domingo, 9 de julho de 2017

Esperar no Silêncio

O menino segurava a mão de seu avô, no cenário chuvoso do funeral de sua mãe. Um cenário chuvoso é sempre mais adequado aos funerais. Pergunta ao seu avô, que era um Pediatra, por que não tinham conseguido tirar o tumor da cabeça de sua mãe. O avô explicou que o tumor estava espalhado e se interpenetrava nos tecidos do entorno, não dava para ser retirado. Não havia nada a fazer. O menino cresceu e virou um médico, com uma particular motivação em entender as situações em que, apesar de todos os conhecimentos e recursos, as vidas se vão e nada se pode fazer. Virou pesquisador não de Oncologia, mas de Choque Séptico, uma causa bastante importante de morte hospitalar, com o agravante de se dar algumas vezes de forma paradoxal, interrompendo uma curva de melhora clínica. Descobriu que essa entidade clínica, ao contrário do que se pensava quando me formei, está menos relacionada com atividade de bactérias resistentes ao tratamento do que a um estado de completo esgotamento do organismo em manter o próprio equilíbrio, gerando quedas abruptas de pressão arterial e parada cardíaca. Hoje está pesquisando as formas de evitar que esse estado de exaustão se estabeleça, antes que seja tarde. Como no romance de Mary Shelley, ele cria uma rixa com a Morte a partir da perda de sua mãe. Ao contrário do Dr Victor Frankenstein, ele não está criando monstros a partir de sua dor. Porque a dor pode criar monstros que nunca nos abandonam.
O Tao Te King, assim como o Taoísmo, usa um conceito muito difícil de apreensão pelas nossas mentes ocidentais, que é o Wu Wei, a “Ação pela Não Ação”. Conceito bem difícil para a Medicina. Tratamos a doença e a morte como predadores à espreita. Temos que antecipar seus ataques. Muito estrago se faz a partir dessa fantasia: procedimentos invasivos, caros, condutas e atitudes proativas que podem gerar outras complicações. Pois se toda ação gera uma reação, o que fazer pelo poder da Não Ação? A hora de maior aflição, que é a hora em que não se sabe mais o que fazer, talvez seja a hora de esperar na Não Ação?
O que eu consigo entender sobre a Não Ação é que ela não significa simplesmente cruzar os braços ou deitar as armas. Significa aquele momento de silêncio em que nada há a fazer senão esperar. Mas esperar à espreita; à espreita de algo que vá se manifestar. No filme Apollo 13, entrevistam a mãe de Jim Lovell, supostamente demenciada, sobre seu filho, preso dentro de uma espaçonave entre a Terra e a Lua. Ela se recorda de um episódio em que seu filho voava sobre a costa do Pacífico e seu jato teve uma pane elétrica. Jim perdeu todos os instrumentos de navegação e passou a voar às cegas, no meio da noite do outro lado do mundo. Em vez de se desesperar, o piloto entrou em perfeito Wu Wei, e esperou no meio do silêncio e do escuro, que parecia mortal, o que viria em seu auxílio. Foi quando notou que a Lua se refletia nas algas da costa, fazendo um rastro prateado. Isso serviu para a sua orientação e ele seguiu aquele rastro até achar as luzes das cidades e o caminho para a sua pista. Podemos chamar isso de sorte, ou de Mistério. Fica ao gosto do leitor. A velha senhora resumiu o que foi o resgate de seu filho: pode ser que ele não tenha achado um jeito ainda, mas vai achar.
Herdei de Jung (e Jung herdou do Taoísmo) o gosto pela ação médica que restaura o equilíbrio. A Ação delicada e, em algumas situações, a Ação pela Não Ação. Não que seja fácil e, muitas vezes, o terapeuta é confinado à Não Ação pela Defesa do próprio paciente. Acho que, como o colega cuja história descrevi acima, também tive uma pendenga com a Morte quando vi meu avô se esvaindo num Cãncer de Esôfago, lá pelos idos dos anos setenta. Não gosto das situações onde não há nada a fazer, mas imagino, como o piloto que perdeu os seus aparelhos, que sempre vai acontecer algo se eu esperar no Silêncio.

5 comentários:

  1. caramba, Dr., que texto lindo...talvez esse seja o ensinamento definitivo: a total confiança na vida que vem do aquietar a mente...se já é difícil em situações ordinarias, que dirá em momentos de tensao profunda....mas o que me anima é a certeza de tratar-se de treinamento...

    obrigado pelo texto

    abs

    ResponderExcluir
  2. Pois é! Lendo seu texto, me lembrei daquela máxima que usamos quando incorremos em uma iatrogenia: "só acontece com quem faz". Com os anos de prática, comecei a ler essa máxima de outro jeito - mais taoista, agora eu sei. Obrigada pelo texto!

    ResponderExcluir
  3. Adorei o texto!! Ótimo para refletir. Até no silêncio há o trabalho. Contar com tempo como aliado. Abraço.

    ResponderExcluir