido, processado e recriado desde o olhar imenso do narrador. Os livros já nascem como roteiros, não de cinema, mas de séries do Netflix. Quanto tempo teremos pessoas debruçadas em livros que abrem esse Olhar mágico?
Foi viajando nessas ideias e percepções que vi a palestra de Mia Couto terminar, e quase mil congressistas aplaudirem de pé a aula em que o humano reinventou a Ciência, como os verdadeiros artistas fazem. Eu lembrei de um sonho meu recente, onde afastava as pessoas para poder chorar a morte de meu pai. O velho caçador africano disse a Mia Couto que vivemos para poder descansar do sonho. Eu precisei do sonho para abrir espaço para o choro. O sonho não tem tempo, já que meu pai morreu há quase vinte e cinco anos. A mágica do sonho e da poesia me fez chorar na palestra de Mia Couro, de saudade de meu pai.

3 comentários:

  1. Hoje, ler seu texto foi como ler uma linda e sensível poesia, desde o título até a última frase. Obrigada por compartilhar seus pensamentos.

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  2. Muito sensível!
    Sou profundamente grata a você por todas as mágicas que ajudou a fazer na minha vida!

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