sexta-feira, 18 de abril de 2014

A Insustentável Leveza PSI

Lembro de uma passagem de um programa da série “Viver com Fé” do canal de TV paga GNT, onde um rapaz contava a sua experiência de horror e redenção como dependente de substância, ou dependente químico. Um cara para lá dos quarenta anos, com uma expressão de paz e uma imensa ternura nos olhos, contava Np programa como o seu pai vendeu um apartamento para poder pagar por suas internações, como a fissura quase destruiu a sua vida e a da sua família. Tudo parecia caminhar para um daqueles relatos de como uma Igreja ou determinado grupo tinha ajudado a sua redenção, mas não. Depois de muitos anos perdido em reuniões de grupos de Doze Passos e mensagens espirituais que nada diziam para ele, finalmente ele teve uma introvisão, ou em bom Português, um insight em que, olhando para as pessoas da clínica, com o olhar esgazeado e perdido, os olhos de abandono de quem já está há muito tempo sem visão da vida ou de algum futuro, olhando para essas pessoas, ele teve a percepção de finalmente entender o Evangelho. Naquele momento, ele entendeu que não havia nada mais importante para ele e para a sua vida do que ajudar aquelas pessoas, o que ele faz até hoje como coach e aconselhamento de dependentes de álcool e outras drogas.
Pensei nesse cara quando vi o terceiro episódio de PSI, nova série da HBO escrita e produzida pelo psicanalista pop Contardo Calligaris. Já falei desse programa no último post. Mencionei que ele reflete um processo de louco enamoramento de Calligaris consigo próprio. E olha que eu estou gostando da série. O que motivou esse blog a voltar a comentar o programa foi um diálogo de Contardo, digo, Carlo Antonini, o psicanalista e herói da série, que interpreta a tudo e a todos, na rua, na chuva ou na fazenda, ou numa casinha de sapé; bem, excepcionalmente, ele está interpretando alguém no lugar certo para a prática, isto é,no seu consultório. Debate com um rapaz, dependente de cocaína, que já passou por todas as tentativas de ajuda, sem sucesso, e tenta chegar a um consenso sobre a sua internação, voluntária ou involuntária, numa clínica. Um debate alegre, recheado por uns bombons trufados que ele oferece ao rapaz. Terminam sem uma conclusão clara: ele deve se internar ou continuar buscando pela overdose definitiva? Como responder a essa questão tão difícil?
Os leitores desse blog hão de convir que tenho tratado essa série com alguma boa vontade. Mas acho que a mesma presta um grande desserviço quando contrapõe um debate frívolo e superficial sobre um dos quadros mais graves e de pior evolução de toda a Medicina. O índice de recuperação desses quadros não chega a 30 por cento, com pequenas fortunas consumidas em todo mundo. O contraponto da imagem do ex drogado que encontrou a sua cura na visão absoluta do amor e da entrega para o outro,e, na outra cena, o psicanalista bacaninha, que transforma essa questão numa masturbação descolada e cool, regada a bombom trufado. Quem já atendeu ou atende esse tipo de caso deve ter recebido essa cena como um belo soco na boca do estômago. O rapaz sai do consultório alegremente, achando o terapeuta muito maneiro, pronto para o próximo pino de cocaína.
Todos conhecemos a história de alguém que, depois de anos tentando parar de fumar, tem um clique, ou um estalo na cabeça e nunca mais põe um cigarro na boca, além de virar o mais feroz caçador de cheiros de cigarro. Acredito que a recuperação de uma dependência, qualquer uma das dependências, de substância a relacionamentos, seja uma combinação de várias tentativas fracassadas com esse momento em que a pessoa salta para fora daquele estado de ser e não volta mais. Não dá para planejar nem saber quando esse salto ocorrerá, e sua busca é penosa, com algumas mortes no caminho. Para tratar esses quadros é preciso uma pegada e tanto do terapeuta para mostrar que todos os discursos de autoengano são uma piada ante a marcha inexorável da doença. Já vi muita gente recair depois de uma internação, assim como todo dia tem moleques pulando o muro das clínicas para fugir do tratamento. Vencer a doença demanda uma profunda reestruturação cognitiva, afetiva e existencial dos pacientes. Não é assunto para se debater com chocolate. É um assunto e um tratamento visceral. Um assunto de Morte e Renascimento, bom para a Sexta Feira Santa.

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